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3.5 Sujeito e Tradução

3.5.1 O sujeito social de Lawrence Venut

Em The Translator’s Invisibility (1995), o teórico norte-americano Lawrence Venuti traçou uma história da tradução anglo-americana, mostrando como, ao longo dela, os tradutores (mais especificamente nos EUA) vêm passando por um processo de “apagamento” em seu próprio ofício, a que ele dá o nome de invisibilidade. Isso estaria enraizado, dentre outros fatores, numa concepção individualista – e desistoricizante – de autor como “senhor” absoluto de sua criação (o que implicaria numa visão de sujeito uno, portador de uma origem). O tradutor seria uma espécie de “vassalo”, fiel a um original cujo sentido deve ser recuperado.

Criticando a noção de tradução como um “vidro” transparente (que deixaria ver cristalinamente os significados e as intenções do autor-origem), sem ranhuras nem bolhas, colocada pelo tradutor americano Norman Shapiro, Venuti discute quais seriam os fatores pelos quais o tradutor se anularia no labor tradutório: a fluência e a transparência. A fluência do discurso tradutório deixaria mais visível a obra do autor-origem – e o tradutor, invisível. Uma tradução fluente agradaria mais ao público leitor – mais afeito a textos facilmente legíveis e sem estrangeirismos – que, portanto, irá consumi-la (para Venuti, o mercado editorial também estaria bastante envolvido na “peculiar auto-aniquilação” dos tradutores). A fluência geraria também, pois, uma ilusão de transparência, na qual o público leitor do texto traduzido teria a nítida impressão de estar tendo um acesso direto ao original, como se o autor estrangeiro tivesse produzido o texto na língua-meta: Enquanto a autoria é comumente definida como originalidade, auto-expressão num texto único, a tradução é derivada, nem auto-expressão nem única: ela imita outro texto. Dado o conceito dominante de autoria, a tradução provoca o medo da inautenticidade, da distorção, da contaminação. Contudo, na medida em que o tradutor deve focalizar-se nas comunidades culturais e lingüísticas do texto estrangeiro, a tradução pode também provocar o medo de que o autor estrangeiro não seja original, mas derivado, fundamentalmente dependente de materiais pré-existentes. (...) Na prática, o fato da

tradução é apagado pela supressão das diferenças culturais e lingüísticas do texto estrangeiro, assimilando-as a valores dominantes na cultura da língua-alvo, tornando-a reconhecível e, portanto, aparentemente não-traduzida. Com essa domesticação o texto traduzido passa como se fosse o original, uma expressão da intenção do autor estrangeiro (Venuti, 2002: 65-66).

Esse processo de domesticação do texto estrangeiro seria um processo etnocêntrico que “molda” o estrangeiro de forma que ele se torne familiar. Com relação a isso, o empreendimento de Venuti assemelha-se bastante ao de Schleiermacher, hermeneuta alemão do século XIX. Ambos compartilham da opinião de que um texto estrangeiro deve ter preservado, na tradução, sua alteridade. Para Venuti, o tradutor deveria ressaltar o caráter “alienígena” do texto a ser traduzido; assim, além de preservar o Outro no texto, tornaria o seu trabalho tradutório “visível”. Então, a tradução não seria mais um “vidro” transparente, sem bolhas ou ranhuras, e sim uma superfície opaca, cuja opacidade seria o maior sinal de sua própria alteridade.

Pela crítica à noção de sujeito-autor, Venuti repudia também a dicotomia fidelidade/liberdade, pois o tradutor jamais poderia se desligar dos fatores ideológico-culturais que o constituem; ele é um sujeito social. Seu trabalho jamais poderia ser neutro; uma suposta neutralidade seria o efeito das estratégias de fluência e transparência, que criam a ilusória invisibilidade do tradutor. Então, finalizando seu livro, Venuti chama os tradutores à ação.

No entanto, apesar de seu trabalho ser de grande valor para um avanço nos Estudos da Tradução e para uma maior valorização do labor tradutório, há alguns problemas, até mesmo algumas contradições. Em A Singularidade na Escrita Tradutora (2000), a teórica Maria Paula Frota apresenta uma tensão básica na teoria venutiana: ao mesmo tempo em que critica a noção de um sujeito-escritor transcendental, Venuti convoca os tradutores a agir no texto estrangeiro, manipulando-o calculadamente (de forma que se faça perceber a alteridade deste último e o próprio trabalho tradutório). Isso implica, na visão de Frota, numa recolocação do sujeito como “um indivíduo que (...) conscientemente manipula língua e texto, podendo optar por neste se inscrever (ou não) através de uma criação unicamente sua que romperia, deliberadamente, formações já

estabelecidas” (Frota, 2000: 93). Ela mostra que o teórico, com isso, acaba por voltar “à relação dicotomizada ou excludente entre aquele que escreve e o objeto a escrever” (p. 93).

Há uma contradição que enxergo na teoria de Venuti, ainda com relação à sua concepção de sujeito: se o tradutor é formado, até mesmo submetido ao ambiente sócio-cultural e ao contexto histórico que o cerca, e, portanto, não seria “senhor” de sua escrita, como ele poderia manipulá-la?

E Frota aponta para mais um grande problema na teoria de Venuti: o teórico, com sua concepção de sujeito social, formado pelo contexto sócio- histórico e cultural que o cerca, acabou por deixar de lado os fatores subjetivos, os afetos que também constituem um sujeito.

A teoria de Venuti acerca da (in)visibilidade do sujeito-tradutor e seu caráter social acaba não dando conta, portanto, de uma saída para as dicotomias tradicionais, armadilhas para a prática tradutória. Além disso, acaba caindo novamente numa concepção de mestria total de um autor ou tradutor controlador, que até hoje faz com que a atividade tradutória seja desvalorizada. Mas se pensarmos nos fatores afetivos que constituem esse sujeito – que obviamente não excluem a dimensão sócio-cultural – talvez possamos pensar com um pouco mais de clareza sobre a prática da tradução.