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A RAUJO C ASTRO , O B RASIL E A ORDEM INTERNACIONAL

4.1 O substrato normativo da política externa brasileira

O termo “substrato normativo” será utilizado aqui para referir-se a um conjunto de normas não-escritas que orientam os formuladores da política externa brasileira acerca de como se portar

em relação às normas de conduta internacional, isto é, às regras da ordem internacional29. É, assim, uma coleção de normas (no âmbito da formulação da política externa) que versa sobre outras normas (no âmbito do sistema de Estados).

O substrato normativo distingue-se dos valores e princípios da política externa de duas formas. Em primeiro lugar, princípios e valores podem ser positivados, tais como aqueles inscritos no Artigo 4º da Constituição Federal de 1988. O substrato normativo é, por definição, não-escrito. Ele não pode ser reduzido a normas distintas positivadas, pois é composto de precedentes, memória institucional, tradições, enfim, de experiência e conhecimento compartilhado.

A outra diferença entre princípios e o substrato normativo é que, enquanto os primeiros podem pertencer a uma cultura mais ampla, o substrato normativo, por ser mais difuso, exige estruturas de transmissão e reforço mais institucionalizadas. Explica-se: poder-se-ia argumentar que o “pacifismo”, por exemplo, seja um valor do Brasil, com seu lócus na cultura brasileira de forma mais ampla, elaborado e transmitido por meio do pensamento social, da cultura literária e das tradições sociais e religiosas, entre outros. Já o substrato normativo, como surge a partir de uma série de experiências mais específicas que devem ser compartilhadas entre os formuladores da política externa, exige estruturas que transmitam esse conhecimento de forma mais ágil, direta e constante do que a cultura de modo geral. Pode-se afirmar que, no Brasil, o Ministério das Relações Exteriores tem construído e aperfeiçoado estruturas desse tipo ao longo do século XX, permitindo o surgimento de um substrato normativo da política externa.

Essas estruturas incluem, entre outros, o processo de recrutamento e treinamento de diplomatas; o insulamento do corpo diplomático produzido pela reserva da maior parte dos cargos substantivos no Ministério e nos postos no exterior a diplomatas de carreira; o desenvolvimento de uma linguagem própria utilizada dentro do Ministério30; as referências ao

29A idéia de que o sistema internacional é fund amentalmente um arranjo de normas é baseada principalmente em

Onuf (1989) e Kratochwil (1989), embora possa se argumentar que mesmo Bull (2002) já avançava visão semelhante. A proposição de que uma política externa pode ser descrita com base nas idéias que a orientam foi avançada por Goldstein e Keohane (1993) e sofisticada em Kubalkova (2001).

30Ainda não há, infelizmente, estudo sobre a linguagem própria utilizada pelo Itamaraty. Esta inclui: ortográficos

pouco convencionais (por exemplo, o uso de palavras como “Embaixada”, “Governo”, “Posto” inevitavelmente com letra maiúscula); siglas e abreviações técnicas; formalismos arcaicos (“Muito agradeceria a Vossa Excelência...”); ficções jurídicas (todo telegrama da capital é escrito como se fosse o Chanceler redigindo na primeira pessoa, enquanto os que chegam do exterior vêm como se do punho do Chefe do Posto); e frases feitas, quase rituais. O efeito agregado dessas inovações é criar uma linguagem que padroniza, despersonaliza e encoraja a consistência. Estudo mais aprofundado desse tema poderia tornar mais claro como que a linguagem da diplomacia afeta a substância da política externa.

Itamaraty como a “Casa” e a hierarquia da carreira, que acabam por conferir uma autoridade quase patriarcal aos mais altos funcionários; e a ênfase na continuidade da política exterior e a valorização dos “antecedentes”. Ainda está muito incipiente e muito teria a contribuir para o estudo da política externa a análise dessas estruturas, uma verdadeira “antropologia social do Itamaraty” (algumas das principais obras nesse sentido são PATRIOTA MOURA, 2006 e 2007; GÓES FILHO, 2003; CHEIBUB, 1985; e TOMASS, 2000).

Para os fins deste trabalho, todavia, importa saber apenas que o Ministério das Relações Exteriores possui estruturas sociais que encorajam não só um “espírito de corpo” entre os diplomatas brasileiros, como também um “pensamento de corpo” ou pensamento diplomático31. Esse pensamento não é unívoco, estático ou perfeitamente coerente. Possui várias correntes, evolui com o tempo e pode ter contradições internas. Sustenta-se, todavia, sobre o substrato normativo da política externa, que serve como referencial comum de seus formuladores.

O substrato normativo é algo intangível, pertencente ao plano das idéias: é impossível demonstrar inequivocamente sua existência. Podem-se enxergar apenas suas manifestações, como as sombras na parede da caverna de Platão, e não ele sem si. Sendo assim, qual a serventia analítica do conceito de substrato normativo?

Como se verá abaixo, há consistências importantes entre o pensamento de diplomatas brasileiros do período da Guerra Fria e a política externa do País no pós-Guerra Fria. Descartando a possibilidade de que essas consistências se reduzem a coincidências, é preciso propor uma hipótese que as explique – no caso, o substrato normativo da política externa. No fim das contas, não se pode afirmar terminantemente que o substrato normativo exista; apenas que a política externa evoluiu (ao menos neste caso) como se ele existisse. O substrato normativo é, assim, um conceito teórico que visa explicar a continuidade na política exterior do Brasil.

Embora o substrato normativo seja um produto coletivo, isto é, fruto do pensamento, das ações e das interações de centenas de indivíduos, esses não contribuem na mesma medida para a constituição do substrato. Certos indivíduos podem ter um impacto maior nele, à medida que suas idéias sejam, por alguma razão intrínseca ou extrínseca, mais bem-difundidas ou mais aceitas do que as dos demais. Um dos diplomatas que legou uma das contribuições mais importantes para o substrato normativo da política externa foi Araujo Castro.

31Herz adota abordagem semelhante ao falar da “cultura internacional” dos tomadores de decisão (1994), ao passo