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O sentido de Parlamentarismo para Schmitt

3. A crítica da democracia parlamentar

3.1 O sentido de Parlamentarismo para Schmitt

Qual o sentido de parlamentarismo referido por Carl Schmitt ao elaborar suas críticas? As noções políticas de parlamentarismo e presidencialismo, dada a realidade constitucional política contemporânea, poderiam levar a descaminhos da exegese.

A forma de governo parlamentar (especialmente o governo republicano- parlamentar), ainda que com algumas variações, implica geralmente na formação de um Parlamento através da escolha de seus membros por meio do voto igualitário da população. Esse Parlamento, representante da vontade delegada do povo, por sua vez, elege o Presidente da República – “Chefe de Estado” – o qual, por seu turno, se encarrega de nomear o Primeiro Ministro – “Chefe de Governo” – que por seu gabinete ministerial governa a nação. Tal sistema difere do presidencialista na medida em que o Presidente da República, nesta forma de governo, é simultaneamente Chefe de Estado e Chefe de Governo, daí a ausência de um gabinete ministerial no verdadeiro sentido e a colocação de ministros ou secretários de estado em seu lugar. Tanto o Presidente da República, como os representantes das Casas Legislativas (delegados do povo) e Senatoriais (delegados dos estados) são eleitos pelo sufrágio universal da população, motivo pelo qual se menciona que nesse sistema de governo o Presidente da República é portador de legitimidade democrática direta. Canotilho ilustra a diferenciação de tais formas de governo:

“A forma de governo parlamentar assume também várias expressões concretas, mas existem traços estruturantes que se podem sintetizar em três idéias:(1) responsabilidade do gabinete perante o Parlamento: o gabinete ou o primeiro ministro é nomeado pelo chefe de estado (rei ou presidente da república), mas deve antes, obter a confiança do Parlamento, havendo obrigação de demitir-se no caso de aprovação de moções de censura ou de rejeição de votos de confiança; (2) dissolução do Parlamento pelo chefe de estado, sob proposta do gabinete, ou seja, a dissolução é feita por decreto presidencial ou real, mas se trata-se de um acto de iniciativa do gabinete que assume a responsabilidade política do mesmo através da referenda; (3) eleição do presidente da república pelo Parlamento, sem

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relevantes funções de direcção política mas com um estatuto constitucional de irresponsabilidade política perante o mesmo.[...] Há vários países com um regime ou forma de governo presidencial...Os traços fundamentais constitucionalmente estruturantes da forma de governo presidencial podem sintetizar-se nos termos subsequentes. a) Separação de poderes: o “poder legislativo”, “o poder executivo” e “poder judiciário” são constitucionalmente consagrados como três poderes independentes. Trata-se, desde logo, de uma independência orgânica, designadamente no que respeita ao executivo e legislativo... b) Governo: o Presidente da República é, simultaneamente, chefe de estado e chefe de governo, e daí a ausência de um gabinete ministerial no verdadeiro sentido e a existência de simples secretários de estado, subordinados ao presidente. Além do monopolismo do executivo – o poder executivo é conferido ao Presidente – verifica-se a ausência de um governo colegial, pertencendo a definição de programas e a preparação de políticas públicas a esquemas organizativos da presidência ou até a assistentes pessoais da mesma”109

O parlamentarismo da República de Weimar possuía de certa forma, a junção desses dois sistemas dentro de seu espectro, unindo o contorno da figura do Presidente da República, como Chefe de Estado eleito pelo sufrágio universal, com o próprio Parlamento, este igualmente composto por meio de eleição direta pelos pares da nação, instituição à qual era incumbida a aprovação e fiscalização dos atos do Chefe de Governo – no caso alemão o Chanceler, nomeado pelo Presidente da República. Esse sistema de governo – parlamentarismo orleanista – trazia em seu bojo, assim, um sofisticado balanceamento de poderes, mormente se imaginarmos a figura do Poder Judiciário dentro do papel Constitucional da Carta de Weimar.

Essa situação sui generis da forma parlamentar alemã de Weimar também é apontada por Michael Stolleis quando analisa A Posição do Presidente do Reich. Para ele, o texto da Carta de Weimar teria se espelhado tanto no modelo americano quanto no modelo francês, gerando, como resultado final, uma presidência plebiscitária (artigo 41) com poderes emergenciais (artigo 48), combinada com um governo assentado em bases parlamentares (artigo 54), “fato que fora inicialmente visto pela maioria como uma feliz síntese porque prometia reconciliar a democracia com os elementos

109 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4ª ed. Coimbra:

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monárquicos”.110 Entretanto, adverte o autor que entre 1920 e 1928, a discussão jurídica sobre esse modelo passou a focar as justificativas das implementações e leis de emergência emanadas do Presidente do Reich, culminando, na década de 30, no foco quase que exclusivo de seus poderes ditatoriais excepcionais e na sua posição de Guardião da Constituição e do próprio Reich (fato esse que será explorado em profundidade por Schmitt).

Há outro sentido, porém, contido na locução “sistema parlamentar” utilizada por Schmitt, relacionado em maior peso com a própria democracia representativa, contido na expressão democracia parlamentar. É derivado da teoria democrática representativa, que busca equacionar a formação e o exercício da vontade geral por meio das instituições representativas, das eleições periódicas, do pluralismo partidário, etc., caracterizando-se, portanto, como “princípio de organização da titularidade e exercício do poder”111. A leitura de A situação intelectual do sistema parlamentar atual indica que Schmitt preocupou-se em criticar o sistema em questão por ambos os flancos. Em um primeiro momento, ele trata o sistema parlamentar como exercício da representação popular derivada do sufrágio universal, colocando o Parlamento como a instituição onde o cidadão é representado por meio de seus pares eleitos, pouco importando, ao menos a priori, a distinção entre tal sistema e o presidencialismo, no qual não há a figura do Primeiro-Ministro:

“O governo parlamentarista pressupõe a existência de um Parlamento, e a construção de um governo como esse significa que se parte do Parlamento como instituição existente, para expandir suas atribuições à maneira do discurso do constitucionalismo, que diz respeito que o Legislativo deve influenciar o Executivo. O pensamento básico do princípio parlamentarista não pode repousar essencialmente nessa participação do Parlamento no Governo, e não se pode esperar muito de uma elucidação desse postulado do governo parlamentarista para a questão em pauta. (...) A justificativa mais antiga do Parlamento, sempre repetida ao longo dos séculos, reside na consideração de uma certa expeditividade externa: na verdade, o povo, numa autêntica comunhão, é que deveria tomar as decisões, como fazia originalmente quanto todos os membros da comunidade ainda podiam e

110 “...was initially seen by most as a felicitous synthesis because it promised to reconcile the

democratic and the monarchic elements”. STOLLEIS, Michael. Op. cit, p. 93

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reunir sob a grande tília da aldeia. Mas por motivos práticos, é impossível fazer perguntas a cada um deles sobre detalhes insignificantes. É por isso que nos valemos, sensatamente, da ajuda de uma comissão eleita de pessoas confiáveis, o que se constitui, afinal, no Parlamento. Assim é que surge a famosa relação: o Parlamento é uma comissão do povo, o governo é uma comissão do Parlamento. É assim que a idéia do sistema parlamentar aparece como algo essencialmente democrático.”112

Portanto, inicialmente, o autor aborda o parlamentarismo como pretenso sistema de exercício da democracia por meio da representação popular. Diga-se pretenso porque, logo em seguida, o autor separa tais conceitos, estabelecendo que a confusão entre ambos – fruto da própria doutrina liberal – seria meramente acidental. Por outro lado, ao analisar A restrição do Parlamento pela legislação113, Schmitt deixa à mostra sua preocupação com a forma de governo parlamentarista e a aparente confusão que possa ser gerada entre a atividade legislativa e executiva, indicando que por tal aspecto também merece censura:

“O Federalista explica isso de modo muito menos doutrinário (1788): O Executivo deve ficar nas mãos de um único homem, pois sua energia e atividade dependem disso. O fato de a legislação ser uma deliberação é um princípio geral, reconhecido pelos melhores políticos e homens públicos, e por isso mesmo é que ela deve ser sancionada por uma assembleia geral, ao passo que o Executivo detém o poder decisório e a defesa dos segredos do Estado, coisas que diminuem na mesma proporção em que aumentam o número.”114

Notam-se aí outros dos termos que o autor utilizará mais tarde para sua doutrina de soberania e fortalecimento do poder do Estado, tais quais, “poder decisório, segredos de estado, negociação enérgica, decisão unificada”, dentre outros.

112 SCHMITT, Carl. Situação intelectual do sistema parlamentar atual. São Paulo: Página Aberta

Ltda., 1996, p.34.

113 Idem, tópico inserido no Capítulo II da Obra, Os princípios do sistema parlamentar. 114

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