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O SUJEITO CONSTITUÍDO HISTORICAMENTE E AS

1. O SUJEITO, O PODER E SUAS VERTENTES HISTÓRICAS

1.8 O SUJEITO CONSTITUÍDO HISTORICAMENTE E AS

Foucault não acredita na ideia de uma natureza humana, ou melhor, na concepção de um sujeito que preexiste no mundo, e que é mascarado e oprimido por elementos que impedem que sua verdade

venha à tona. Para o autor, é um erro supor que o sujeito exista prévia e definitivamente e que as condições de existência, sejam elas políticas, sociais ou econômicas, apenas depositem algo neste sujeito previamente dado. Na história da filosofia temos uma série de concepções que nos levam a entender o sujeito como uma entidade já dada, uma propriedade da condição humana sempre presente no mundo. Apenas para citar exemplos, poderíamos lembrar-nos do ―eu pensante‖ de Descartes, ou do ―sujeito transcendental‖ de Kant. Tais concepções nos remetem a pressupor uma racionalidade soberana e transcendente, em que o papel do filósofo (ou do educador, do cientista social, do psicólogo e dos intelectuais em geral) seria descobrir aonde esta racionalidade nos levará, para que assim possamos fazer ―a coisa certa‖, que estaria de acordo com nossa ―natureza humana‖. Tais concepções tiveram seus efeitos colaterais, visto que temos uma série de exemplos históricos que nos mostram como a razão pode ultrapassar uma série de limites que não deveriam ser ultrapassados.

Segundo Foucault, uma das tarefas do Iluminismo era multiplicar os poderes políticos da razão. Depois de Kant, o papel da filosofia foi o de impedir a razão de ultrapassar os limites do que é dado na experiência e vigiar os abusos de poder da racionalidade política. Para o autor, o vínculo entre a racionalização e os abusos do poder da racionalidade política é evidente. Contudo, não se trata, para Foucault, de mover o processo contra a razão, nada seria mais estéril; não se trata de culpabilidade ou inocência. A solução do autor consiste em não tratarmos a racionalização da sociedade como um todo, mas analisar esse processo em diversos domínios. Dessa forma, quando abordarmos um problema, não se trata de verificar se ele se conforma ou não aos princípios da racionalidade, mas de descobrir a que tipo de racionalidade eles recorrem. De acordo com Fonseca:

Foucault pensa que muito mais produtivo do que analisar a racionalização da sociedade num todo seria abordar o processo de racionalização dentro de domínios específicos das sociedades e das culturas, que por sua vez se remeteriam cada um a uma experiência fundamental, como, por exemplo, a loucura, a doença, o crime, a sexualidade. (FONSECA, 1995, p. 27/28)

Podemos dizer que Foucault nega a concepção de que exista uma racionalidade una, soberana e neutra, assim como nega uma concepção

de sujeito essencial, a priori e transcendental. O que existe são racionalidades específicas que interagem com um tipo de sujeito constituído no âmbito da época, do local e das condições em que se encontra. As práticas sociais podem formar sujeitos, as diferentes formas de interação e as diversas relações de poder existentes nas relações humanas competem difusamente na constituição do sujeito.

Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. (FOUCAULT, 1996, p. 8).

E por isso o autor questiona a noção de sujeito que ainda prevalece na modernidade:

Atualmente, quando se faz história – história das ideias, do conhecimento ou simplesmente história – atemo-nos a esse sujeito de conhecimento, a este sujeito da representação, como ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história. É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir. (FOUCAULT, 1996, p. 10).

Foucault não foi absolutamente o único autor a se despedir da concepção iluminista de sujeito. Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein, por exemplo, já haviam abandonado tal concepção muito antes de Foucault. Mas uma vez abandonada tal noção, vale ressaltar que o filósofo francês foi um dos que mais trabalhou para demonstrar de que maneiras esse sujeito se constitui. Pode-se dizer que a problemática da constituição do sujeito é assumidamente o principal objetivo da obra do autor como um todo.

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. (FOUCAULT, 1995, p.231).

Para Foucault, o sujeito é constituído, sendo, portanto, resultado, e não ponto de partida, e o problema de sua constituição circunda sua obra. Tomemos como exemplo sua análise em Vigiar e Punir, onde o indivíduo moderno é delineado como produto da disciplina. A análise de Foucault sobre a prisão é uma tentativa de fazer aparecer esses mecanismos disciplinares, produtores do indivíduo moderno. Mas a prisão é apenas um dos âmbitos possíveis de análise. O autor aponta o surgimento de um continuum carcerário, que difunde as técnicas penitenciárias até as disciplinas mais inocentes. Tal generalização permite a formação da sociedade disciplinar. A disciplinarização da sociedade tem como produto uma individualidade que corresponde às expectativas de uma gestão útil dos homens, a formação de indivíduos dóceis e úteis, que permitem a extração de algo de todas as suas atividades e momentos. ―Daí se poder afirmar que o principal efeito da disciplina que tem a finalidade de construir aparelhos eficientes, seja a produção de um tipo de indivíduo: o indivíduo moderno.‖ (FONSECA, 1995, p. 68).

Assim, o sujeito não é dado definitivamente na história, mas constitui-se no interior dela. Não é mais o núcleo do conhecimento e a manifestação da liberdade, mas produto e efeito. ―Foucault ressalta seu interesse em mostrar como as práticas sociais e as relações de poder formam domínios de saber, que, por sua vez, fazem nascer novas formas de sujeitos.‖ (FONSECA, 1995. p. 75).

Esta é resumidamente a concepção foucaultiana de sujeito, utilizando a obra Vigiar e Punir como exemplo. Falarei ainda mais sobre o sujeito mais adiante. Por agora, é importante ressaltar que Foucault sempre elaborou teorias com objetos específicos inseridos em contextos bem delimitados. Sua análise do indivíduo moderno constituído por práticas disciplinares não constitui a verdade histórica de toda a humanidade, apenas aponta uma análise genealógica sobre uma série de saberes relacionados com poderes em um dado momento. Suas obras, desde a História da Loucura até A vontade de saber, representam

basicamente esta concepção de sujeito efeito e produto das relações de saber/poder.

O marco de sua transição para o terceiro eixo é bem representado pelo segundo volume de História da sexualidade, intitulado O uso dos prazeres, onde Foucault alega textualmente estar introduzindo um terceiro deslocamento teórico. Fazendo uma recapitulação, seu primeiro deslocamento teórico surgiu com a tentativa de analisar o que havia sido designado frequentemente como progresso dos conhecimentos, levando- o a interrogar-se sobre as formas práticas discursivas que articulavam o saber, deslocamento este que constitui o período arqueológico. O segundo deslocamento visava analisar as manifestações de poder, problema que o levou a interrogar-se sobre as relações múltiplas, as estratégias abertas e as técnicas racionais que articulam os exercícios de

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