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O surgimento das ouvidorias no Brasil: o ombudsman como inspiração

Capítulo I O controle da polícia na ordem democrática

1.2. O ombudsman: um instrumento de fiscalização e controle da administração pública

1.2.1 O surgimento das ouvidorias no Brasil: o ombudsman como inspiração

nacional. Uma delas foi apresentada pelo deputado constituinte José de Souza Melo, em 1823, apenas 14 anos depois da sua implantação na Suécia. O tema retornou aos debates públicos a

partir de 1961, ano em que foi elaborado o Decreto nº 50.533, que determinou a implantação, nas capitais de cada estado, de sub-gabinetes da Presidência da República, os quais teriam como objetivo encaminhar, aos órgãos da Administração Federal, reclamações dos cidadãos locais — contudo, esse decreto não chegou a ser colocado em prática, sendo revogado logo em seguida (GOMES, 2000).

A instauração do regime militar no Brasil, em 1964, travou qualquer tentativa de construção de canais de controle da administração pública por parte da sociedade civil (GOMES 2000). Em 1968, as manifestações estudantis e as greves no setor industrial provocaram uma reação violenta por parte do governo: as ações policiais foram altamente repressivas, principalmente porque os militares “linha dura” comandavam as forças de segurança. Essa crise política resultou na edição, pelo presidente Arthur da Costa e Silva, do Ato Institucional no 5 (AI-5) que, com a justificativa de proteger a segurança nacional, autorizou a suspensão dos direitos civis e o fechamento do Congresso.

Ao contrário dos atos anteriores, o AI-5 não vinha com vigência de prazo; era a ditadura sem disfarces. Em nome da segurança nacional e da ordem social, o Congresso foi colocado em recesso, parlamentares foram caçados, pessoas foram torturadas, perderam a vida ou foram exiladas para outros países, e inúmeras desapareceram. Por força do Decreto no 477, de fevereiro de 1969, vários estudantes foram expulsos das universidades (STEPAN, 1988). Nesse cenário, não havia espaço para um instrumento democrático que se propõe a controlar e fiscalizar a administração pública.

Na década de 1970 surgiu uma farta bibliografia nacional, de autores como Celso Barroso Leite e João de Oliveira Filho, sobre o ombudsman, contribuindo significativamente para a difusão do tema no Brasil (GOMES, 2000). Em 1977, a Comissão de Valores Mobiliários do Ministério da Fazenda criou, através de decreto, cargo de ombudsman no seu quadro de funcionários, mas que não chegou a ser preenchido.

Na década de 1980 surgiram novas propostas de criação de mecanismos de controle da administração pública no Brasil. De acordo com Gomes (2000), a intensificação dos pronunciamentos contra o governo na Câmara dos Deputados e no Senado Federal resultou num projeto de emenda constitucional, de autoria do deputado Mendonça Neto (PMDB/AL), que requeria a criação de uma Procuradoria Geral do Povo11 — proposta arquivada em 1982,

por decurso de prazo. Nesse mesmo ano, foi apresentada nova proposta, de autoria do deputado José Costa (PMDB/AL): a criação de uma Procuradoria-Geral do Legislativo. Depois disso, outras propostas de criação do ombudsman surgiram no país, e algumas delas chegaram a ser apresentadas ao Congresso Nacional, como a do senador Luiz Cavalcante (PDS/AL) e dos deputados Jonathan Nunes (PMDB/PI) e Ney Lopes (PDS/RN), e do senador Marco Maciel (PDS/PE).

Apesar do esforço desses parlamentares em criar ouvidorias públicas, foi a iniciativa privada que colocou em prática o primeiro ombudsman no Brasil. Em 1985, a Rhodia o instituiu na sua estrutura organizacional (BASTOS, 2006), ao mesmo tempo em que mudava o perfil de empresa fechada, adotando uma nova política de aproximação com o cliente.

Na esfera pública, a primeira experiência concreta de ombudsman na administração pública brasileira foi a do município de Curitiba, capital do Paraná — influenciada sobretudo pela Constituição espanhola, de 1978, e da portuguesa, de 1976, que denominam o

ombudsman como defensor del pueblo e provedor de justiça, respectivamente — em 18 de

março de 1986, no mandato do prefeito Roberto Requião, a qual foi desativada após dois anos de funcionamento. Três anos depois, também por iniciativa de Roberto Requião, então governador do Paraná, foi instalada a Ouvidoria Geral do Paraná, a primeira em nível estadual, para recebimento de sugestões e reclamações referentes ao funcionamento do serviço público estadual com o intuito de defender os direitos dos cidadãos paranaenses (GOMES, 2000, p. 68).

Com a abertura política e a realização de eleições em 1982, abriu-se espaço para uma maior participação dos segmentos organizados da sociedade civil, embora ainda de forma limitada, principalmente no tocante aos setores que regulam o Tesouro, a administração, o planejamento e o orçamento públicos. É nesse contexto que o Governo Federal, no mandato de José Sarney, tentou, por duas vezes, instituir o modelo escandinavo do ombudsman no Brasil: em maio de 1986, através do Decreto no 92.700, foi criado o cargo de Ouvidor-Geral da Previdência Social. No entanto, mesmo que “louvável o intento, foram postergados alguns elementos essenciais na estruturação do órgão, o que acabou por comprometer integralmente os resultados da iniciativa” (GOMES, 2000, p. 67).

Em dezembro desse ano, foi criado o Conselho de Defesa dos Direitos do Cidadão (Codici), através do Decreto no 9.3714, o qual era composto por servidores do Gabinete Militar, da Consultoria-Geral da República, da Secretaria da Administração Pública da

Presidência da República e do Gabinete Civil (que o presidia), designados pelo Presidente da República. O Codici estabelecia, no artigo 1º, que:

[...] as atividades dos órgãos da Administração Federal estão sujeitas à fiscalização permanente de qualquer pessoa, que poderá exercer o direito de representação e de petição ao Poder Executivo, a qualquer tempo e em quaisquer circunstâncias, na defesa de direitos ou contra erros, omissões ou abusos de autoridades administrativas. (SENADO FEDERAL: Subsecretaria de Informações, 1986).

Em 1988, na Assembléia Nacional Constituinte, a deputada Raquel Capiberibe (PMDB/AP) apresentou projeto de emenda constitucional para instituir o ombudsman no país, sob a denominação de “defensor do povo”. A proposta previa a sua escolha pelo Congresso Nacional (através de eleição) e sua atribuição seria o controle da administração federal (AMARAL FILHO, 1993).

A Plenária da Constituinte não aprovou a criação do “defensor do povo”, alegando que as atribuições que lhe seriam designadas já eram cumpridas pelo Ministério Público da União e pelo Tribunal de Contas da União. Amaral Filho (1993, p. 125) afirma que a rejeição “deu- se, em grande parte, devido às pressões exercidas pelos procuradores ligados ao Ministério Público, que viam na criação do ombudsman uma possível limitação de suas funções”. Nessa linha de pensamento, a Assembléia Constituinte optou por ampliar as funções daqueles dois órgãos, e a responsabilidade pelo controle da administração pública ficou distribuída entre eles e o Congresso Nacional, com características semelhantes às tradicionais funções do

ombudsman.

A Constituição brasileira define, no artigo 129, que cabe ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (BRASIL, 2000, p. 79); e, no artigo 71, que “o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União [...]” (BRASIL, 2000, p. 56), responsável pela fiscalização contábil, financeira e orçamentária. No que se refere ao Congresso Nacional, a função deste, segundo o artigo 49, é “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer uma de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” (BRASIL, 2000, p. 46).

A não implantação da figura do ombudsman com atuação em nível nacional, enquanto órgão criado pela Constituição Federal, não impediu a criação de ouvidorias estaduais,

municipais e setoriais. Várias ouvidorias setoriais foram implantadas na esfera federal: Ouvidoria Geral do Ibama (1989), Ouvidor Geral da Seguridade Social (1991), Ouvidor Geral da República (1992), etc.

A partir da década de 1990, período em que transcorria o processo de democratização, ocorreu a expansão12 das ouvidorias13 em todo o território nacional, nas esferas federal, estadual e municipal, na administração pública, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e, também, em organizações privadas. No Brasil, o termo ouvidoria é mais utilizado para designar instituições públicas; e ombudsman é utilizado, com mais freqüência, pelos setores privados.

Na primeira metade dessa década, Amaral Filho (1993, p. 141) chamava atenção para o fato de que “o sucesso do ombudsman no mundo não deve nos iludir quanto às suas possibilidades no Brasil. O defensor do povo só conseguirá realmente desenvolver suas atividades num clima de abertura democrática e de participação política dos indivíduos”, uma vez que é um instrumento de controle e de defesa do cidadão.

Nesse sentido, embora possuam algumas semelhanças, o ombudsman clássico e as ouvidorias públicas brasileiras apresentam muitas diferenças. O que mais chama a atenção na distinção entre esses instrumentos de controle é o fato de que o primeiro apresenta-se como mecanismo de controle externo, é um instrumento unipessoal e apenas formalmente vinculado ao Poder Legislativo. A maioria das legislações que o consagram confere ao seu titular autonomia absoluta em relação às demais autoridades no exercício de suas funções — em geral, pode fiscalizar todos os órgãos e agentes da administração direta ou indireta, inclusive da administração da Justiça e das Forças Armadas (GOMES, 1996).

Já as ouvidorias, em sua maioria, apresentam-se como mecanismo de controle interno da administração pública e estão constituídas na forma de órgãos do Poder Executivo. Em geral,

12 Além das ouvidorias ligadas à administração pública brasileira, vêm surgindo muitas no setor privado, como ouvidorias universitárias, de bancos, a da Folha de S. Paulo (que, aliás, contribuiu bastante para a divulgação do

ombudsman no Brasil), a do Hospital das Clínicas de São Paulo, a do Sistema Telebrás, a da Rede Celpa, etc.

13 Com a expansão das ouvidorias no Brasil, foi criada a Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman (ABO) — com o intuito de reunir os ouvidores brasileiros, tanto da área pública como da área privada — durante o I Encontro Nacional de Ouvidores/Ombudsman, realizado em 16 de março de 1995, em João Pessoa (PB). A ABO é uma associação civil sem fins lucrativos, que desempenha trabalho de instrução e orientação, principalmente através de seminários, palestras, encontros, oficinas e cursos; e tem, como objetivo principal, “estimular e promover o congraçamento e o relacionamento entre todos aqueles que exerçam a função de Ouvidor/Ombudsman no Brasil, como também os que atuam em atividades de defesa da cidadania, dos direitos individuais e do meio ambiente” (Estatuto Social da ABO); e desempenhou importante papel no processo de criação e consolidação das ouvidorias no Brasil. No III Encontro Nacional de Ouvidores/Ombudsman, realizado em 19 de dezembro de 1997, em Fortaleza (CE), aprovou o Código de Ética dos Ouvidores/Ombudsman.

são dirigidas por cargos comissionados, e são poucos os exemplos de ouvidorias instituídas por lei. Nessas condições, a eficiência de muitas delas tem dependido do entrosamento governamental de seu titular. Segundo Lyra (1996, p. 128), nosso ombudsman é “um funcionário qualificado que têm como função receber denúncias, sugestões e críticas oferecidas à administração pública e apreciá-las de maneira ágil e informal, com vistas à melhoria dos serviços prestados ao cidadão e ao resguardo de seus direitos”, constituindo-se como instrumento de luta contra o corporativismo.

Em um país com precárias condições democráticas, a adoção de qualquer forma de controle social sobre o Estado ou empresas sem dúvida ganha aspecto de algo novo e promissor, principalmente porque as ouvidorias surgiram em função da emergência da proteção aos direitos humanos. Nesse contexto, elas assumem papel de fundamental importância para o aprofundamento do sistema democrático no Brasil. Segundo Cardoso (2006, p. 61), a ouvidoria possui:

[...] uma dimensão política, que tem por objetivo contribuir com a consolidação dos valores democráticos; social, pela ampliação da cidadania como instrumento para uma cidadania ativa; e econômica, como instrumento de gestão para busca da eficiência das organizações. Dessa forma, ser ouvidor implica reunir habilidades e capacitações múltiplas. Não dá para improvisar, principalmente em organizações mais complexas, sob pena de a sociedade perder a credibilidade nesse instrumento.

As ouvidorias públicas brasileiras podem assumir importante papel na recuperação da credibilidade do Poder Público, e, em se tratando de ouvidorias de polícia, ser uma importante ferramenta do cidadão contra abusos e violação dos direitos humanos praticados por agentes de segurança pública.

1.2.2 A instalação das ouvidorias de polícia no Brasil: o controle externo da