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Transcrição de Fita e Análise # 3: Protocolo Verbal: “Eldritch Weirdness”

4.2 Dados e Análises

4.2.4 Transcrição de Fita e Análise # 3: Protocolo Verbal: “Eldritch Weirdness”

[Contextualização: o trecho a seguir é do ensaio sobre literatura de horror de H.P. Lovecraft, Supernatural Horror in Literature, publicado originalmente em 1927 no magazine de horror The Recluse I. Nesse trecho, em meio a uma discussão sobre o nascimento da literatura gótica, o autor está tentando diferenciar o folclore de horror continental do folclore de horror anglo-saxão]

Trecho a ser traduzido:

“The Scandinavian Eddas and Sagas thunder with cosmic horror, and shake with the stark fear of Ymir and his shapeless spawn; whilst our own Anglo-Saxon Beowulf and the later Continental Nibelung tales are full of eldritch weirdness.” (p. 25)

Protocolo de Tradução:

“Eldritch weirdness… eldritch… remete a estrangeiro também… ao estrangeiro ameaçador... weird... weirdness... weirdness... remetente às bruxas... tem que haver o mistério preservado. Eldritch weirdness... mistérios… estranhos? Mistérios... estrangeiros? Mistérios desconhecidos? Weirdness... eldritch... eldritch… remete àquele que é estrangeiro... mas, no caso, é um estrangeiro ameaçador ao mesmo tempo que... é fascinante. “Eldritch weirdness não pode ser simplesmente traduzido por “monstruosidades”... “monstruosidade” é algo muito claro. Weird... weird porta o mistério... weirdness... o mistério... eldritch weirdness... o mistério... não, não pode ser simplesmente estrangeiro... “cheio de estranhos mistérios”... também não...não dá a carga que aparece aqui... ao se falar em weirdness...em... “estranhas singularidades”... não, não é...”weirdness” não é simplesmente algo singular, vai muito além... weirdness... substantivo... estranheza... “estranha estranheza”... meu Deus... meu Deus... como é que eles

se sentiam... os americanos, diante das bruxas... as bruxas que iam contra o sistema deles... os Protestantes...? e nós, nós recebemos (?)... putz...pra mim, “eldritch” remete a estrangeiro, mas numa qualidade bastante ameaçadora... mas é fascinante. Eldritch weirdness... “mistérios estrangeiros”... estrangeiro... estranheza...é, mais ou menos, quase a mesma raiz... um estranho pode ser um estrangeiro. Mas não na carga que tem, não aqui... “eldritch” tem um elemento de medo... que a palavra “estranho” ou “estrangeiro” não comporta. “Mistérios estrangeiros” não... “mistérios singulares” não...”enquanto nosso...Beowulf anglo- saxão e os.. mais recentes... contos continentais do Nibelung...estão cheios de... mistérios estranhos. “Eldritch” não teria o mesmo sentido de outer? Outer space? Do outro mundo... mistérios do outro mundo!!! “Cheios de um mistério de outro mundo...é, de terras estranhas, eldritch – “foreigner”, “de terras estranhas”. “Cheios de mistérios do outro mundo”... “de outro mundo”... é... talvez seja isso. “Weirdness”... “mistério”... acho que é “mistério”... talvez fosse uma boa tradução... não “estranho”... “eldritch weirdness”... “mistérios de outro mundo”... é uma boa”.

Análise

Como parte integral da análise destes dados, gostaria de tratar de uma questão concernente às dificuldades (ou quase impossibilidades) de se traduzir o adjetivo “weird” para o português. Escolhi justamente o trecho traduzido nesta transcrição porque carrega uma locução em que “weird” se faz duplamente presente: “eldritch weirdness” (“eldritch” é sinônimo de “weird”).

Etimologicamente, o adjetivo em questão remete à habilidade de predizer o (mau) destino de outrem, dom inerente às bruxas ou feiticeiras. Sacerdotisas das religiões anímicas, representantes máximas do paganismo, eram grandes ameaças ao Cristianismo dominante no Ocidente – mais propriamente, na Inglaterra e nos EUA, onde o Protestantismo e seu Deus onipotentemente vingativo dominavam. A Inquisição reprimia qualquer manifestação animista ou pagã, e ai de quem se suspeitasse manter algum tipo de ligação com alguma dessas manifestações. “Weird” passou a designar, com o passar do tempo, tudo o

que fosse singularmente estranho, assustador e ameaçador, que não pudesse ser explicado ou dominado pela cultura e pela religião reinante – a única que poderia permitir o verdadeiro contato com o Deus que salvaria a todos os seus seguidores de um Inferno impronunciável, onde estão os outros, os condenados. “Weird” é, pois, parte da caracterização de uma determinada posição cultural diante do que não se enquadra em determinados padrões, do que, por sua alteridade, colocaria em risco a pureza de uma determinada sociedade. Chamar alguém (ou alguma coisa) de “weird” faz parte de um processo de identificação pela negação do que é outro.

Para um tradutor brasileiro, é muito difícil apreender, no processo de tradução, todo o contexto histórico-cultural que “weird” carrega em si. Já é bastante conhecida esta dificuldade entre os tradutores. A grande maioria não consegue encarar essa dificuldade, e acabam por substituir completamente ou até mesmo suprimir o adjetivo na tradução. Posso dar dois exemplos disso. O primeiro é de uma total substituição do adjetivo que pouco tem a ver com “weird”. Eis o trecho:

Before Poe the bulk of weird writers had worked largely in the dark.14

Vejamos agora a tradução de João Guilherme Linke (1987):

Antes de Poe a maioria dos autores de terror trabalhou quase sempre no escuro (O Horror Sobrenatural na Literatura, p.48)15.

O segundo exemplo é de um total apagamento do adjetivo (desta vez, de uma tradução de um trecho da peça shakespeariana Macbeth). Vejamos o original:

All:

The Weird Sisters, hand in hand,

14

Lovecraft, 2000 [1927]:17. 15

Posters of the sea and land…

Assim ficou a tradução de Bárbara Heliodora:

Todas:

As Três Irmãs, de mãos dadas, Por terra e mar viajadas...

Parece não haver uma palavra em português que possa expressar, com intensidade parecida, o que “weird” carrega em si. Este adjetivo é freqüentemente traduzido por outros adjetivos que não comportam a especificidade do vocábulo inglês (ou então é sistematicamente apagado do texto). A falta fica mais evidente, e essa falta não pára de não se escrever nas tentativas frustradas de tradução.

O que ocorre no protocolo “Eldritch Weirdness”, porém, não é nada diferente. Eu também acabo por fazer uma substituição que não comporta muito bem os sentidos propostos pela locução. Fujo para um quase idílico “mistérios de outro mundo”, que parece remontar à minha fantasia da Disneylândia apresentada na primeira história de vida. Apesar de eu conhecer muito bem o sentido cultural que “eldritch weirdness” carrega (“bruxas… contra o sistema”), não consigo dar conta disso. Mas, para além de um fator puramente lingüístico e cultural, contaminado que é por afetos, pode haver algo mais.

Esse protocolo traz à tona a relação entre ESTRANGEIRO e ESTRANHO que parece ser não somente uma obsessão pessoal minha como também está presente na própria estrutura da língua portuguesa (estranho/estrangeiro). Apesar de eu não conseguir escapar a esta confluência, pareço querer compensar isso enfatizando o MISTÉRIO das duas palavras (weirdness, eldritch) ao invés de seus aspectos mais aterrorizantes. Isso traz novamente a questão de minha relação ambígua com o abjeto desconhecido que se apresenta nessa locução. Além disso, minha insistência no MISTÉRIO versus HORROR poderia ser visto como um modo de recuperar a jouissance perdida de meu primeiro contato com a fantasia, o VÔO COM E., idealizando o “outro mundo” desconhecido.

O fato de eu evitar meu próprio conhecimento histórico-cultural (“bruxas... contra o sistema”) poderia ser visto como um apagamento das palavras-chave do trecho – “eldritch weirdness” – que, como aponta o teórico lacaniano da escrita Mark Bracher (1999), é um dos mais comuns mecanismos de defesa na escrita. Nesse apagamento, eu fecho os meus olhos à diferença que representa “eldritch weirdness”, e ao abjeto que define o próprio gênero de horror.

Uma tradução mais “adequada” – no sentido da reprodução de efeitos pragmáticos que certas referências históricas e culturais produzem em falantes nativos do inglês – não teria mais impacto na transmissão da natureza da ficção lovecraftiana para falantes de português? Este pode ser um importante ponto adicional a ser considerado, dada a característica reacionária/elitista de algumas das narrativas de Lovecraft. Estaríamos aqui entre meus próprios “mistérios de outro mundo” e o desconforto e medo que o texto original provavelmente provoca nos falantes nativos. Para recuperar o conhecimento presente em meu próprio protocolo, uma tradução mais “adequada” poderia ser esta: “(...) enquanto o nosso próprio Beowulf anglo-saxão e as narrativas tardias do Nibelung Continental ‘estão cheios de bruxos e elfos e outros estranhos fascínios do mundo pré-cristão”16.