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Capítulo 2 Raízes e diálogos

2.2. A figura feminina

2.2.4. O silêncio e a moderação das conversas

Nos séculos XVII e XVIII, os excessos de toda natureza são sempre condenados. Entre os excessos condenáveis identificavam-se as conversações demasiadas, as gritarias, o falar muito, apresentados como práticas femininas.

Meus Cavalheiros, os homens de bom juízo disputão com razões, as mulheres com palavras; os rapazes com mofas.93

Dessa forma, pregava-se como qualidade para as mulheres, o comportamento oposto: o silêncio, a moderação nas conversas, o tom de voz baixo.

(...) o que nella me cativa he o seu (...) silencio, a sua modéstia, o seu retiro. (...) Sabe callar, e sendo no obrar aturada, não he arrebatada (...).94

Em Casamento Perfeito, Diogo de Paiva de Andrade dedica um capítulo inteiro de seu livro à necessidade das mulheres serem caladas. O silêncio era tido como qualidade principalmente entre as mulheres casadas, pregado na literatura como característica de pessoas virtuosas e nobres.

E era o silêncio antigamente tão temido, e respeitado até dos mesmos difamadores, que Virgílio, que o foi tão grande da Rainha Dido, e com tanta soltura, e atrevimento lhe assacou testemunhos contra a pureza, não se atreveu a lhos assacar contra o silêncio; porque, quando fingiu, que os embaixadores de Enéas lhe foram a Cartago pedir socorro, diz, quando ela lhe deu resposta.

Tum breviter Dido vultum, demissa profatur.

Quer dizer: Falou Dido pouco, e com o rosto baixo. (...) 95

Pregava-se a moderação das conversas, isto é, as mulheres casadas deveriam falar pouco, principalmente com estranhos, e conversar somente com seus maridos. Contudo, até no diálogo com os maridos deveria haver cuidado, pois, segundo ele, mulheres muito faladoras perdiam o interesse dos esposos. As esposas nunca deveriam falar asperamente com seus maridos, nem brigar com eles, o proposto é que fossem suaves e mansas, não reclamassem nem brigassem.

Também aconselhava-se que deveriam tomar cuidado com as conversas com outras mulheres, pois seriam más companhias, as faladeiras e as que pregassem maus hábitos, inclusive o de falar demais e de brigar com os maridos.

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Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo I, p. 131.

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Como o silêncio, e o sofrimento são circunstâncias tão necessárias para a quietação das mulheres casadas, a boa razão, e discurso mostram, que o não fica sendo menos a conversação de pouca gente, pois claro está, que quando se lhes encomenda, que falem pouco, também se lhes deve encomendar, que falem com poucos, (...)e para uma e outra segurança convém, que essas poucas pessoas, com quem tratarem, sejam na língua tão registradas, que com razões pouco importantes lhes não façam perder, ou arriscar duas perfeições, que tanto importam, como é o sofrer, e o calar, sem as quais não podem viver quietas, nem bem casadas; porque será muito possível, que tratando com uma só pessoa, seja ela tão desatada na língua, que por si venha a falar mais que uma multidão copiosa (...).96

Uma das preocupações do autor é que essas amizades ajudassem inclusive a correspondência amorosa, levando cartas e recados. Por isso, os maridos deveriam tomar cuidado com a qualidade das pessoas com as quais as mulheres conversassem, desde os criados até os visitantes.

(...) e as que andam fazendo queixas desnecessárias, e seguindo conselhos impertinentes, tudo contra a inquietação de sua vida, e perfeição de seu estado, se conversarem com pouca gente, e essa qualificada em prudência, e virtude, nem podem ter ocasião de se andar queixando, nem arriscar-se aos trabalhos, e discórdias, que costumam causar ruins conselheiros; pois está claro que as tais pessoas lhes não devem nunca consentir palavras, senão mui escolhidas e concertadas, nem menos dar-lhes nenhuns conselhos, senão mui acertados, e proveitosos, e o que elas devem seguir, e abraçar com todas suas forças, é o de quem lhes encomendar que tragam sempre o pensamento na Lei de Deus, e a ocupação em obras de virtude, entre os limites da vida, que professam (...).97

No romance de Teresa Margarida, embora o silêncio e a moderação das conversas também sejam pregados, a preocupação da autora parece recair em outro foco: o das conversas fúteis. Embora a autora também esteja tratando da má influência da companhia de outras mulheres e do teor de suas conversações, o temor maior parece ser não com a felicidade conjugal, mas com a corrupção da moral e dos bons costumes.

Criticam-se as conversações desregradas, pois, para a personagem, as mulheres que não se portam com moderação, falando alto e ao mesmo tempo, seriam tidas como as que não sabem se comportar.

Este mal inveterado se acha nas mulheres, que tomam lições no seminário da vaidade, onde se aprendem mil erros, são contínuos os bailes, recreios, conversações, em que na chusma desentoada falam muitas ao mesmo tempo; umas em dilatados cumprimentos, outras repetindo histórias mal aplicadas, com os quais pretendem os créditos das entendidas; outras se fingem sábias, falando nos Escritores, e tanto a arte aos Poetas, e outras, que como estátuas de vaidade na contemplação da sua beleza, e bizarria, se estão revendo em si mesmas, e exercitando-se em visagens, e melindres; porque muitas ignoram

95

Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 169.

96

Ibidem., p. 180.

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que a formosura do rosto apenas nasce, tem mil contrários, que a arruínam; e que só faz cara ao tempo, e aos trabalhos, a que com suavidade as faz amáveis, e tão poderosas, que confundem a ousadia, tiram as armas ao atrevimento, e triunfam dos rendidos, sem mais trabalho que recomendarem-se silêncio, que costuma alegar a seu favor; e que em degenerando esta suavidade de espírito, perdem o preço para com os que lhes são superiores, se fazem enfadonhas aos iguais, insofríveis aos inferiores, e aborrecidas de todos, e quando prepara, para outrem o veneno, bebem a maior parte.98

Além disso, o teor das conversas nos bailes e festas também não era dos mais elevados; segundo a narradora, restringiam-se a histórias frívolas, mostras de falsa erudição, ou conversas fúteis que visavam apenas o divertimento e as lisonjas.

Mulheres desse tipo, segundo a personagem Delmetra, tornar-se-iam enfadonhas, porque ninguém gostaria de sua companhia. Em resumo, o que se apresentaria é a idéia de que na corte as damas perdem tempo com fofocas e falsos elogios. A referência à “falsa erudição” também é importante, pois mostraria que as mulheres da corte desejam apenas ser elogiadas, procuram falar de arte e de literatura sem realmente terem conhecimentos, o que ao invés de servir para valorizá-las, acabaria denunciando sua ignorância. A crítica é contundente, e o quadro é o da frivolidade e da falta de conhecimentos das mulheres da corte.

Já as mulheres que se manteriam em silêncio, quando não há nada interessante para se dizer, seriam superiores àquelas. O problema dessas mulheres de conversa e hábitos fúteis, segundo a personagem, seria a falta de sabedoria: esquecem-se que o tempo passa e quando envelhecerem (a formosura do rosto apenas nasce, tem mil contrários, que a

arruínam), perderão sua “beleza” e com ela os elogios que motivaram suas vidas.

Contudo, segundo Delmetra, as mulheres amáveis e silenciosas continuariam tendo seu valor e seu poder, porque mesmo após envelhecerem seriam motivo de afeto e atenção, porque sua companhia agradável e suas palavras elevadas propiciariam prazer.

Teresa Margarida parece estar pregando no seu romance o mesmo padrão de comportamento que encontramos em outros textos do século XVIII e XVII. Embora estejam sendo pregados o silêncio e a moderação das conversações, o interesse da autora está voltado, ao que parece, para questões específicas da sua realidade e de seu conhecimento: as conversas fúteis das mulheres na corte portuguesa e sua falsa erudição.

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Em Casamento Perfeito cujo objetivo de Diogo de Paiva de Andrada é a busca nos escritores greco-romanos de exemplos universais de comportamentos, que foram pregados para os casados desde a Antiguidade, há uma ligação com modelos comportamentais femininos filiados a uma longa tradição civilizadora e moralizante.

Nesse sentido, sua preocupação é mostrar às esposas exemplos para a felicidade conjugal. Como seu objetivo é servir de “manual para as casadas”, procura ser o mais geral possível, não levantando questões de sua época, para os quais possivelmente não encontraria exemplos na tradição clássica ou na vida dos santos, por isso procura apagar inclusive referências à classe social para que um maior número de pessoas, fossem da nobreza ou não, pudesse utilizá-lo.

Esse apagamento social serviria para que o livro fosse mais lido. Contudo, o apagamento não é absoluto, pois há referências de ordem econômica: criados, confortos, educação, livros, etc, que identificam seus leitores e leitoras como integrantes das classes mais abastadas.

Teresa Margarida estaria mais ligada a sua realidade do que Diogo de Paiva de Andrada, por isso as questões que se apresentam no seu romance seriam mais contemporâneas de sua época, a problematização seria mais específica: a vida na corte na metade do século XVIII. A alegoria do mundo greco-romano é apenas um painel, um cenário para o espetáculo real, e para os problemas que ela resolve discutir.