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CAPÍTULO 4 A BIOÉTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

4.1 O SURGIMENTO DA BIOÉTICA

Se pensarmos nos avanços científico-tecnológicos que marcaram sobremaneira os campos da Biologia e da Medicina a partir dos anos 60, compreenderemos um dos fatores que motivou o despertar da Bioética, organizada como disciplina na década de 1970. Esse advento imprimiu novo vigor à Ética – até aquela época tratada como mera etiqueta – que, então, ressurgiu com novo enfoque e direcionamento na área da saúde.

Pretende-se, agora, traçar um esboço histórico a respeito do propósito e dos rumos dos estudos no âmbito da Bioética desde seu surgimento aos dias contemporâneos, bem como de seu valor e contribuições para a prática científica.

Tal como a propôs Potter (1998), o criador desse neologismo, a Bioética intentava a religação das ciências empíricas com as ciências humanas, retomando aspectos humanísticos na formação e ação da prática médica, ao mesmo tempo ampliando a discussão para além dos temas cotidianos. Introduziu temas emergenciais como a sustentabilidade do Planeta, as possibilidades científicas e tecnológicas que deveriam ser melhor avaliadas quanto a seu uso e as consequências daí advindas. De modo geral, a preocupação última manifestada por Potter era de preservação da vida no Planeta.

A Bioética visou ao resgate dos fundamentos para o agir, conferindo novo paradigma ao ensino da Ética nas áreas biológicas. Tratava-se de estudar os problemas e implicações morais despertados por pesquisas científicas empreendidas especialmente pela Biologia e Medicina.

O termo Bioética ficou conhecido inicialmente na obra de Potter, Bioethics:

Bridge to the future, publicada em janeiro de 1971, denotando a Ética da vida na

biosfera. Em julho de 1971, Andre Hellegers funda o Joseph and Rose Kennedy

Institute for the study of Human Reproduction and Bioethics, aplicando o termo à

Ética da Medicina e das Ciências Biológicas. Hellegers divulgou a palavra Bioética e direcionou os estudos do Instituto Kennedy. Anteriormente, em 1962, Dr. Belding Seuber fundou o Comite de Seattle, denominado pela imprensa americana de “God's

Comitee”. Foi impelido pela preocupação com o que se deveria fazer face às

implicações dos avanços biotecnológicos e aos avassaladores progressos da revolução biológica da década de 50 que, por sua vez, deram origem à Bioética. Seus estudos passam a tomar como objeto específico as questões humanas na sua dimensão ética (NEVES, 1996; REICH, 1993).

Goldim (2006) propõe outra versão para a inauguração da Bioética: afirma que a palavra foi utilizada primeiramente por Fritz Jahr, em 1927, em um artigo publicado na revista alemã Kosmos, onde caracterizou bio + ethik ao reconhecimento de obrigações éticas com todos os seres vivos. Acrescenta o mesmo autor que Potter foi influenciado por Aldo Leopold, que, na década de 1930, criou a Ética da terra, na qual abordava os recursos naturais como objeto de reflexão ética.

Potter (1998) utiliza a palavra bioética-ponte com o propósito de promover a sobrevivência humana, ao se referir a problemas que um vultoso desenvolvimento da tecnologia geraria, se não houvesse uma reorientação desse novo poder em benefício próprio do ser humano. Preocupava-o o conhecimento científico como fim em si mesmo, negligenciando os efeitos que poderiam causar aos seres humanos. A preponderância da ciência e de suas possibilidades sobre o ser humano levaria a um temor ante a sobrevivência da espécie, pondo em risco a qualidade de vida no futuro. Potter tinha a intenção de unir Ciência e Filosofia, ou ainda melhor, unir as ciências biológicas e a Ética numa nova disciplina.

Berlinguer (1993) retoma uma mensagem enviada ao Congresso dos Intelectuais para a Paz (1948), em que de Einstein já manifestava a preocupação com a ausência de racionalidade para equilibrar os avanços tecnológicos aos humanos, pondo em xeque se as possibilidades científicas lhes resultassem em benefícios, ou fossem utilizados sem que trouxessem danos ao homem:

Através de uma penosa experiência, aprendemos que o pensamento racional não é suficiente para resolver os problemas de nossa vida social. A pesquisa perspicaz e o acurado trabalho científico tiveram, com frequência, consequências trágicas para o gênero humano, trazendo por um lado invenções que livram o homem das mais extenuantes fadigas físicas, tornando sua vida mais fácil e rica. Por outro lado, causa nele uma inquietação grave por torná-lo escravo de seu mundo técnico e, o mais catastrófico, cria os meios para a sua destruição em massa. Uma tragédia realmente assustadora. (BERLINGUER, 1993, p.9).

Potter propôs ainda a Bioética-profunda: uma reflexão necessária para as questões da sobrevivência, inclusive declarando que a genética é um assunto demasiadamente importante para ser relegada ao árbitro único dos cientistas. Segundo a opinião de Goldim, Potter propunha, com a Bioética profunda, uma nova ciência ética, cuja competência era intercultural e interdisciplinar, que resultaria em equilíbrio bem dosado e potencializasse o senso de humildade necessária.

Com efeito, a ideia central de Potter era a Bioética-ponte, cujo propósito original era o questionamento a respeito dos limites a se estabelecer aos avanços materialistas próprios da Ciência e Tecnologia. Como sua extensão e segunda etapa, propunha ele a Bioética-global, insistindo em que os bioeticistas médicos considerassem o significado original da Bioética nas questões de saúde pública em âmbito mundial. Enfatizava o conhecimento biológico, que, em sua função de Bioética-ponte, haveria de possibilitar a fusão entre a Ética médica e a Ética do meio ambiente numa escala mundial, porque se preservasse a sobrevivência humana. Os médicos deveriam pensar não somente em suas decisões clínicas senão também nas consequências de suas ações a longo prazo (POTTER, 1998).

Potter deu cunho de responsabilidade planetária à Bioética: uma ciência da sobrevivência, enquanto Hellegers a restringiu às ciências da vida, voltadas particularmente ao nível do humano. Tratava-se, pois, de uma ética biomédica (NEVES, 1996).

Pessini e Barchifontaine (2000) referem-se a alguns acontecimentos que favoreceram as discussões e se tornaram foco de preocupação da Bioética. Alguns fatos pioneiros marcaram tão profundamente sua trajetória, que se prestam como datas a se lembrarem e comemorarem como início da Bioética:

9 de novembro de 1962, data do artigo publicado na revista Life – intitulado “Eles decidem quem vive e quem morre” –, a respeito da organização do Comitê de Seattle, que deliberava sobre quem se submeteria ou não à hemodiálise, tipo de tratamento descoberto no ano anterior. Dado que o número de pacientes em muito excedia o de máquinas disponíveis para o tratamento, criou-se um comitê de leigos para selecioná-los. Mas surgiu o impasse que iniciava uma discussão: quais seriam os critérios?

16 de junho de 1966 – O [New England Journal of Medicine] publicou artigo – “Ética e pesquisa clínica” – denunciando procedimentos antiéticos em pesquisas de cunho científico-experimental. Seu autor, professor Henry Beecher da Universidade de Harvard dirigiu cerca de 20 pesquisas biomédicas, publicadas em revistas de renome. Vale lembrar que acontecimentos anteriores tiveram influencia neste episódio como os abusos ocorridos nos campos de concentração, revelados pelo julgamento de Nuremberg, em 1945.

31 de março de 1976 – Marca a decisão emanada da Suprema Corte de New Jersey (EUA) sobre o caso Karen Ann Quinlan, que alcançou repercussão expressiva, sendo acompanhado de perto pelo público em geral. Os pais de Karen solicitavam que desligassem os aparelhos que lhe davam suporte vital. Ante a recusa do hospital e de médicos para o procedimento de abreviar-lhe sofrimentos e vida, aquela Suprema Corte “reconheceu o problema levantado pelas novas tecnologias sustentadoras da vida que haviam evoluído nos últimos 20 anos: a vida orgânica pode continuar, mas viver humanamente ‘de uma forma cônscia e sapiente’, isso pode estar comprometido para sempre” (p. 24). O caso Karen deu origem a uma série de debates, para os quais contribuíram filósofos e teólogos, e de onde decorreram as diretrizes para instruir procedimentos com pacientes terminais.