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1. O corpus

1.6. Vou saquear a tua feira

A canção que agora será objeto de análise é a décima sexta canção do CD O Palhaço do Circo Sem Futuro e tem por tema os saques comuns nos sertões na época das grandes secas, acompanhados de violência e revolta contra o Estado que ainda hoje parece não se interessar em resolver o problema, mas apenas utilizar paliativos que acalmem os ânimos da população como os programas sociais que distribuem bolsas aos mais pobres sem, contudo, inserí-los no sistema educacional ou no mercado de trabalho. Além disso, o problema latifundiário do país é mais uma vez retomado para discutir a situação de carência do sertão que teima em persistir.

É uma música na qual a percussão exerce o papel de recriar o tumulto e a multidão que age por instinto em busca de alimento em consequência da fome causada pela seca, sua melodia semelhante ao reisado possibilita ao grupo recriar os passos dessa dança em sua performance.

Vou saquear a tua feira Vou saquear a tua feira Rasgar a capa do teu peito Cercar de arame a tua boca Botar garrancho no teu pé Ah Sertão

Sesmaria sem dono Bandeira vereda calor Mar

A terra seca mergulhou nas águas Salvação

Ave-bala sem dono Bandeira vereda calor Queima

As cercas velhas de arame novo (LIRA et al, 2003)

A música tem início com o barulho de uma multidão, objetos quebrados, gritos, um turbilhão movido pela fome e pela violência que grita “Vou saquear a tua feira / Rasgar a capa do teu peito / Cercar de arame a tua boca / Botar garrancho no teu pé”. Na segunda

parte da canção estes versos são repetidos, mas a voz do líder do grupo parece sofre uma distorção como se saísse de um alto-falante, lembrando os vendedores na feira para chamar a atenção do público, possibilitando a união do gesto com a voz que caracteriza a performance.

Depois o ritmo da canção perde a velocidade que simula o movimento da turba e a confusão dos saques e adquire uma melodia mais calma para refletir sobre este lugar castigado por injustiças sociais disfarçadas de intempéries naturais “Ah sertão / Sesmaria sem dono / Bandeira vereda calor”.

As sesmarias eram as terras doadas pela coroa portuguesa aos colonos que se dispunham a cultivá-las, com o intuito de povoar e desenvolver a colônia. Os donatários eram geralmente fidalgos, militares, funcionários burocratas e homens de negócio, além de banqueiros, escudeiros e tesoureiros reais. As terras doadas serviriam como base militar e econômica da colônia a fim de estimular o comércio de Portugal e em principio só aqueles

Figura 17: Lirinha

que fossem cristãos poderiam receber a terra, regra que perdeu sua validade ao longo do tempo, pois todo aquele que se dispusesse a cultivar a terra poderia recebê-la, mostrando a fragilidade na regulamentação do sistema sesmeiro português.

Após 1548 ficou permitido que se doassem sesmarias de tamanho superior aquele que o donatário pudesse cultivar no tempo estipulado, em mais uma mudança nas regras do sistema; assim, o governador consentiu que as terras das ribeiras próximas aos donatários com poder suficiente para construção de engenhos e outros estabelecimentos fossem doadas adicionalmente como sesmarias desde que os beneficiados se comprometessem a construir casas fortes que seriam utilizadas nas batalhas contra os gentios. E foi assim que surgiu o “cerne da transformação do regime sesmarial, sua adaptação às condições do vasto território colonial e que marcaria definitivamente sua estrutura fundiária: um princípio novo veio a vigorar, trazendo-lhe o prestígio da lei escrita, o espírito do latifúndio” (NOZOE, 2006, p. 591).

Ao chamar o sertão de “Sesmaria sem dono” o grupo arcoverdense põe em xeque a legitimidade dos proprietários de terras que delas se apossaram ao custo da expulsão indígena e da produção da desigualdade social.

Os versos que seguem “Bandeira vereda calor” também remetem à exploração do

sertão, mas agora pelos bandeirantes cuja descrição encontramos em Capistrano de Abreu. Bandeiras eram partidas de homens empregados em prender e escravizar o gentio indígena. O nome provém talvez do costume tupiniquim, referido por Anchieta, de levantar-se uma bandeira em sinal de guerra. Dirigia a expedição um chefe supremo, com os mais amplos poderes, senhor da vida e morte de seus subordinados. Abaixo dele com certa graduação marchavam pessoas que concorriam para as despesas ou davam gente (ABREU, 2006, p.148)

A violência infligida aos índios por partes das Bandeiras é narrada por Capistrano que enumera tribos indígenas que foram exterminadas com armas de fogo enquanto se defendiam com arco e flecha. Os horrores das Bandeiras em seu desbravamento dos sertões era tamanho que suscitou a célebre frase de Capistrano: “Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?” (ABREU, 2006, p.152).

E novamente a retomada da questão da terra que tantas vidas destruiu na história do sertão em mais um diálogo literário, dessa vez com João Cabral de Melo Neto e seu poema

Morte e Vida Severina e a “Ave-bala sem dono” numa descrição da violência praticada contra

— A quem estais carregando, irmãos das almas,

embrulhado nessa rede? dizei que eu saiba. — A um defunto de nada, irmão das almas,

que há muitas horas viaja à sua morada.

— E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se chama ou se chamava?

— Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador, mas já não lavra.

— E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas,

onde foi que começou vossa jornada?

— Onde a caatinga é mais seca, irmão das almas,

onde uma terra que não dá nem planta brava.

— E foi morrida essa morte, irmãos das almas,

essa foi morte morrida ou foi matada?

— Até que não foi morrida, irmão das almas,

esta foi morte matada, numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada, irmão das almas

e com que foi que o mataram, com faca ou bala?

— Este foi morto de bala, irmão das almas,

mas garantido é de bala, mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas,

quem contra ele soltou essa ave-bala? — Ali é difícil dizer, irmão das almas,

sempre há uma bala voando desocupada.

— E o que havia ele feito irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? — Ter um hectares de terra, irmão das almas,

de pedra e areia lavada que cultivava.

(MELO NETO, 2000, p. 47-48)

Por fim há um pedido de mudança e a triste constatação de que o problema se renova com a passagem das gerações “Queima / As cercas velhas de arame novo”. Em Vou saquear a tua feira o Cordel do Fogo Encantado mantém a sua perspectiva de mesclar música e literatura para tratar de conflitos históricos do sertão que ainda nos são contemporâneos, criando obras de denúncia social que vão além da mera reprodução do folclore popular para problematizar as tradições.

O diálogo com João Cabral de Melo Neto não se restringe à canção acima retratada como já visto nos capítulos anteriores deste estudo. Na composição a seguir a influência do poeta pernambucano é ainda mais evidente.