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4.2.1 Introdução ao Ritual de Nominação Bororo

Para introduzirmos o contexto simbólico e o sentido religioso do Ritual de Nominação, optamos por partir do que se estabelece como o conhecimento sistematizado sobre esse ritual naquela comunidade. Para isso, tivemos acesso a quatro fontes diferentes, cuja autoridade sobre o Ritual é reconhecida pela comunidade de Meruri: os salesianos que o apresentam conforme o observaram e compreenderam com base nas narrações na primeira metade do século XX171; uma pesquisadora que está entre os bororo há cerca de trinta anos, para quem o ritual é uma forma de aprofundar o conhecimento da cosmologia bororo das simbologias implícitas nas relações estabelecidas entre as diferentes metades (ou partidos )

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Foram também consultadas as Enciclopédias Bororo Vol. I e Vol. II, elaboradas pelos salesianos e publicadas em 1962 e 1965, respectivamente.

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Em nossa compreensão tanto os textos publicados pelos salesianos no século passado como as narrativas publicadas neste século (OCHOA, 2001) entrevistas concedidas pelas mulheres mais velhas de Meruri que foram fonte de pesquisa de Sandra Aroe Poiwo, referem-se às tradições da cultura bororo no sentido dado por Marcel Mauss, pois constituem o acervo das maneiras de ser, de fazer, de pensar, de falar, de ser bororo, transmitidas por autoridades bororo. As autoridades são validadas e estabelecidas nas relações sociais da própria sociedade bororo, pois a autoridade que transmite as tradições se estabelece a partir da Antiguidade e da verdade dos acordos humanos (MAUSS, 1999:114).

clânicas e nos diferentes níveis que estruturam a sociedade bororo; e a de dois bororo: um ancião, Sr. Coqueiro (já nos referimos a ele no capítulo anterior) que viveu em Meruri e fez a narrativa do ritual de sua filha mais velha a um salesiano que, por sua vez, convive com os bororo de Meruri por mais de quarenta anos e estuda a cultura bororo, publicando-a em livro, e uma jovem mãe de Meruri que, ao sentir a necessidade de fazer o ritual de seu próprio filho, apropriou-se desse saber entrevistando as mulheres mais velhas da aldeia e, com a orientação da pesquisadora, sistematizou esse saber em forma de relatório de pesquisa, como trabalho de conclusão do curso de magistério, no Projeto Tucum.

Assim, com quatro referências bibliográficas, referências etnográficas reconhecidas como autoridades na comunidade, propusemo-nos a organizar uma apresentação do Ritual, visando estabelecer um diálogo intercultural e compreender os sentidos para os Bororo de ontem e para os bororo de hoje, com os quais vivenciamos o Ritual em 2001.

Iniciamos com uma breve introdução do contexto cultural bororo, com Viertler (1978), que afirma ter a complexidade da organização social Bororo tem desafiado a argúcia dos antropólogos, como pudemos constatar pelo esforço empreendido para nos aproximar da complexa lógica bororo expressa no que chamamos de práticas corporais atuais. Por isso, sem a ousadia de nos colocarmos como profundas conhecedoras da cultura bororo, mas como alguém que conseguiu estabelecer um diálogo intercultural, passamos a expor nossa compreensão do Ritual de Nominação como uma prática corporal significativa no contexto da Aldeia de Meruri hoje.

Viertler critica os antropólogos que apresentam um modelo de estrutura dessa sociedade e apresenta outro como proposta com base nas categorias dos próprios bororo.

Os modelos de interpretação propostos por Lévi-Strauss e os missionários salesianos, Crocker e Levak, se fundamentam numa interpretação dual da estrutura social Borôro, cuja manifestação mais patente é a organização nas duas metades e rae e tugarege, e um sistema de parentesco cuja terminologia é do tipo bi-seccionado (seg. Crocker), de características bilaterais (seg. Levak), além de um sistema de representações ligado ao sobrenatural na dicotomia formada por duas categorias de classificação Borôro, a de aroe (associada às almas dos mortos, à noite, a certos enfeites de penas, a sussurros) e a de bope (associada a espíritos maléficos, do dia, ao alimento de carne, a gritos). (1978:61).

Segundo Viertler (1978:61), esses autores afirmam que, para entender os nomes e o parentesco entre os Bororo, deve-se considerar que os nomes pessoais de uma sociedade nada mais fazem do que seguir os sulcos lógicos abertos pelo sistema de parentesco tido como

matrilinear (seg. LÉVI-STRAUSS e CROCKER) e bilateral (seg. LEVAK) . Discordando deles, a autora é de opinião que, para entender o sistema de parentesco, não se deve partir de uma matriz lógica a priori e por isso parte da análise da ideologia que a própria sociedade tribal apresenta. Recorremos as suas referências etnográficas para termos uma noção da lógica do sistema social bororo e melhor compreendermos as relações ocorridas durante o Ritual de Nominação observado em Meruri. Melhor dizendo, explicitarmos os sentidos e significados que as relações entre os parentes da criança, entre os clãs e as metades, constroem no processo de construção e realização do ritual.

Vale lembrar que, para compreendermos a estrutura social que organiza uma aldeia bororo, precisamos considerar que a pessoa faz parte de um universo físico composto por seres animados, corpos celestes e fenômenos meteorológicos e de todo um universo sociológico que compõe a própria aldeia. Esta, amparada por um conjunto de chefes ancestrais, os iedága-máge, estrutura-se em clãs e subclãs que formam uma totalidade, cuja vinculação com os membros de cada clã se dá por meio do Ritual de Nominação (VIERTHER 1976, 1978; DORTA, 1986).

Todos os boe, segundo Viertler, são associados a dois ou mais títulos por intermédio da cerimônia de nominação; os títulos (iedaga: tio materno, avô, nominador) têm a função de relacionar as formas de parentesco e tratamento recíproco.

Um bororo do sexo masculino associado a um título mais importante (tal associação se faz por meio de nomes pessoais que sempre são associados a algum título) do que o título do seu interlocutor de mesma metade será um tio materno/avô ou um irmão mais velho para este. Este último será tratado de sobrinho neto ou irmão mais novo pelo primeiro. (VIERTLER, 1978:62).

Essas relações de parentesco cerimonial permeiam as relações cotidianas e possibilitam ou não a transmissão dos saberes tradicionais entre os homens, os saberes sobre as diferentes dimensões da sociedade bororo, os patrimônios clânicos, por exemplo, que se referem aos ornamentos, às técnicas de feitio, às danças, aos cantos, e principalmente aos sentidos de cada animal do qual o clã se serve para produzir seus ornamentos. Ou, em outras palavras, segundo a autora, a categoria de nomes ou títulos é concebida sob a forma de um arranjo circular configurando um modelo ideal de aldeia. Já o patrimônio cultural de cada clã, isto é, os cantos, as danças, as funções cerimoniais; os atributos físicos e espirituais como peso, idade, beleza e influência ou ainda a matéria prima para a fabricação dos enfeites de penas, por exemplo, ordenam hierarquicamente os bororo entre si.

Mantendo a tradição172 original e registrada pelos missionários na primeira metade do século XX, o matrimônio será sempre realizado entre um homem e uma mulher de metades opostas. O homem deverá pertencer a um dos clãs com os quais o clã da mulher pode consolidar relações matrimoniais. As relações matrimoniais entre os clãs deveriam obedecer a essa tradição que ainda hoje é considerada a ideal no imaginário dessa sociedade, desejada pelos mais antigos e também pelos salesianos. Em nossas conversas com as mulheres, elas nos relatavam que nos costumes antigos , os casamentos duravam até mais do que o casamento cristão. Essa afirmação sobre a durabililidade dos casamentos também foi confirmada pelos salesianos: os casais de antigamente, que obedeciam a essa organização clânica dificilmente se separavam como agora .

Outro fator relacionado ao casamento e à casa, portanto, às relações entre parentes em ocasiões de ritual em que ocorre o mori, é que, na sociedade bororo, os bens não são acumulados, mas adquirem caráter transitório e coletivo, o que ocorre também em relação aos nomes e títulos173 a serem distribuídos por ocasião dos rituais. Isto porque a manutenção das relações entre os clãs e as hierarquias criadas nas relações de parentescos, ou parentescos cerimoniais, faz com que haja uma dinâmica circulação desses bens, direitos e deveres estabelecidos entre os clãs.

Durante a cerimônia de nominação, a criança é integrada à mesma metade e clã de sua mãe. Segundo Viertler (1976), a decisão da realização do Ritual de Nominação (cerimônia de nominação) deve ser iniciativa do pai da criança; o chefe do clã da criança escolherá o perfurador ou padrinho, sendo este do mesmo clã, de preferência, um homem mais velho e irmão da mãe. A mãe ou o padrinho tem a palavra final na escolha do nome, após todos

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Segundo Viertler, As genealogias entre os nomes e títulos não implicam, como entre nós, na idéia de linearidade, construção de nossa cultura. Na concepção bororo tal idéia deve ser substituída pela noção de circularidade , já que a política de não perder nomes visa, por meio de adoções, transferências e substituições, manter intacto o círculo de títulos que configuram o modelo de aldeia, cada um com um mínimo de representantes em cada aldeia, tal como foi no passado e o será no futuro, requisito da própria eternidade dos grandes heróis (1978:63).

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Segundo a autora, a perfuração em Meruri deixou de ser executada em razão das críticas dos não índios sobre a fraqueza da criança recém-nascida e deixam para fazê-lo mais tarde. Mas isso implica em postergar a oferta dos valiosos enfeites tais como brincos, cintos, braceletes, exigidos pelos pais em retribuição aos furos abertos na criança dos seus rebentos (VIERTLER, 1976:105). Outro fator, em nossa compreensão, é a falta de matéria- prima básica para os ornamentos em Meruri. Como constatamos, os pais não têm como conseguir penas para os ornamentos clânicos, assim como os labretes de osso de onça, já em extinção no Território de Meruri. A autora também identifica que a falta de ornamento tem adiado o ritual para esperar ver se a criança vai sobreviver em virtude dos adornos que esse ritual demanda como Mori. Como constatamos na pesquisa, as crianças nominadas em Meruri não foram perfuradas nessa cerimônia mesmo que, nesse ritual, a maioria das crianças já estivessem com mais de dois anos de idade.