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2. Análise das imagens

2.4. O tempo do martírio: fólio 79v, Suplício de Mársias

Figura 11: Suplício de Mársias. Fólio 79v. Ms. BNF Fr 137. Século XV. Disponível em: < www.mandragore.bnf.fr >, acesso em: 21/09/2011.

51 Dentro da inicial historiada “A”, de Ainsy, está Mársias, deitado, amarrado, enquanto dois homens ajoelhados esfolam sua perna e seu braço. No braço ficam visíveis as partes descarnadas, delineadas e pintadas em tons mais escuros. Ele está nu, enquanto seus algozes vestem túnicas e portam chapéus. Na parte inferior, ao centro, há uma lira, e à esquerda, uma aljava com flechas.

Ovídio trata em seu livro VI das Metamorfoses de Mársias, músico de grande habilidade, tendo inventado a flauta e a harmonia frígia. Dedicado a Cibele, acompanhou-a em suas viagens que os levaram a Nisa, onde encontraram Fébus. Foi aí que, orgulhoso com suas novas descobertas, Mársias ousou propor ao deus um desafio. Fébus o venceu e, como castigo, mandou esfolarem-no vivo. Mais tarde Fébus, arrependido da barbaridade, quebrou as cordas da guitarra ou da lira, e depôs esse instrumento, juntamente com as flautas de Mársias, em uma furna de Baco, a quem os consagrou81. Na Antiguidade foi tomado como símbolo da liberdade por causa de sua relação com o deus cognominado Líber (Baco)82. Eis a narração poética de Ovídio, que detalha seu suplício minuciosamente:

Depois de um desconhecido ter contado o fim dos homens da Lícia, outro lembra o do sátiro, vencido com sua flauta, vinda de Tritônia, e que, vencedor, o filho de Latona castigou. “Por que me arrancas de mim mesmo?”, pergunta. “Ah! Tenho remorso. Ah!” gritava “Uma flauta não vale tanto!”. Enquanto gritava, sua pele era arrancada em todo o corpo; ele não era mais que uma só ferida. O sangue escorre por toda a parte, os nervos estão expostos; latejam as veias trepidantes que pele alguma cobre; poder-se-iam contar as palpitações das vísceras e das fibras transparentes do peito. [...]83.

O Ovídio Moralizado narra, no livro VI, capítulo IX, como Palas, a deusa, descobriu a arte de fazer instrumentos musicais de sopro e de soar o trompete84.

O personagem pagão, pois, foi condenado, na versão cristã do texto, por sua hipocrisia, e vanglória, o que o levou ao esfolamento. Porém, na Antiguidade não era tanto o seu suplício que era representado. Há, por exemplo, uma escultura de Mirón que o mostra ileso, próximo a um tronco85. A representação feita na miniatura em estudo é mais

81

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Op. cit, p.135-136. 82

Idem. 83

OVÍDIO. As Metamorfoses. Op. cit, p.112. 84

BOER, C. De; Ovide Moralisé en prose. Texte du Quinzième siècle. Op. Cit., p. 194. 85

Disponível em < http://www.gobiernodecanarias.org/educacion/fundoro/es_confprieto.htm >, acesso em 18/09/2008.

52 parecida com a iconografia de um santo cristão, São Bartolomeu. Em algumas imagens este aparece segurando uma faca, instrumento do seu suplício, e um livro; em outras é mostrado mesmo seu esfolamento, como nesta imagem86.

86

Há um exemplo da sua representação recorrente na Idade Média segurando uma faca e um livro em uma pintura de Simone Martini, feita entre 1315 e 1344, disponível em: <http://www.metmuseum.org/Works_of_Art/viewOnezoom.asp?dep=11&zoomFlag=0&viewm ode=1&item=43%2E98%2E10>, acesso em 21/09/2008. Também uma imagem importante para comparação nesse estudo, já que é uma representação em uma miniatura medieval de São Bartolomeu sendo esfolado de forma semelhante à da imagem que analisamos, é a do Breviário de John de Fearless, que se encontra no acervo da Biblioteca Britânica:

< http://www.imagesonline.bl.uk/results.asp?image=025712&imagex=5&searchnum=2

> , acesso em 21/09/2008.

Figura 12: Martírio de São Bartolomeu. Fólio 296. Ms. Châteauroux BM 0002. C. 1414. Disponível em: < www.enluminures.culture.fr >, acesso em: 28/07/2011.

53 A imagem aproxima, pois, o mitológico Mársias ao santo cristão. É importante relembrar a hagiografia de São Bartolomeu: este é associado a Natanael, que o Evangelho de João situa como um dos doze apóstolos, citado em João 1, 45. Não desempenha nenhum papel nem nos Evangelhos nem nos Atos dos Apóstolos, mas ele teria evangelizado, depois da morte do Cristo, a Arábia, a Mesopotâmia e a Armênia, onde, segundo a martirologia romana, ele foi esfolado vivo sob as ordens do rei Astyage, furioso por suas conversões ao cristianismo. Como analisa Louis Réau: “Já haveria muitos decapitados e crucificados entre os apóstolos, tendo por esse motivo as hagiografias optado por um martírio menos banal, fazendo de São Bartolomeu um Mársias cristão”87

.

Além das questões sobre moralização cristã que esta imagem compartilha com as outras analisadas, esta, em particular, mostra mais o processo de encadeamento de influências de uma cultura sobre a outra. Porque depois da associação do santo medieval a Mársias, feita na Idade Média, até mesmo este personagem mitológico passou a ser representado no seu martírio, no Renascimento88. Isto é, a mitologia antiga teria fornecido elementos para a cristã, que depois também teria produzido efeitos na nova representação das narrativas antigas. Porém, esse é um pensamento que demandaria maior aprofundamento, pois lembramos que já na Antiguidade, havia a narrativa do esfolamento. E é um fato conhecido que muitas obras da daquele tempo antigo foram perdidas, interditadas. Ou seja, isso pode ter contribuído para que não houvesse imagens desse suplício naquele período conservadas até hoje.

É interessante, em nossa reflexão sobre essa imagem do BNF Fr 137, notar que de toda a narrativa da fábula, o momento escolhido para a representação é justamente o do esfolamento – e não a competição com o deus, por exemplo. Diferente da moralização do texto, que associa Mársias a um personagem negativo (que se vangloria, que é orgulhoso), a imagem o associa a um santo. Mas não por isso poderíamos chegar a dizer que se trata de uma moralização que valoriza o personagem pagão, porque na verdade já houve uma substituição: é como se já não se tratasse mais de Mársias, e sim de São

87

REAU, Louis. Iconographie de l’art chrétien. Paris: Presses Universitaires de France, 1958, vol. 3/1, p.181.

88

Há uma pintura de Tiziano intilutada “Esfolamento de Mársias”, exemplar do Renascimento herdeiro da associação medieval do personagem mitológico ao santo cristão, na representação em óleo sobre tela do seu suplício, que está no State Museum de Kromeriz, reproduzida em < http://www.artehistoria.jcyl.es/genios/cuadros/12592.htm >, acesso em 21/09/2008.

54 Bartolomeu. O que era castigo foi “metamorfoseado” em algo positivo (ainda que igualmente violento e causador de sofirmento): o martírio.

E, novamente, temos aqui uma imagem que mostra o tempo “presente”, o tempo da ação. Os algozes estão em pleno processo de esfolar o personagem principal. Seus instrumentos musicais, no entanto, jazem ao seu lado, inertes. Não há representação da música nessa imagem, ela já se calou.