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O sistema de parcerias

No documento Monteiro Lobato: contista e editor (páginas 151-155)

5. O CAIPIRA VIA ANTONIO CANDIDO

5.1 O sistema de parcerias

A parceria pode ser considerada o ponto central na tese de Antonio Candido. Em Os Parceiros do Rio Bonito (1971), o pesquisador mostrou que diversas atividades realizadas pelos moradores de Bofete eram feitas em parceria entre os caipiras do

mesmo bairro ― em especial os mutirões, que ocorriam em ocasiões diversas59.

O exemplo mais comum de mutirão ocorria na agricultura e consistia na reunião de caipiras para trabalhar a lavoura de determinada pessoa, fosse na plantação, na colheita ou até mesmo na “bateç~o de pasto”60, em troca, o dono da plantação, chamado na

ocasi~o de “patr~o” pelos colegas, oferecia a refeiç~o para aqueles que estivessem trabalhando e aceitaria ajudá-los assim que fosse convocado61.

Tal atitude do caipira mostra a capacidade de organização e a consciência comunitária que possuíam. A ajuda ocorria até mesmo independente de pedidos, apenas com a percepção de que alguém da vizinhança estivesse necessitando de algum tipo de trabalho em grupo.

Esse “serviço de troca”, proporcionado pela parceria, também ocorria com as caças. Quando um indivíduo conseguia alguma carne — que não a de porco ou de frango, que geralmente os moradores possuíam no próprio quintal — ela era repartida entre os vizinhos mais próximos. Esse gesto era uma forma que os caipiras encontraram de sempre ter “mistura”62 diferente em casa,

mantendo uma relação amigável com os moradores mais próximos e uma alimentação um pouco mais diversificada e saudável, já que carne era algo raro em seu cotidiano.

59 Em um momento de sua estadia na região, os caipiras se reuniram para

construir a casa de uma senhora de idade. Para isso, vizinhos e familiares trabalharam em conjunto, sem que a senhora precisasse pagar nada por isso.

60 Conforme Brandão (1983, p. 82).

61 Obviamente, isso não era uma regra. Alguns, não tão preocupados com

sua moral ou ainda não familiarizados com a vizinhança do bairro, não repartiam o que conseguiam e não participavam dos mutirões. Porém, isso fazia com que acabassem sendo isolados.

62 A comida costumeira do caipira era arroz, feijão e farinha. A carne ou

algum outro tipo de alimento que acompanhava a refeição era chamado, então, de mistura.

Mais importante e interessante é a oferta de alimentos entre vizinhos, na realidade um sistema amplo de troca sob a forma de presente, pois o ofertante adquire em relação ao beneficiado uma espécie de direito tácito a prestação equivalente.

[...]

Quando se mata um porco, ou uma caça (capivara, veado, paca, cutia, quati, tatu), envia- se um pedaço a cada vizinho. Segundo a boa tradição de cortesia deve-se mandar a todos; na prática, aos escolhidos, por proximidade ou preferência. Às vezes os vizinhos são tantos ou o animal tão pequeno, que quase nada sobra ao ofertante. Conforme o padrão ideal, porém, ficaria malvisto quem se mostrasse parcimonioso em proveito próprio. (CANDIDO, 1971, p. 143)

Embora a prática de repartir o alimento fosse um costume bonito dos caipiras, sabendo das condições difíceis de vida que possuíam, essa atitude parece não ser benéfica para os moradores da roça. A partir da descrição de Candido, fica claro que, aquelas famílias que não repartiam o que tinham, eram tratadas de maneira rude pelas outras, sendo praticamente isoladas pelas demais.

Essa atitude de isolamento também acontecia com moradores novos dos bairros, que não possuíam ainda o costume de repartir as caças, gesto que dificultava a adaptação dessas pessoas. Esse ato poderia ser restringido às famílias menores ou com melhores condições de vida, entretanto, pelo texto de Antonio Candido, tem-se a impressão de que era um gesto comum entre todos do bairro, inclusive entre aqueles que mal tinham alimento para si.

O sistema de parceria, importante para toda a comunidade caipira, foi muito bem representado em “A vingança da peroba”, de Monteiro Lobato. No início do conto, Nunes é retratado caçando

uma paca que acaba sendo golpeada por um “Porunguinha”63. O

caipira se mostra indignado por não receber nem um pedaço do animal, conforme tradição caipira.

A prosperidade dos Porungas, assim como a inveja e a raiva que Nunes sentia do vizinho, leva-o a tentar mudar. Em pouco tempo ele “remendou mal e mal a casa”, plantou milho e decidiu construir um monjolo para a família. É na construção do monjolo que Monteiro Lobato representou o sistema de parceria entre os caipiras, com a pronta disposição do compadre de Nunes, Maneta, em ajudá-lo a construir seu engenho.

Maneta, como o próprio apelido, ironicamente, revela, não possuía um dos braços. “Esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte à peroba, muito acamaradados. A cachaça cimentara o compadresco antigo [...]. Nunes passava os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um braço só.” (LOBATO, 2009b, p. 60)

A imagem descrita pelo narrador, de Nunes “vendo o compadre desbastar a madeira”, transmite ao leitor a ideia de patroneio, remetendo-nos novamente ao que Antonio Candido observou sobre os mutirões. Ao longo da construção, Nunes aparece diversas vezes apenas observando Maneta, que trabalha incansavelmente, sendo recompensado nem tanto por alimentos, mas sim, pela cachaça ofertada por Nunes.

Nos livros Os caboclos e Conversas ao pé do fogo, não foi encontrado nenhum exemplo de mutirão, porém, no livro de Cornélio Pires, a união dos personagens é vista em todos os contos, especialmente entre Nhô Thomé e Tia Polycena. Eles e outros caipiras viviam em harmonia dentro de uma mesma casa de fazenda e repartiam os bens que possuíam, principalmente, as refeições.

No documento Monteiro Lobato: contista e editor (páginas 151-155)