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O Sonho Americano e a sensação de mal-estar

4. I WANT TO BE SOMEBODY: MASCULINIDADES NA SELVA DE

4.1 O Sonho Americano e a sensação de mal-estar

A “sensação de mal-estar” presente no cinema noir é abordada como um contraponto à esperança, ao sonho. O ambiente hostil da urbe é o pesadelo de um homem que não atinge seus objetivos ou, quando atinge, seus métodos acabam levando-o à ruína. Não há espaço para o herói do noir pensar que “amanhã será outro dia”, pois sua jornada o leva a duvidar dos que estão a sua volta, sendo ele acompanhado de uma constante sensação de ameaça, pois o tough

guy é “constituído em grande parte através de seu isolamento, sua recusa de ser parte de uma

comunidade, sociedade, família, ou nação”249 (ABBOTT, 2002, p. 26, tradução nossa). Para muitos protagonistas não existe o espaço de afeto, que seria localizado na família e num ideal de lar. Logo, o que lhe resta é a cidade e suas variadas ameaças à sua vida e à sua identidade.

Segundo Lawrence Samuel (2012), as duas ideias que sustentam o “sonho americano” são o individualismo e a igualdade. E são elas que acompanham a jornada dos

248

what comes after hope?

249 constituted in large part through his isolation, his refusal to be a part of a community, society, family, or

protagonistas no meio público, na afirmação de uma masculinidade apta a competir, lutar em meio a um espaço hostil, seja na cidade ou na ida para o Oeste, amparados na ideia de que todos teriam as mesmas chances. Os Estados Unidos foram construídos como “a nação de mobilidade ascendente”250

(SAMUEL, 2012, tradução nossa), onde tudo seria possível se esse homem lutasse o suficiente. Segundo o próprio autor, a mitologia do sonho era encarada como uma promessa, principalmente de sucesso. As consequências disso sobre as subjetividades, em caso de fracasso, não eram dimensionadas.

Como afirmou Chopra-Gant (2006), a “retórica do individualismo pioneiro”251 (2006, p. 54, tradução nossa) marcou as narrativas nacionais estadunidenses, de relatos sobre Daniel Boone a tantos homens que caminharam em direção ao Oeste em busca de uma vida melhor. Esse foco no sucesso individual é algo tipicamente estadunidense, como ressalta o autor, sendo também marcado pela “busca pelo dinheiro” (DEBLANCO, 1999). Um dos elementos da narrativa nacional, importante para essa discussão, é a diferença entre o que foi conquistado e o herdado, sendo que a cultura estadunidense valoriza o primeiro (meritocracia) em relação ao segundo (aristocracia), uma característica da sociedade inglesa no período da emigração, principalmente, em que foram reafirmadas essas ideias de igualdade de oportunidades252.

Segundo Samuel (2012), a ideia do sonho não está relacionada abertamente com o privilégio, considerando que essa noção foi apagada das narrativas de igualdade e democracia estadunidenses. No entanto, é necessário considerar as desigualdades presentes nessa sociedade, relacionadas com classe, etnia e gênero, e que o sonho de mudança foi um discurso criado por pessoas brancas, reafirmado em inúmeras narrativas como uma possibilidade para qualquer pessoa. Ideias relativas à identidade nacional (American-ness) e aos mitos nela envolvidos estavam presentes em vários tipos de filmes, como o noir sobre o qual versa a presente tese, que lidou com as idealizações sobre a nação e seus mitos no período estudado (CHOPRA-GANT, 2006).

Na década de 1940, muitos dos filmes de sucesso nas bilheterias, ou até mesmo produtos de propaganda, tinham como intenção promover a imagem de um país democrático e

250 the nation of upward mobility. 251 rethoric of pioneering individualism. 252

Calvinistas que fugiram da Inglaterra no século XVII entendiam esse novo continente como uma vacant wilderness (DeBlanco, 1999). Como afirmou Call Jillson (2004), para os povos que fugiram da Europa e emigraram para os EUA, aquela terra oferecia oportunidades que uma terra dominada por aristocratas não oferecia. Desta forma, tanto Jillson como Samuel trabalham com a ideia de que essa ideia do sonho chegou no país com esses imigrantes. Tais ideias estavam inicialmente relacionadas com grupos religiosos (principalmente os que emigraram no Noroeste do país), e eram pautadas por ideais iluministas e laicos, que culminaram com a Declaração da Independência.

igualitário (CHOPRA-GANT, 2006). Durante aquela década, principalmente durante a Segunda Guerra, Thomas Schatz (1999) destacou o caráter de “cinema nacional” (national

cinema) que Hollywood adquiriu, com histórias e personagens que elevavam os valores e as

narrativas nacionais. Nesse sentido, não é difícil entender o motivo pelo qual autores como Schatz caracterizaram o noir como uma onda contrária ao que Hollywood estava produzindo durante a Guerra.

“O sonho americano de mobilidade ascendente sem fim foi sempre obscurecido pelo pesadelo americano – mesmo que você pudesse ascender tão longe o quanto suas aspirações e talento o levassem, você também poderia cair em um penhasco”253

(KIMMEL, 2013, p. 19,

tradução nossa). Entendo que a ficção noir representou esses homens situados à beira do penhasco, ou dele tentando escapar (DUNCAN, 2003). O noir lidou com homens brancos que se sentiram enganados por uma narrativa que lhes prometia uma recompensa depois do esforço, frustração que só existe para aqueles que foram educados para acreditar nas oportunidades prometidas.

Essas ideias foram apresentadas de várias maneiras no noir; algumas de maneira crítica, através de personagens gananciosos que fazem tudo para atingir seus objetivos, assim como o mafioso Mr. Brown (“Império do Crime”, 1955254), que diz: “o primeiro é o primeiro, e o segundo é ninguém”255

(tradução nossa), ecoando o sentimento de vários personagens que desejam “ser alguém”. O poder financeiro desses homens reflete também a sensação de hierarquia em relação a outros homens e também a mulheres (essas tratadas como objetos), um domínio sobre pessoas e também sobre seu território, que é a cidade.

Em 1948, o diretor Abraham Polonsky dirigiu um filme chamado “Força do Mal”. O longa inicia com a imagem de prédios em Nova York e a narração do protagonista Joe Morse: “Isto é Wall Street… e hoje foi importante, pois amanhã – quatro de julho – eu pretendo fazer o meu primeiro milhão. Um dia emocionante na vida de um homem”256

(tradução nossa). O longa relata a história de um advogado no auge de sua carreira, a serviço de um gângster que deseja controlar os jogos de azar na cidade. “Força do Mal” apresenta a queda desse homem, e daqueles que estão a sua volta. Essa narrativa pode ser exemplificada pelo primeiro plano do filme (Figura 15) comparado à imagem da sequência final.

253 The American Dream of endless upward mobility was always shadowed by the American nightmare – just as

you could rise as far as your aspirations and talents could take you, you could also fall off the Cliff.

254

The Big Combo. Dir. Joseph H. Lewis. Security Pictures / Theodora Pictures, 1955.

255 first is first and second is nobody.

256 This is Wall Street... and today was important because tomorrow – July Fourth – I intended to make my first

Figura 15 – “Força do Mal”, Dir. Abraham Polonsky, 1948

Fonte: print screen, acervo da pesquisadora

Quando o plano abre focando nos edifícios, a câmera os apresenta de um plano superior, com uma voz afirmando This is Wall Street; logo se movimentando para baixo e apresentando a rua com a movimentação de carros e pessoas. Visualmente, essa imagem pode representar a sensação do próprio personagem de sentir-se como “alguém”, tendo conquistado poder, influência e dinheiro. Joe Morse sente-se quase como um Deus olhando as outras pessoas de cima, os little man, como seu irmão menciona na narrativa.

No entanto, no final do filme, Joe Morse está sem trabalho, sem dinheiro, e prestes a ser preso, além de ter que lidar com o assassinato de seu irmão. O universo apresentado por Abraham Polonksy transmite a ideia de que mesmo que o sonho seja atingido, não há garantias para o personagem, ainda mais quando envolvido em atividades ilegais, como é o caso do protagonista. Segundo Robert Porfírio (2006), o que ainda mantém o interesse pelo cinema noir nos dias de hoje relaciona-se ao clima de pessimismo que rodeia os personagens, não oferecendo possibilidades de escape. E a “Força do Mal” é um dos filmes que exemplificam essas noções, não somente pela jornada do protagonista, mas por todos os personagens que estão a sua volta e também sofrem consequências.

Comparando as duas imagens (Figuras 15 e 16) é possível estabelecer simbolicamente a discussão sobre a queda do protagonista. Ao longo da última sequência, na qual desce escadarias até a beira de um rio, onde está o corpo de seu irmão, Morse afirma: “E naturalmente eu estava me sentindo muito mal enquanto eu descia lá embaixo. E eu continuei

descendo. Foi como ir ao fundo do mundo para encontrar o meu irmão”257

(tradução nossa). Morse não se sente mais como um Deus, sua ambição o aniquilou ao ponto de não lhe restar nada, apenas colaborar com as investigações da polícia que o prendera. Sua fala pode ser lida não somente como expressão de sua tristeza pela morte do irmão, mas por sua própria queda, já que desde o início se apresenta como um homem preocupado principalmente consigo mesmo.

Figura 16 - “Força do Mal”, Dir. Abraham Polonsky, 1948

Fonte: print screen, acervo da pesquisadora

A questão de classe é um dos temas recorrentes no cinema noir, e ela aparece através da ambição de ascender socialmente e ter poder (CHOPRA-GANT, 2006). Essa “ambição implacável” (ruthless ambition) que movimenta personagens como Joe Morse está “no coração da modernidade americana”258

(ibid., p. 154, tradução nossa). Abraham Polonsky contempla essa noção ao colocar a corrupção em todos os âmbitos da cidade, sejam os criminosos que ocupam instituições legais, ou criminosos que caminham pela margem. O problema, nesse caso, não diz respeito a um indivíduo, mas a um sistema que de alguma forma incentiva essa ambição.

Em outro momento, na sequência final do filme, Morse afirma: “Eu encontrei o corpo do meu irmão lá embaixo, nas pedras, onde eles o jogaram fora... perto do rio... como

257

And naturally I was feeling very bad as I went down there. And I just kept going down and down. It was like going down to the bottom of the world to find my brother.

se fosse um pano sujo velho que ninguém queria”259

(tradução nossa), resgatando uma imagem romantizada daqueles que saem da pobreza e atingem a riqueza através do trabalho, algo tão apreciado pela cultura estadunidense colocada em questão em “Força do Mal”. Isso, principalmente, porque em narrativas como essa os personagens constroem atalhos para atingir seus objetivos, praticando atividades criminosas. Na história, seu irmão mais velho argumenta que começou a trabalhar com apostas para que Joe pudesse ter acesso à educação e ser um advogado formado por Harvard. Entretanto, Joe utiliza o status de sua formação para trabalhar com um gângster, pois o que deseja está relacionado com dinheiro e poder.

Dessa forma, entendo como relevante, ao discutir as masculinidades no período relacionadas ao espaço público, dialogar com a presença da cidade. Trata-se da metrópole como um espaço do crime e da corrupção, de possibilidades e de aprisionamento, e também como aquele vasto território preenchido pelas multidões que ocupam as grandes metrópoles estadunidenses. Personagens, como os já mencionados (Phillip Marlowe, Swede e Mr. Brown), ocupam territórios diferentes, tentando afirmar um tipo de masculinidade normativa de formas diferentes, e que povoaram o imaginário do noir pelas quase duas décadas do movimento. A cidade é um campo de disputas e a maneira como o crime foi tratado em filmes caracterizados como noir se deu de formas diferentes. Além disso, o cinema noir modificou-se ao longo de quase duas décadas e dialogou com as mudanças do próprio país.