• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 | Religião: a dimensão humana da transcendência

2.3. O ser humano é um ser religioso: os indícios

É fácil constatar que a religião é um dado permanente da história humana. Aliás, parece que a humanidade «necessita» da religião e da experiência religiosa concretizada através de múltiplas formas e tradições. E que, mesmo que tantas formas e tradições religiosas tenham desaparecido, tantas outras acabam por surgir por motivos de «força maior». Como tal, esta «força maior» não é o resultado do esforço ou conquista exclusiva dos seres humanos. Ela supera as teorias sociais evolucionistas da História ou do positivismo que consideravam a religião como um estádio anterior à maturidade do conhecimento, do desenvolvimento e progressos humanos.

É verdade que este argumento ainda não é suficiente para demonstrar o que se entende como a conaturalidade da dimensão religiosa no homem embora possua um dado favorável. É certo que sempre existiram na História pessoas e comunidades que não possuíam atividade religiosa. De onde se segue, que essa mesma atividade pode refletir de modo fiel a cultura em que surgiu, ficando reduzida a um mero produto da sociedade. Além disso, considera-se até que, dentro de algumas correntes das ciências sociais, o religioso entra na vida da pessoa por meio da ociosidade, da ignorância ou do medo.39

Mas para o nosso autor, mantém-se a possibilidade de justificar racionalmente a existência da religião ou, se preferirmos, a dimensão religiosa humana. O caminho que

38 Cf. Ibidem, Ibidem 39 Cf. Ibidem, p. 10

68

Velasco segue é o da demonstração da conaturalidade da dimensão religiosa na pessoa. Como já foi dito anteriormente, não devemos ficar com a impressão de que se trata de identificar, por exemplo, uma faculdade natural na pessoa na qual reside a capacidade de se relacionar com o transcendente. Não se trata de entender o dado «natural» nesse sentido, como se fosse algo que fizesse parte da sua natureza humana. Se assim fosse, perderíamos a gratuidade total do religioso que é, aliás, referência comum quando alguém tenta descrever a sua experiência religiosa. Normalmente, afirma-se que se é tocado, que se experimenta uma iniciativa externa a si, uma vez que “o homem religioso é sempre um homem à escuta e a sua atitude é de resposta”.40

Neste sentido, Velasco lembra que a pessoa religiosa é aquela que se sabe reconhecida, que se sabe amada, por alguém que lhe devolve a consciência da sua própria existência. Por isso, o «ser-se religioso» é a orientação da própria vida de uma determinada forma em resposta a uma iniciativa que nasceu de uma relação e deixou a sua marca. A correspondência humana a esta iniciativa constitui uma predisposição natural dentro da qual se torna possível a decisão pessoal de orientar a sua vida de um modo religioso.

Mas como podemos identificar essa predisposição conatural da relação religiosa? Como se deteta, como se pode aferir? Para Velasco, a resposta está apenas nos «indícios» presentes na existência humana. Não é possível fazê-lo de outro modo, como através de um método demonstrativo de tipo objetivo por se tratar de uma dimensão totalmente originária da pessoa. No entanto, não deixa de se refletir e estar presente em todas as dimensões da vida de cada pessoa. Daí que só através de indícios.41

O indício fundamental na experiência humana já está subentendido no que foi dito anteriormente: é o reconhecer-se como alguém amado de forma pessoal e sentir-se chamado a realizar-se num amor absoluto. Para Velasco, este indício é o garante daquilo que considera ser a existência religiosa, uma existência que, sabendo-se como o resultado de uma iniciativa

40 Ibidem, p. 11. 41 Cf. Ibidem, Ibidem

69 provocada pelo amor, só pode cumprir-se totalmente na correspondência a este mesmo amor. Este movimento é um movimento de saída de si mesmo e cada pessoa, ao longo da sua biografia, encontra muitos sinais que lhe mostram a necessidade de alguém sair de si, indo para lá do desejo de posse, satisfação ou domínio que a encerram em si, procurando encontrar o caminho da sua realização.42

Para Velasco, este sentido de existência religiosa experimenta-se já na relação vivida com outras pessoas, na relação eu-tu, no encontro interpessoal. Para que o diálogo, o amor, a comunicação aconteçam é necessário considerar o «tu» de cada relação como alguém que é irredutível a qualquer tentativa de posse, de domínio ou de coisificação. Por isso, nesta relação interpessoal, experimenta-se já a transcendência que cada pessoa faz de si, abandonando-se para ir ao encontro do outro. Neste movimento de saída, de transcendência, está, então, a sua própria realização e é instituída uma nova ordem, a ordem do amor.43

De que maneira é que a relação interpessoal é um indício da relação religiosa, dessa marca presente da iniciativa originária do amor? O autor espanhol oferece-nos dois factos que permitem fundamentar a relação religiosa na relação interpessoal. No fundo, trata-se de mostrar como a relação vertical se fundamenta na relação horizontal e esta, por sua vez, revela-se como indício da primeira. A relação eu-tu possibilita que cada pessoa aceda a algo mais alto que ela própria. No entanto, ela também descobre que esse nível de relação horizontal ainda está longe de satisfazer em absoluto a necessidade de ser-em-relação que cada pessoa traz em si. Isto explica-se pelo facto de que o convite que o outro me faz a existir já me supõe existente. Ele não é o absoluto que garante a minha necessidade total de ser. Daí que Velasco, nas suas palavras, conclui

“que há um nível do meu ser que não encontra razão na relação com as outras pessoas, um nível que está condenado à solidão e, assim, à facticidade do ser sem sentido caso não houvesse mais do que pessoas ao nível humano [portanto, horizontal]”.44

42 Cf. Ibidem, p. 12.

43 Cf. Ibidem, p. 13. ordo amoris 44 Ibidem, Ibidem

70

Aquilo que poderia ser entendido como um vazio ou como uma negatividade produzida pela incapacidade da relação interpessoal não poder ser «tudo» em nós, deixa em aberto o indício da presença de um absoluto transcendente, pessoal, como fundamento da vontade de ser que cada pessoa tem. Duas pessoas que se relacionam, que criam e recriam no contexto de uma relação interpessoal, estão sempre diante do risco de trazer à sua relação as suas marcas da fragilidade, da finitude, do fracasso, da infidelidade, da morte. Mas não estão condenadas para sempre. É precisamente essa chamada à existência pelo sujeito absoluto, um chamamento que funda a relação religiosa, que o ser humano pode prolongar à sua medida finita um ato de criação interpessoal. Velasco chama-lhe o «sacramento do irmão», ou seja, o indício mais claro da pré-disposição religiosa é o reconhecimento do outro como um irmão, um outro como eu. Mas tal indício só poderá ser captado na medida em que se viver uma relação interpessoal que o sustém.45

Desta maneira, Martin Velasco conclui:

“se o essencial da religião é a transcendência absoluta, a prova mais eficaz da existência dessa atitude é, sem dúvida, uma existência que ao nível humano é capaz de se transcender no serviço e no amor efetivo aos outros. É este critério que nos pode ajudar a discernir entre religião verdadeira e religião aparente ou pseudo-religião”.46