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O romance

No documento rafaelsenracoelho (páginas 69-73)

CAPÍTULO 3 – O PAPEL DAS LEMBRANÇAS E ALGUMAS MEMÓRIAS

3.2. O romance

70 Com o fim do Ciclo da Coca-Cola, após o romance Quando fui morto em Cuba (1982), os dois romances de Roberto Drummond escritos nos anos 80, Hitler manda lembranças (1985) e Ontem à noite era sexta-feira (1988), fazem considerável sucesso. Mas é em 1991 que o escritor publica seu maior sucesso, Hilda Furacão. De acordo com Duque,

A popularidade da obra drummondiana acontece, com reconhecimento nacional e internacional, através do romance Hilda Furacão (1996), que permaneceu mais de um ano na lista dos campeões de venda. Foi traduzido posteriormente para o francês, o espanhol e o sueco, e escolhido por um júri formado por especialistas e professores de literatura como um dos cem melhores romances do século XX em Língua Portuguesa. O sucesso deste romance seria resultado do mistério envolvendo Hilda, que trazia sempre uma indagação, dando ao leitor a sensação de que durante toda a narrativa foi enganado pelo autor (DUQUE, 2012, p. 67-68).

Hilda Furacão é um romance que se opera sobre duas camadas: no centro de tudo, há a história de Hilda, moça da elite belohorizontina que rompe com as ideologias e espectativas sociais de seu meio ao assumir a prostituição como atividade de vida. Esse núcleo essencial envolve a história de amor entre Hilda e Frei Malthus, que guarda semelhanças com o mito de Cinderela (do qual trataremos, mais à frente). Acima dessa camada, a obra se reveste de procedimentos mais datados, situados no contexto político e social dos anos 50 e 60. Esse núcleo superficial não só orienta o estilo de escrita de Drummond, mas também ajuda a entender toda a gama de narrativas paralelas que orbitam sobre a trama essencial de Hilda/Malthus; uma série de histórias menores envolvendo personagens paralelos. Tudo isso sempre oscilando (propositalmente) entre figuras fortemente baseadas em pessoas reais e outras figuras ficcionais, sem que o leitor possa distinguir com facilidade entre ambas.

Esse recurso fica claro já na dedicatória do livro, como mostra Duque:

A agregação dos paratextos e dos epitextos públicos funcionará como auxiliares para o entendimento dessa produção literária de Roberto Drummond que dedica seu quinto romance a vinte e sete pessoas, dividindo-as pelas nacionalidades, brasileira, cubana e americana, encerrando a dedicatória a Hilda Furacão, por metalepse, “onde ela

71 estiver”, antecipando e fortalecendo a existência do personagem (DUQUE, 2012, p.100).

As dedicatórias, que na maioria dos romances tem uma função exterior ao texto em si, foi utilizado por Drummond já como um reiterador do discurso ambíguo que dará o tom do romance. Elas também deixam claro como se dá a divisão dos núcleos do romance: a maior parte dos citados são os personagens paralelos, até que é mencionada Hilda por último, evidenciando que ela é o ponto fundamental de um romance onde se "penduram" tantas outras narrativas alternativas:

Os brasileiros homenageados somam vinte e uma pessoas, listados por ordem alfabética, uma estratégia para homenagear todos, ao mesmo tempo, e não sua importância afetiva. A maioria dos citados comunga pensamentos de esquerda, envolvidos diretamente com o movimento comunista e contra a repressão pós-1964, na demonstração de valorização das pessoas por Drummond, que ironizará no enredo, porém, os pensamentos juvenis de esquerda, anteriores a 1964. (...)No final da dedicatória encontra-se a musa inspiradora Hilda Furacão, em um destino desconhecido, incluída como um lembrete, para que a narrativa se volte para a história da musa sexual, camuflando a estrutura geral do romance, onde a trajetória jornalística e o ideário político de Roberto Drummond, na década de 1960, imperarão em todo o fluxo do enredo, colaborando para uma narrativa memorialística, mesmo o autor não lhe pontuando essa referência (DUQUE, 2012, ps. 100-101).

Os dados do narrador-personagem de Hilda Furacão se confundem com os do autor: de um lado, temos Roberto Drummond, jornalista, eternamente apaixonado pela Bela B., comunista na juventude, amigo de Frei Malthus. De outro, Roberto Drummond, jornalista, casado por mais de 40 anos com Beatriz Drummond, comunista na juventude, amigo de Frei Beto.

Como em boa parte da obra de Drummond, há uma proposital confusão entre ficção e realidade. A mistura de memórias e criações vai além da vida íntima de Roberto, envolvendo diversos episódios, lugares, personagens, com destaque para a protagonista Hilda Furacão.

Supostamente inspirada em uma mulher verdadeira (e que, depois de anos desaparecida, foi encontrada em 2014, vivendo em um asilo na Argentina

72 (DRUMMOND, 2014), a personagem mistura diversos outros elementos reconhecíveis para a juventude belo-horizontina dos anos 50 e 60 – a ponto de Roberto Drummond dizer que "sei de pelos menos oito ou nove mulheres que têm certeza que Hilda foi inspirada nelas" (DRUMMOND, 2014).

O narrador-personagem de Hilda Furacão justifica, no próprio texto do romance, que tudo aquilo está sendo escrito para suas tias, Ciana e Çãozinha. Tal recurso, longe de adornar o texto com a forma de um romance epistolar, é mais um dos diversos elementos com que Roberto Drummond reveste sua escrita. A maioria de seus maneirismos envolve tanto a já citada literatura pós- moderna (fragmentação, digressões inesperadas, relação próxima entre ficção e realidade) quanto empréstimos do formato jornalístico (que vão desde a própria escrita com ares de crônica, passando pelos términos de capítulo semelhante aos folhetins, e até as entrevistas que o personagem Roberto faz com outros personagens).

Ao colocar tanto da sua vida e da vida de tantas pessoas reais no romance, Roberto Drummond apresenta um texto sedutor justamente por essa penumbra factual, pela ambiguidade que se recusa a revelar supostas verdades. Eventos fantásticos e pessoas de descrições surreais são postas lado a lado com lugares e nomes completamente verídicos. Os dados históricos e memorialísticos da história de Minas Gerais e do Brasil se ampliam e ganham um novo corpo, através da representação no romance.

A literatura pós-moderna, dada a repetir e reelaborar movimentos e estéticas de outras épocas, acaba por incorporar essa postura tênue entre ficção e realidade, prática que, na verdade, nada tem de novidade. Podemos remontar à Grécia antiga, onde as aventuras dos seus deuses eram narradas como se fossem reais, sem uma noção de que aqueles entes poderiam talvez ser representações, alegorias, ficções. De acordo com Peter Burke, "escritores gregos e seus públicos não colocavam a linha divisória entre história e ficção no mesmo lugar que os historiadores a colocam hoje (ou foi ontem?)" (BURKE, 1997, p. 108).

Outro elemento associado à literatura pós-moderna e do qual se vale Drummond é o recurso das digressões, uma espécie de marca registrada de sua escrita. Em diversos momentos, o narrador-personagem abandona

73 bruscamente as situações que vinha descrevendo, e parte para a exposição de outras situações, ou mesmo reflexões pessoais e considerações variadas. Contudo, o autor afirma claramente que suas influências em tal recurso é mais antiga: "Depois eu descobri, e isso foi fundamental para escrever Hitler manda lembranças, Ontem à noite era sexta-feira e fundamentalmente Hilda Furacão, a digressão, através de Sterne, que foi o mestre de Machado de Assis e pai da digressão" (DRUMMOND. In: DUQUE, 2004).

Para Duque,

Roberto Drummond acreditava no estilo do que ele chamou de uma literatura aparentemente fácil, mas que não o é, pois, como Sherazade, em As mil e uma noites, ou como os contadores de casos do Estado de Minas Gerais, é primordial o envolvimento do ouvinte na ação persistente do contador, para que o receptor seja seduzido plenamente. A técnica da digressão, esse afastamento e desvio do tema principal constantemente, com a apresentação de novos conflitos, compõe a obra drummondiana juntamente com a expectativa constante diante do mistério que envolve a narrativa (DUQUE, 2012, p. 102).

No documento rafaelsenracoelho (páginas 69-73)