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3. EMBASAMENTO TEÓRICO: LINGUAGEM E LITERATURA

3.3 O romance à luz de Bakhtin

O romance é a realização máxima da prosa literária, assevera o autor russo. É nele que estão entrelaçados o estilo e a linguagem, a forma e o conteúdo realizando estilizações e compondo sua arquitetônica, caracterizada como “o processo de formação de totalidades, ou, todo harmônico, a partir de uma articulação de partes constituintes que as dota de uma unidade de sentido, em vez de limitar-se a ligá-las ou justapô-las mecanicamente” (SOBRAL, 2007, p.109). Essa articulação da totalidade coerente do objeto, a compor sua “unidade interna de sentido”, se dá pela visão exotópica do autor a emoldurar o objeto estético, e se realiza pela integração do material, da forma e do conteúdo no estabelecimento de relações dialógicas. A obra, portanto, deve ser entendida como uma totalidade de significado, e não unicamente como objeto estético por si só, o que empobrece o material artístico, limitando-o em nível de artefato.

O surgimento do gênero romanesco, para Bakhtin, não está associado à ascensão da burguesia, ou à forma contemporânea do gênero epopeico, como defende Lukács, mas apresenta uma natureza milenar cujas raízes estão no período helenístico. Por ser um gênero vivo, em constante transformação, o romance abarca uma diversidade social de linguagens, e o aspecto estilístico da obra é determinado pela unidade dos acontecimentos no interior da narrativa. Há vozes individuais de personagens, vozes que sobrepõem a outras, há o discurso direto e o indireto, a

presença de gêneros literários e extra-literários, estilizações paródicas, aforismos, etc., enfim “é graças a esse plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo” (BAKHTIN, 1988, p.74). Esse encadeamento composicional é que compõe a integralidade estilística do discurso romanesco, cujo expoente máximo é o romance de cavalaria cervantino, que abarcou muitas possibilidades literárias da poliglossia. Para o teórico há o plurilinguismo social na realidade, o qual é estilizado pelo autor, transformando-se em elemento interno e estruturante da obra.

Contrapondo-se às concepções de análises linguísticas e estilísticas tradicionais, que se limitavam à individualização dos aspectos formalistas, Bakhtin questiona a necessidade de se levar em consideração o discurso de outrem na prosa literária. O princípio dialógico é o conceito axial do pensamento bakhtiniano, o qual o filósofo analisa tanto na linguagem da vida cotidiana, quanto no âmbito literário: “A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso” (BAKHTIN, 1988, p.88). E, mais especificamente em relação ao romance:

A orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem (em todos os graus e de diversas maneiras) criou novas e substanciais possibilidades literárias para o discurso, deu-lhe a sua peculiar artisticidade em prosa que encontra sua expressão mais completa e profunda no romance (BAKHTIN, 2010, p.85).

É na prosa romanesca que os discursos assumem um tom estilístico e a imagem “artisticamente prosaica” adquire perfeição artística, assevera Bakhtin. É na produção literária que o discurso do romancista se encontra com as vozes multidiscursivas de outrem, interagindo e influenciando-se mutuamente, a compor o acabamento do objeto artístico: “O artista-prosador edifica esse multidiscurso social em volta do objeto até a conclusão da imagem, impregnada pela plenitude das ressonâncias dialógicas, artisticamente calculadas em todas as vozes e entonações essenciais desse plurilinguismo” (BAKHTIN, 2010, p.88).

Por ser plurilíngue, o romance abarca também o discurso poético, mas diferencia-se deste, grosso modo, por ser a prosa romanesca um terreno descentralizador, de onde emanam as forças centrífugas, e o gênero poético um construto das forças centrípetas, verbo-ideológicas, cujos tons e nuances são

permeados de uma linguagem própria37. É no interior das tramas dialógicas da prosa romanesca que emerge a voz do autor, imbricada com as outras vozes do interior da narrativa. Ao construir o discurso no romance, o autor, mesmo sem o saber, leva em conta o discurso de outrem, visto que o dialogismo é princípio constitutivo da linguagem; a enunciação emerge em uma dada situação histórica e social influenciando na produção estilística da prosa artística. Por isso não é possível dissociar a produção escrita de seu contexto narrativo e nem isolá-la das múltiplas vozes que a circundam: “Estudar o discurso em si mesmo, ignorar a sua orientação externa, é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado” (BAKHTIN, 1988, p.99).

O discurso romanesco, por ser dialógico, reporta-se sempre a outros discursos, sejam eles imediatos ou tradicionais, em razão de seus valores universalmente reconhecidos, como o universo da tradição greco-romana e as narrativas do texto bíblico. São temáticas que se constituem como relicários que volta e meia são evocados no texto. A linguagem literária configura-se, portanto, como um “microcosmo”, um pequeno mundo que se espelha, de maneira refratada, na realidade sócio-ideológica da vida real. É para ali que adentram as falas, os dialetos, as ideologias cristalizadas, os discursos canônicos e não canônicos, as conversações cotidianas do mundo empírico, a compor, de uma forma singular, a originalidade do texto. Os gêneros intercalares (aforismos, cartas, poesias, etc.), por sua vez, também produzem enunciados no interior da prosa romanesca, contribuindo para a produção de significados. Rompem-se, assim, as fronteiras entre o sistema linguístico fechado da vida extra-literária e o sistema artístico, o qual se torna agora um objeto pluridiscursivo, tecido pelos fios do estilo do autor. Este autor / prosador:

utiliza-se de discursos já povoados pelas intenções sociais de outrem, obrigando-os a servir às suas novas intenções, a servir ao seu segundo senhor. Por conseguinte, as intenções do prosador refratam-se e o fazem sob diversos ângulos, segundo o caráter sócio-ideológico de outrem, segundo o reforçamento e a objetivação das linguagens que refratam o plurilinguismo (BAKHTIN, 1988, p.105).

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Por ter esse caráter intencional de individualidade, não quer dizer que a poesia não possa ter um aspecto plurilíngue, mesmo sendo algo raro. Bakhtin afirma que o plurilinguismo encontra-se nos gêneros poéticos “inferiores”, como a sátira e a comédia. Em um gênero poético mais refinado, todavia, o plurilinguismo não poderia adentrar sem adulterar o gênero, transfigurando o poeta em um prosador.

É nesse sentido que o prosador orienta o seu discurso ficcional e constrói as significações. Por isso a ênfase do pensador russo na necessidade de se estudar a estilística sociológica para analisar o gênero romanesco, uma vez que ele é povoado por vozes sociais e situado historicamente. Não há fronteiras nítidas entre o discurso do autor e o plurilinguismo vivo, literariamente ordenado por ele. O autor pessoa assume uma postura distanciada de si próprio para configurar-se em autor criador da prosa literária. A voz no narrador, portanto, oculta uma outra voz, a do autor criador, cujas intenções são refratadas pela voz no narrador. No caso das obras em análise, tem-se um Oswaldo França Junior enquanto pessoa, um Oswaldo distanciado, assumindo o papel de autor, e um Oswaldo camuflado e refratado pelas vozes do narrador Jorge. Enfatiza-se essa consciência relativizada, refratada, porque o autor criador não se autodefine no texto e nem se apresenta explicitamente, e também decorre disso que esse autor isenta-se da responsabilidade pelo que é dito e a transfere ao narrador e às personagens.

A figura do autor criador é fundamental e insubstituível na atividade estética. É dele que parte o excedente de visão para a organização da sua criação, a qual se descortina fora dele. Esse autor “contemplador” é o centro organizacional das falas e situa-se fora da narrativa imediata; ele estiliza o discurso do narrador, o qual é um dos elementos composicionais da arquitetônica do texto.

Ao tratar do plurilinguismo no romance, Bakhtin (2010, p.135) afirma que “a pessoa que fala e o seu discurso constituem o objeto que especifica o romance, criando a originalidade gênero”. É pela representação artística das falas das personagens, enquanto sujeitos históricos e concretos, que a pluralidade de línguas adentra as tramas da narrativa, compondo uma linguagem própria que particulariza o texto, que o distingue de outros gêneros. A voz discursiva do gênero epopeico, por exemplo, evoca essa distinção ao representar a figura do herói que vive em um mundo épico, isento de contestações ou embates discursivos: “A epopeia tem uma perspectiva única e exclusiva. O romance contém muitas perspectivas, e o herói geralmente age em sua perspectiva particular” (BAKHTIN, 1988, p.136). De forma lírico-mitológica reverenciam-se as glórias do passado, idealiza-se uma visão de mundo em que os feitos e virtudes de um povo foram muito maiores e melhores do que no tempo presente, e que precisam ser cantados e contados àqueles que não tiveram a mesma nobreza de espírito. Na epopeia não podem ocorrer vozes

dissonantes a essa valorização do objeto. Aqui se enquadram, por exemplo, a saga portuguesa Os Lusíadas, a épica homérica Ilíada e Odisseia e o poema brasileiro Caramuru, em que o frei Santa Rita Durão, ao poetizar o descobrimento da Bahia em versos decassílabos, declara o seu amor à pátria.

O romance, por sua vez, é poliglóssico, bivocal. Concentra duas consciências, a criadora e a do objeto criado; ambas possuem individualidade e volição em si mesmas, expressando-se em um sistema literário organizado. Nesse sentido até a técnica literária de fluxo de consciência, com a sua não linearidade, obedece a uma certa ordem, pois determinada linguagem ali utilizada auxilia na compreensão de outra. Dessa pluralidade discursiva emanam ruídos do passado, ecos do presente e possibilidades de futuro, os quais se entrecruzam imbricados por amplas coordenadas históricas, formando um todo coerente no grande enunciado que é a obra literária, ligado entre si por relações dialógicas.