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O STF e a tributação dos bens digitais pelo ICMS

Persiste a dúvida se imposto incide sobre bens digitais que não sejam licenciamento de uso de software

LUIZ ROBERTO PEROBA

BRUNO LORETTE CORRÊA

28/12/2020 07:28Atualizado em 28/12/2020 às 07:29

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Crédito: Unsplash

O Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente atingiu maioria para afastar o ICMS sobre as operações de licenciamento de uso de software, seja customizado, customizável, seja padronizado.

Trata-se do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 67 (ADIs) 1.945/MT e 5.659/MG. Nessas ações, já há o placar de 7×3 no sentido de se reconhecer a inconstitucionalidade da incidência do imposto estadual sobre tal atividade. O julgamento das ADIs será retomado em 4.2.2021, após pedido de vista do Min. Kássio Nunes.

Embora a decisão do STF seja de grande relevância, é preciso observar que seu alcance está adstrito às operações de licenciamento de uso de software, que foram o objeto analisado pelo tribunal nas referidas ADIs.

Tanto assim é que o Min. Dias Toffoli, relator da ADI nº 5.659/MG e voto- vista da ADI nº 1.945/MT, destacou nos seus votos que sua análise estaria limitada àquele ponto, dado que o tema seria explorado em suas várias outras nuances na ADI nº 5.959/SP. Disso, contudo, surge a questão inevitável a respeito de como ficaria a tributação dos bens digitais pelo ICMS.

Consideremos, para a presente análise, bens digitais como todo bem intangível que exista somente em forma digital, tais como, músicas, fotos, filmes, games, aplicativos, etc. A dúvida permanece sobre como ficaria a tributação de tais bens frente à decisão do STF sobre ICMS sobre licenciamento de software, isto é, se tal decisão seria autoaplicável para as demais operações com bens digitais. A nosso ver, embora tentadora, tanto sob uma perspectiva tributária quanto processual, a aplicação automática da conclusão do STF nas ADIs nºs

1.945/MT e 5.659/MG para as operações com bens digitais é inapropriada.

Cada bem digital tem

características próprias e pode ser comercializado das mais

diversas formas, distintas

do software, o que é relevante para qualquer análise tributária. Ainda assim, isso não impede que examinemos o racional do STF nas ADIs 1.945/MT e 5.659/MG para dele tentar examinar parâmetros para aferição da constitucionalidade da incidência do ICMS sobre bens digitais.

Nesse aspecto, chamamos atenção para dois pontos encontrados nos votos dos Ministros nessas ADIs. Ao se analisar os votos que prevaleceram nas ADIs 1.945/MT e 5.659/MG, o primeiro ponto que podemos notar é que o STF se orientou no sentido de que as operações de licenciamento de uso de software não se sujeitam ao ICMS, porque não envolvem um elemento essencial para incidência desse imposto: a transferência de propriedade.

Com efeito, embora o STF tenha superado a necessidade de existência de um bem corpóreo para incidência do imposto (vide votos do Min. Toffoli e Barroso), o que já havia sido sinalizado em decisão proferida há mais de dez anos, na própria ADI 1.945/MT, o Tribunal permaneceu firme na concepção de que a incidência do ICMS depende de uma circulação – jurídica – de mercadoria, que envolva uma efetiva transferência

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de propriedade do bem

transacionado.

Dessa forma, já desse primeiro ponto é possível se esperar que, do entendimento atual do STF, operações com bens digitais que não

envolvam transferência de

propriedade poderiam estar fora do campo de incidência.

É o caso do streaming de música, vídeo ou texto. Também, a nosso ver,

poderia ser a situação

dos downloads de filmes,

livros, games, etc., quando não há a transferência de propriedade sobre os respectivos bens.

De fato, ainda que se trate de download não

temporário/perpétuo, fato é que as operações com bens digitais podem não envolver a transferência plena dos direitos de propriedade (de usar, gozar, dispor ou reivindicar) sobre o bem transacionado, mas, igualmente, apenas uma licença de uso sobre eles. Por exemplo, ao baixar um filme pela internet, ainda que o consumidor tenha direito de assisti-lo indefinidamente, jamais poderá o consumidor duplicá-lo, reproduzi-lo, comercializá-lo, modificá-lo ou distribuí-lo por conta própria a terceiros, sob pena de violar os direitos autorais de propriedade do seu respectivo autor.

Não só isso, esse consumidor também pode, por vezes, perder seu direito sobre o conteúdo supostamente adquirido caso a respectiva plataforma perca o direito de distribuí-lo ou, ainda, deixe de poder acessar o filme caso troque de aparelho eletrônico ou cancele sua

assinatura na respectiva distribuidora plataforma/do conteúdo.

Outro segundo ponto-chave do julgamento das 1.945/MT e 5.659/MG foi a percepção de que a lei complementar, no seu papel de solucionar conflitos de competência entre os entes federados, já teria tratado o licenciamento de uso de software como uma atividade sujeita ao ISS, o que, portanto, afastaria a incidência do ICMS sobre essa operação.

Na linha do voto do Min. Toffoli, a existência de uma lei complementar estabelecendo a incidência do ISS sobre o licenciamento de uso de software corroboraria com o argumento de que os estados não poderiam exigir o ICMS sobre essa atividade, uma vez que teria sido opção do legislador complementar dirimir conflitos de competência em matéria tributária envolvendo os softwares.

Nesse sentido, o ministro até mesmo

indicou que o legislador

complementar também observou outras atividades decorrentes das recentes inovações tecnológicas ao alterar, em 2016, a lista de serviços do ISS, notadamente em relação aos itens 1.03, 1.04 e 1.09 da mencionada lista[1].

Baseado nesse racional adotado pelo Min. Toffoli e seguido por parte dos demais ministros, seria possível, então, afirmar que operações com bens digitais também ficariam afastadas do ICMS quando previstas na lista de serviços do ISS.

Assim, para ilustrar, o streaming de vídeo, música, textos, etc. não estaria

69 sujeito ao ICMS, uma vez que, além de não envolver uma efetiva transferência de propriedade, essa atividade já está prevista como na lista do ISS como um serviço tributável por esse imposto municipal (item 1.09).

Veja que, da análise do racional do STF nas ADIs 1.945/MT e 5.659/MG nessas duas questões, é válido argumentar que as operações com bens digitais não deverão estar sujeitas ao ICMS quando (i) não envolverem transferência de propriedade e/ou (ii) estiverem previstas na lista de serviços do ISS. Ainda, é possível sustentar que, se uma determinada operação com bem digital não estiver na lista de serviços do ISS e também não envolver transferência de propriedade, tal operação não estaria sujeita nem ao ICMS, nem o ISS.

A CF/88, ao tratar do ICMS e ISS, estabeleceu que esses tributos incidem sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços previstos em lei complementar, de forma que eventuais atividades envolvendo bens digitais fora do âmbito de incidência desses impostos não podem estar a eles sujeitos, sob pena de violação de diversos princípios constitucionais.

Uma saída para essa eventual lacuna de tributação poderia ser a aprovação de uma reforma tributária, que extinga o ICMS e o ISS e/ou crie um tributo mais abrangente que alcance operações com bens, serviços e direitos, sendo que, atualmente existem ao menos duas propostas tramitando no Congresso Nacional que podem resolver essa questão[2].

Enquanto isso não acontecer, os contribuintes poderão valer-se do entendimento atual do STF para balizar suas operações com bens digitais, avaliando, caso a caso, com base no racional firmado nas ADIs n°s 1.945/MT e 5.659/MG, quando tais operações estarão sujeitas ao ICMS; ao ISS; ou a nenhum desses dois impostos.

Ainda, os contribuintes também devem continuar acompanhando os julgamentos do STF sobre o tema, especialmente da ADI n°5.958, a qual, conforme indicado pelo próprio Min. Toffoli, poderá analisar “a cobrança

do ICMS sobre todas as operações realizadas com software, ocasião em que a Suprema Corte terá nova oportunidade de revisitar tema tão complexo em todas as suas nuances” e, com isso, trazer

maior clareza sobre a tributação dos bens digitais pelo ICMS.

O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:

[1] 1.03 Processamento,

armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres. / 1.04 – Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado,

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incluindo tablets, smartphones e congêneres. / 1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de

setembro de 2011, sujeita ao ICMS).

[2] PECs 110/2019 e 45/2019.

LUIZ ROBERTO PEROBA – Sócio do Pinheiro Neto Advogados BRUNO LORETTE CORRÊA – Advogado da Área Tributária de Pinheiro Neto Advogados.

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