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A famosa frase dita por Hamlet resume poeticamente o sentimento expresso nas reflexões do protagonista a respeito da existência humana. A exemplo da personagem shakespeariana, o jovem Vigotski (1999a), em sua análise da referida obra literária, vislumbrou o entendimento do que posteriormente chamaria de drama das relações humanas. Alguns anos mais tarde, um Vigotski amadurecido analisou a constituição humana a partir dos papéis sociais, como uma experiência vivida em uma perspectiva de eu e de outro. Foi a partir desta noção que Vigotski (2000, p. 32) apresentou o conceito de “personalidade social”, aludindo à constituição da pessoa como a síntese das relações sociais encarnadas em si.

Mas a coisa não é tão simples. Com efeito, a ideia de “pessoa social”, no contexto em que ela aparece, é o equivalente de “agregado de relações sociais incorporadas num indivíduo”, o que fala mais de multiplicidade que de unidade, como é entendida a ideia de sujeito psicológico. Como vimos anteriormente, o “sujeito da relação” não é o mesmo em todas as relações sociais. A posição que ele ocupa em cada uma delas varia em função do tipo de relação. […] Mas, se as posições do “sujeito da relação” variam em função do outro sujeito dessa relação, a “pessoa social” envolvida em todas as relações sociais permanece a mesma. O que quer dizer que a ideia de “pessoa social” envolve a ideia, ao mesmo tempo, de unidade e de

multiplicidade, o que coloca em xeque o conceito tradicional de sujeito psicológico. (Pino,

2000, p. 73, grifos nossos)

Vigotski buscou compreender como a personalidade humana se constitui como relação dialética entre o interno e o externo, em uma perspectiva de ser e não ser, quando o humano se constrói pela alteridade, pelo que é a experiência social para si. Nesta dupla existência, quando o homem se forma como unidade da multiplicidade de papéis, Vigostki entende a constituição do humano não como um simples reflexo, mas como uma síntese das suas experiências, uma vez que as relações reais são convertidas em representações semióticas no indivíduo (Pino, 2005).

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Em uma linguagem emprestada da concepção teatral, Vigotski investigou como os papéis assumidos socialmente são encarnados pela pessoa a partir das relações reais, transformadas em representação simbólica. Desta forma, a constituição dramática da consciência humana assumiu um papel central na obra do psicólogo bielorrusso, tornando-se de vital importância para a compreensão de diversos conceitos no pensamento vigotskiano (Delari Jr., 2011; Rubtsova & Daniels, 2016; Van der Veer & Valsiner, 1996).

A noção de drama desenvolvida por Vigotski a partir das suas reflexões sobre a experiência trágica de Hamlet fala do choque de sistemas quando os papéis assumidos socialmente pelo sujeito entram em contradição. Por meio do choque, do conflito entre os deveres e desejos contraditórios diante da necessidade de posicionar-se, é que se constitui a personalidade como drama.

A utilização de termos teatrais na teoria do psicólogo bielorrusso evidencia a influência definitiva do teatro em vários conceitos do seu pensamento. Sua familiaridade com a linguagem teatral e sua própria experiência como ator, diretor e crítico teatral o conduziram em seus primeiros questionamentos sobre a constituição da personalidade.

Vigotski abordou o drama e a arte desde o início de sua obra, compreendendo-o como algo que afeta o essencial e mais determinante do ser humano. Partindo da arte, Vigotski percorreu os caminhos da psicologia a fim de analisar o processo de desenvolvimento e a constituição do sujeito, voltando-se para o seu principal objeto de estudo: a consciência humana (Levitin, 1982). Desta forma, o amplo interesse sobre a arte proporcionou ao psicólogo perscrutar deliberadamente a essência daquilo que se propunha a analisar (Delari Jr., 2015). Em consonância com as bases materialistas histórico-dialéticas de seu pensamento, Vigotski voltou-se para a essência dos fenômenos, para a busca por respostas às suas indagações, cujos caminhos o conduziram ao conceito de perejivanie (Smagorinski, 2011).

A noção de perejivanie é desenvolvida por Vigotski a partir do entendimento da constituição dramática (e, portanto, dinâmica) da consciência, analisando as suas implicações no desenvolvimento humano (Martsinkovskaya, 2009; Smagorinski, 2011; Vasiliuk, 1991; Veresov, 2016). Por meio do conceito, Vigotski pôde descrever como a experiência é percebida e vivenciada pela pessoa nas relações sociais (Mahn & John-Steiner, 2002).

Compreender a perejivanie nos remete ao limiar entre a vida e a arte, onde o conceito efetivamente se situa. De fato, como afirmado por Delari Jr. (2011) ao retomar a noção de Politzer (1903–1942) de que a psicologia deveria imitar o teatro para compreender a vida, “também é prudente sublinhar o verbo ‘imitar’ e não tomá-lo como ‘reprodução especular’ — reconstituição idêntica do ‘modelo’ tal como ‘imagem espelhada’” (p. 183). Portanto, entendemos essa visão no limiar não como a tentativa de uma visão a partir da reprodução espelhada da experiência cênica, mas em um diálogo profícuo entre o conhecimento teatral e a teoria psicológica, de forma que possamos entender profundamente a experiência humana.

perspectiva do limiar. A perejivanie constitui-se como um dos principais tópicos da psicologia histórico-cultural, ao condensar a visão do psicólogo bielorusso sobre a constituição da personalidade humana. Para os fins da nossa análise, elucidaremos o conceito a partir de sua origem, tanto em seu uso comum na língua russa quanto em sua utilização extracotidiana, esforço que invariavelmente nos remeterá às relações entre a obra de Vigotski e os conceitos desenvolvidos por Stanislavski ao embasar a criação de seu Sistema para o trabalho criador do ator.

Antes de analisarmos os elementos da perejivanie com base nos escritos de Vigotski e Stanislavski, assunto ao qual se dedica este capítulo, faz-se necessário compreender alguns aspectos envolvidos no uso e nas traduções do termo russo perejivanie — que, conforme observado por alguns autores, não possui tradução direta para nenhum outro idioma, o que acarretou alguns problemas na sua compreensão (Delari Jr. & Passos, 2009; González Rey, 2016; Prestes, 2010; Veresov, 2016).