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2. O sertão nas artes da palavra

2.3. O romance de trinta

Na onda da renovação literária que teve início no Modernismo, em que nossa diversidade cultural passou a ser encarada como superioridade, a literatura do decênio de 1930 também retratou esse sincretismo cultural e racial brasileiro, que, por ser exótico, distinto do europeu, devia ser valorizado, representando o autenticamente nacional. Se éramos diferentes, devíamos nos expressar de forma diversa e o meio predominantemente escolhido para tanto foi o romance, por isso, “os decênios de 30 e de 40 serão lembrados como a era do romance brasileiro” (BOSI, 1989, p.438).

Numa década que vivia o afã da revolução industrial, que presenciou a crise de 1929, a Revolução de Outubro e a decadência da aristocracia rural, a literatura se tornou uma espécie de ensaio sociológico visto que a sociologia como ciência ainda não se estabelecera no Brasil.

O “romance de trinta” é fruto dessa literatura de cunho sociológico, preocupada em analisar o homem nordestino tomado como representante do homem brasileiro. A fim de criar o efeito de verdade em suas criações, os escritores regionalistas tomam o nordeste como uma realidade preexistente e, desta forma, seguem os preceitos do Movimento Regionalista que a partir de tradições inventadas construiu uma origem para a região.

A busca pela captação dos fatos em sua dura realidade fez a literatura retomar o naturalismo para tratar das transformações pelas quais passava a sociedade brasileira: o êxodo rural, a transição da sociedade provinciana para cosmopolita, o cangaço que assombrava o nordeste, o declínio das oligarquias, o surgimento do proletariado.

Embora seus autores sigam caminhos estilísticos distintos, eles se relacionam pelo papel que exercem como representantes de um espaço em declínio e pela literatura politizada que produzem, preocupada em legitimar a região, como pregava o discurso regionalista e suas práticas “nordestinizadoras”. Eles constroem uma “visibilidade e uma dizibilidade regional” cada um a sua maneira mesmo que apresentem grandes semelhanças entre si, principalmente no que diz respeito ao caráter reivindicatório de suas obras, preocupadas em analisar a sociedade de forma realista, denunciando as injustiças sociais que a decadência do período

propiciava. Fica claro, no entanto, que essa ilusão de uma homogeneidade discursiva faz parte da estratégia do Movimento regionalista que, desta forma, asseguraria uma essência intelectual coesa, reflexo de uma região também uniforme (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011).

A literatura regionalista de trinta representaria o saber coletivo essencialmente brasileiro, visto ser o nordeste a região que menos sofreu influência estrangeira, guardando o mais autêntico da identidade nacional. Era um “espaço em crise que deveria se expressar por meio da denúncia e da polêmica. Espaço telúrico que deveria ser permanentemente recriado na memória e recuperado tal como deveria ser” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 125).

O assunto central do “romance de trinta” é a instauração da sociedade urbano- industrial em detrimento da sociedade patriarcal que estava em declínio, era a busca por entender a nação e seus problemas assim como faziam, na mesma época, as outras ciências como a história, a geografia, a etnografia, que servirão de fonte para produções literárias do período.

Este romance consegue exceder a clássica oposição litoral versus sertão para tratar de assuntos sociológicos que eram imprescindíveis ao entendimento do nordeste e de seu habitante não mais encarado como alheio à realidade da civilização. Para tratar da região os autores buscaram as fontes populares e assim aproximaram a escrita da língua do povo que se reconhecia nesta literatura cujos temas versam sobre um passado que já não existe mais.

Tendo se interessado primeiramente pela genealogia da elite açucareira, o romance de 30 tinha como tema recorrente a história da oligarquia nordestina e suas famílias abastadas que dominavam a região e assim buscavam impor sua visão regionalista para o restante do país. Para tanto, essa literatura se valia da cultura popular e do folclore que vê como superior à literatura que trata do homem citadino.

Renova-se, simultaneamente, o gosto da arte regional e popular, fenômeno paralelo a certas ideias-força dos românticos e dos modernistas que, no afã de redescobrirem o Brasil, também se haviam dado à pesquisa e ao tratamento estético do folclore; agora, porém, graças ao novo contexto social-político, reserva-se toda atenção ao potencial revolucionário da cultura popular. (BOSI, 1989, p.436)

Esse novo olhar sobre a cultura popular retoma as ideias disseminadas no Modernismo e que mais tarde influenciaram outros movimentos culturais do país, como o Mangue Beat de que tratamos no primeiro capítulo, e mostra o caráter renovador do “romance de trinta” que, mesmo fruto de autores pertencentes às oligarquias tradicionais, se libertou das amarras acadêmicas que enclausuravam os escritores brasileiros, associando “a libertação do

academismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário; às tendências de educação política e reforma social” (MELLO E SOUZA, 2000, p.114) num romance impregnado de sociologia em seu desejo de compreender o papel das três raças definidoras de nossa nacionalidade a fim de entender o país. Era uma literatura cuja consciência regional de seus autores elevou-a a universal, num “momento de equilíbrio entre a pesquisa local e as aspirações cosmopolitas” (MELLO E SOUZA, 2000, p.117).

O romance de trinta, assim como a literatura de cordel e Os sertões de Euclides da Cunha, criou uma imagem do Nordeste e do sertão ainda muito viva na consciência nacional, seus temas e estereótipos compõem o imaginário sertanejo que ilustram a literatura, a música, a pintura e o cinema acerca da região. O cordel do Fogo Encantado se vale desse imaginário em sua obra e assim como a literatura do período, renova ao tratar do índio e do negro, não apenas reconhecendo sua participação na constituição do homem brasileiro, mas assegurando- lhes o mesmo papel que o homem branco, não apenas biológica, mas culturalmente. No próximo capítulo, veremos como os temas recorrentes do romance de trinta reverberam nas composições do quinteto arcoverdense e como a esses temas o grupo acrescentou uma maior participação cultural dos não-brancos que compõem a população sertaneja.