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CONCLUSÕES DA PARTE I

1. Porquê normas específicas para a descrição de espécies musicais escritas?

1.1. Problemas relacionados com a natureza da obra musical

1.1.1. Enquanto “unidade literária”

1.1.1.1. O título uniforme

estrofe são apresentados com a música e a totalidade do texto é apresentado à parte), não é indiscutível qual o autor que deve ser considerado como principal. Além disso, estes critérios – embora destinados a estabelecer a autoria da “obra”, acabam por se basear nos dados da “manifestação”. Que sentido faz considerar Augusto Machado como autor principal da ópera Lauriane90, quando estamos a catalogar uma partitura e considerar A. Guiou como autor principal quando estamos a catalogar o libreto? A “obra” que estes documentos representam não é

a mesma? Como nota Mey91, «o único meio de fugirmos ao labirinto de

responsabilidades múltiplas, ou à dicotomia item versus obra, consiste em visualizarmos a obra como um todo, em sua unicidade», ou seja, enquanto “unidade literária”.

Acrescem, a estes argumentos teóricos, outros, de ordem prática, como o apresentado por Dan Matei92 que considera mesmo que, desde que existem catálogos informatizados «acest principiu [dos cabeçalhos principal e secundário] a devenit complet caduc». As possibilidades proporcionadas pelos catálogos informatizados tornam inútil o conceito de autor principal: os sistemas permitem relacionar “obras”, “expressões” e “manifestações”, e estas aos respectivos responsáveis intelectuais e/ou materiais, de forma a que seja possível estabelecer as ligações necessárias sem ter de decidir sobre aspectos de natureza musicológica, literária ou filológica.

1.1.1.1. O título uniforme

O título uniforme musical é um dos mais importantes instrumentos de organização do catálogo e destina-se a identificar uma obra de forma clara e inequívoca (enquanto “unidade literária”), independentemente das formas como possa ocorrer identificada nos documentos (“unidades bibliográficas”), e associá-la univocamente a um autor. Não obstante a indiscutível utilidade deste recurso

90 Ópera que serve para os exemplos apresentados no final deste estudo. 91

MEY, Eliane – Acesso aos registros sonoros 92

catalográfico, a construção do título uniforme apresenta algumas ambiguidades que dificultam e podem mesmo inviabilizar estes objectivos.

Há que ressalvar, em primeiro lugar, que não existe qualquer norma internacional para a construção de títulos uniformes. Não obstante, eles são preconizados na maioria das regras de catalogação nacionais, quase sempre adaptados das regras anglo-americanas de catalogação (AACR).93

Em segundo lugar, o título-uniforme não é prioritariamente um instrumento de pesquisa e não substitui os cabeçalhos de assunto

Em linhas gerais, a construção de títulos uniformes obedece a dois princípios fundamentais:

– O título uniforme é sempre aquele que foi atribuído pelo autor, na língua original, ainda que a obra seja conhecida por outros títulos ou pelo mesmo título mas em outra língua;

– O título uniforme é sempre o da obra, mesmo que estejamos a catalogar uma transcrição, redução ou arranjo. Pretende-se que o mesmo título uniforme encabece todas as “expressões” de uma mesma “obra” musical.

O título uniforme pode ser de um e apenas um de dois tipos não combináveis entre si:

– Pode ser um título distintivo, isto é, um título específico atribuído à obra como um nome ou uma frase. É o que acontece sempre nas óperas mas também em outros géneros, principalmente os de música vocal;

– Pode ser um título genérico quando é constituído por um termo que designa um género ou forma musical. É o que sucede na maior parte da música sinfónica e de câmara e em outros géneros, principalmente os de música instrumental. Neste caso, o termo genérico é sempre acompanhado de outros elementos que especificam o título (tonalidade, dispositivo, número de opus, etc.), tantos quantos os necessários para que, associadas ao mesmo autor, não possa haver duas obras com o mesmo título uniforme.

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Há que frisar que o título uniforme não tem como objectivo descrever ou explicar qualquer aspecto de uma obra mas, apenas e somente, identificá-la de forma unívoca. Uma ópera tem apenas entrada de título uniforme pelo seu título distintivo, sem que a esse título distintivo sejam acrescentados quaisquer dados de género, tonalidade, número de opus, etc. E como o título uniforme é criado para a obra original, um concerto para clarinete e orquestra em transcrição para banda, por exemplo, tem o seu título uniforme pelo dispositivo original acrescido de uma mera menção de arranjo. No actual quadro normativo, descrições, especificações e explicações sobre a “obra” ou sobre a “expressão” têm lugar ou na zona de notas ou nas entradas de classificação e assunto.

No entanto, apesar deste princípio ser, numa primeira análise, rígido, as regras para a sua construção acabam por incluir dados da “expressão” e até, por vezes, da “manifestação” que tornam confusa a identificação.

Vejamos os seguintes casos:

– Língua: quer as AACR quer a norma francesa94 preconizam a inclusão da língua quando o documento catalogado contém uma “expressão” em língua diferente da original: este é um dado da “expressão”.

– A menção de “extracto” ou de “selecção” estabelece uma relação de todo-parte que tem naturalmente a ver com a “manifestação”.

– A menção de “arranjo” situa-se claramente ao nível da “expressão” e estabelece uma relação entre duas expressões da mesma obra. Não resolve, contudo, a questão da fronteira entre a “expressão” de uma obra e uma nova “obra” baseada noutra. Pode inclusivamente levar a que o mesmo arranjo possa entrar com dois títulos uniformes distintos ou que, para dois arranjos de natureza semelhante, sejam aplicados critérios diferentes.

– No caso das obras musicais litúrgicas ou devocionais, não é claro quando uma obra deve entrar por um título verdadeiro (não se trata aqui de um título distintivo porque não é atribuído por um autor) ou por um termo genérico. As

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AACR estabelecem sistematicamente um acesso “autor” ao nome da Igreja, quando se trata de liturgia, e só criam título uniforme de obra para verdadeiras obras. Contudo, isto leva a ambiguidades na pesquisa, a menos que o utilizador esteja muito bem instruído quanto à forma de a efectuar.

Perante estas ambiguidades torna-se bastante evidente a incapacidade de um sistema de títulos uniformes para identificar com rigor “obras” e as respectivas “expressões”, para descrever as suas particularidades e para estabelecer fronteiras precisas entre um arranjo e uma nova obra.95