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Em 1839, o escritor francês Astolphe de Custine (1790–1857) relatou, após uma viagem empreendida em São Petesburgo e Moscou, que o teatro russo poderia resumir-se a uma cópia caricata da produção cultural da Europa Ocidental. Por seu contexto político e pela ainda incipiente constituição de um senso de nacionalidade e identidade cultural própria, o movimento artístico russo empenhava-se em repetir padrões advindos da Europa Ocidental, num esforço da nobreza de igualar- se às nações daquela região, conforme sinalizamos anteriormente. Esse movimento fazia com que se perdessem vários aspectos da produção popular à época, que continha uma identidade própria, e à qual era dada pouca ou nenhuma atenção (Schuler, 2009).

As afirmações de Custine, apesar de demonstrarem um preconceito da aristocracia francesa com relação aos seus vizinhos russos, capturou uma importante verdade sobre a Rússia imperial dos séculos XVIII e XIX: o teatro e a performance foram fatores-chave para a revolução dentro da cultura e da sociedade russas, fato que começou sob o reinado de Pedro I e teve continuidade por todo o período imperial.

Entre 1801 e 1881, perpassando pelos reinados de Alexandre I e Nicolau I, pelas reformas de Alexandre II, pelas revoluções internas e pela Guerra da Crimeia, os intelectuais russos esforçaram-se para articular uma identidade singular, enquanto se mantinha o processo de modernização iniciado por Pedro I. Dessa forma, o período se caracterizou por uma tentativa de ressuscitar tradições culturais

autênticas e criar novas mitologias sobre a superioridade russa, conjugada ao impulso de conservar os efeitos mais avançados da influência ocidental.

Segundo Farber (2008), a importância do teatro na sociedade russa dos séculos XVIII e XIX se deve à sua atuação como uma espécie de fórum. Nele podiam ser discutidos assuntos que eram banidos, pela censura, das rodas de discussão pública e que, como representação cênica da realidade, podiam ser alcançados por meio da experiência estética.

De acordo com Borovsky (1999), o teatro russo aludia a assuntos pertinentes à vida da sociedade por meio de uma espécie de sistema, ou código, que o público aprendeu rapidamente a reconhecer e interpretar. Dessa forma, muitos dramaturgos à época — alguns deles dedicados também à literatura — recorriam à cena teatral para levar ao público discussões sobre a ordem social e os ideais de mudança, que se configuraram com mais força a partir do século XIX.

Rafael Zotov (1795–1871), um proeminente administrador teatral, relatou em suas memórias que o maior feito do teatro russo foi sua gradual emancipação em relação à produção estrangeira, o que aconteceu logo no início do século XIX (Schuler, 2009). Como outros intelectuais russos da época, Zotov lutou pela recuperação da identidade cultural no teatro russo, reformulando-o para servir aos novos propósitos sociais, culturais e políticos exigidos pelo panorama mundial que se formava, reavaliando os méritos da etnicidade, da história e da cultura russa. No entanto, a função do teatro na Rússia àquela época era a de civilizar os russos, provendo-os com o iluminismo europeu e ajudando- os a fazer a transição para a modernização, guiada pelos padrões ocidentais.

Mas foi a partir de mudanças históricas e sociais mais profundas — como a emancipação dos servos, a disseminação das ideias marxistas na Rússia e a formação dos primeiros sindicatos — que o teatro passou a ser uma forma de expressão da cultura popular, como nos mostra este trecho de Swift (2002), ao falar sobre o encontro entre Stanislavski (1863–1938) e Nemirovich Dantchenko (1858– 1943) com um oficial do Império:

this encounter between the tsarist official and the playwright is more than a curious anecdote or footnote in the long saga of confrontations between Russian artists and the state. It allows us a brief glimpse at a forgotten side of the cultural ferment that Russia was experiencing in the autumn years of the Old Regime and reminds us that artists were concerned not only with finding new modes of expression but also with finding new audiences for their work. The middle-class actor Stanislavsky and the aristocratic dramatist Nemirovich were by no means alone in dreaming of a new kind of theater that would serve Russians of all social classes. By the turn of the century, narodnye teatry, or ‘people’s theaters’, were springing up all over Russia; there were more than ten in St. Petersburg alone, and many more in the provinces. They were organized by industrialists, liberal educators, temperance societies, cooperatives, and factory workers themselves. Leo Tolstoy wrote plays for the people’s theaters, Aleksandr Blok went slumming in them, Vsevolod Meyerhold made his stage debut in one, and Maxim

Gorky helped found one. (p. 1)37

Vemos, assim, a partir do final do século XIX e início do século XX, uma busca dentro da arte teatral por uma nova identidade e uma tentativa de alcançar o homem do povo, assim como aconteceu na literatura e nas artes plásticas. Durante e após a revolução, o teatro passou por transformações profundas, deixando de ser apenas uma forma de educar a elite russa — com peças de autores ocidentais — para servir aos ideais do movimento revolucionário, que viu nos artistas seus principais aliados para encarnar a ideia do homem novo do socialismo, por meio de novas experiências estéticas, tais como o Realismo38 e o Simbolismo39 (Green, 1977).

Abram Efros, vice-diretor do Museu de Belas-Artes de Moscou, descreveu, em 1929, o panorama teatral pós-revolucionário. O relato nos traz elementos para compreender a mudança no teatro russo e sua integração aos ideais revolucionários da esquerda:

the theater of the revolution was unique and indelllible in its impression. It continues to excite the memories of men long afterwards as strongly as it excited their imaginations at the time. The theater incarnated the revolution while revolution inspired the theater. The theater contributed to the revolution its dirigeants, its actors and its art, the foremost in Europe, while the revolution reciprocated by creating for the theater a new public, a new simpathy, a new social meaning. In the same auditorium were heard in the daytime the reports of the Soviets, calls to reconstructive activities, and mottoes of defence, and in the evening a first-class performance. This combination became usual and much desired after the first solemn days. The theater and the revolution carry each other’s colors. (p. 8)40

37“Este encontro entre o oficial czarista e o dramaturgo é mais do que uma anedota ou nota de rodapé curiosa na longa saga de confrontos entre os artistas russos e o Estado. Permite-nos um vislumbre de uma porção esquecida da ebulição cultural que a Rússia estava experimentando nos anos de outono do Antigo Regime e nos lembra que os artistas não estavam preocupados apenas em encontrar novos modos de expressão, mas também em encontrar novos públicos para seu trabalho. O ator de classe média Stanislavski e o dramaturgo aristocrata Nemirovich não estavam de modo algum sozinhos em sonhar com um novo tipo de teatro, que serviria aos russos de todas as classes sociais. Na virada do século, os teatros narodnye, ou “teatros do povo”, estavam brotando em toda a Rússia; havia mais de dez só em São Petersburgo, e muitos mais nas províncias. Eles foram organizados por industriais, educadores liberais, sociedades de temperança, cooperativas e trabalhadores de fábricas. Leo Tolstoi escreveu peças para os teatros populares, Aleksandr Blok foi se abrigar neles, Vsevolod Meyerhold fez sua estreia no palco de um desses teatros, e Maxim Gorky ajudou a fundar um” (tradução livre).

38

O realismo é uma tendência estética cuja emergência se situa historicamente entre 1830 e 1880. É também uma técnica capaz de dar conta, de maneira objetiva, da realidade psicológica e social do homem (Pavis, 2008).

39

Movimento artístico do século XIX, o Simbolismo generalizou a noção de símbolo fazendo dele o código da realidade: “a tentativa de construir, no palco, um universo (fechado ou aberto) que tome alguns elementos emprestados da realidade aparente mas que, por intermédio do ator, remeta o espectador a uma realidade outra que este deve descobrir” (Dort, 1984, p. 11 citado por Pavis, 2008, p. 361).

40

“O teatro da revolução era único e indelével em sua impressão. Continua a excitar as lembranças dos homens muito tempo depois, tão fortemente como excitou sua imaginação na época. O teatro encarnou a revolução e a revolução inspirou o teatro. O teatro deu à revolução seus dirigentes, seus atores e sua arte, o primeiro na Europa, enquanto a revolução ofereceu ao teatro um novo público, uma nova simpatia, um novo significado social. No mesmo auditório foram ouvidos, durante o dia, relatos dos soviéticos, convocações para atividades reconstrutivas e lemas de defesa, e, à noite, uma performance de primeira classe. Esta combinação tornou-se

Mas o teatro russo não carregava apenas as cores da revolução. Por ter se tornado uma arte essencialmente democrática, buscou uma dramaturgia e uma noção estética que pudessem alcançar o novo público. Pela experimentação entre arte e vida, os artistas passaram a questionar o próprio fazer teatral, procurando entender o papel do ator em relação estreita com as novas bases políticas e sociais que se fundavam. Buscavam a sua verdade interna (Green, 1977).

Nesse contexto de transformações e de busca por uma nova identidade cultural e artística, surgiram nomes importantes do teatro russo, que viriam a impactar profundamente o teatro moderno. Entre eles estava Stanislavski, que, no comando do TAM, inaugurou uma nova fase na arte teatral, vendo-a a partir de uma dimensão histórica, como expressão social dos sentimentos humanos, como veremos no próximo capítulo.

usual e muito desejada após os primeiros dias solenes. O teatro e a revolução carregam as cores um do outro” (tradução livre).

3 STANISLAVSKI: UM NOVO OLHAR SOBRE

A ARTE DO ATOR

Nas nossas conversas, três assuntos, constantemente repisados, refletiam as suas mais íntimas preocupações. Dizia ele: “A nossa arte, a arte teatral, é, na época atual, de todas, a mais atrasada. Mas seria rematada tolice aplicar-lhe artificialmente os métodos de outras artes. Não devemos nunca fingir que exprimimos o que não podemos exprimir.” Havia, porém, momentos em que esse homem tão reservado, até mesmo um tanto misterioso, pondo-me a mão no ombro, mergulhava os olhos nos meus, e dizia: “Acredite no que eu digo: nós, artistas de teatro, nós que temos fé na nossa arte, e só para ela

vivemos, em todos os países do mundo, devíamos nos reunir e trabalhar juntos, em vez

de nos esfalfarmos e nos consumirmos inutilmente por quem não se importa conosco...” (Copeau, 1956, p. 9)

Figura 9. Retrato de C. Stanislavski (1908) feito por Valentin Serov (1865 – 1911). Fonte: