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4. GRUPO ODEBRECHT: DA CONSTRUÇÃO CIVIL MUNDIAL A EDUCAÇÃO PELO TRABALHO NO CAMPO BAIANO

4.1 ODEBRECHT: MIGRAÇÃO, NEGÓCIOS E O INTERESSE PELO CAMPO BAIANO

4.1.1 O território teórico da educação do campo na perspectiva do Grupo Odebrecht

Pontos de Referência” (1970), “Pontos de Referência” (1970), “Sobreviver, Crescer e Perpetuar” (1983), “Influenciar e Ser Influenciado” (1984) e “Educação pelo Trabalho” (1991).

4.1.1 O território teórico da educação do campo na perspectiva do Grupo Odebrecht

Ao longo de sua vida, Norberto Odebrecht construiu sua filosofia empresarial (TEO) com o propósito de formar todos aqueles que mantinham relação com os negócios do Grupo. Desde os anos 1980, esse engenheiro-empresário passou a enveredar pelo campo da ação social, o que foi sendo assumido pela Fundação Odebrecht. E, assim como construiu uma filosofia empresarial para o mundo dos negócios, Norberto Odebrecht construiu uma filosofia educacional para suas ações sociais, ambas pautadas no princípio da educação pelo trabalho.

No âmbito da filosofia educacional, a educação pelo trabalho é um “modelo de educação para a empresariabilidade”. Quer dizer tem o propósito de preparar o ser humano para ser um produtor de riqueza, em outras palavras para ser um empreendedor (ODEBRECHT INFORMA ON LINE, 2016). Na opinião de Silva (2002, p. 38), o empreendedorismo é um conjunto de ações levadas a cabo por indivíduos que desejam “entrar no mercado de forma autônoma” conjugando “recursos físicos, humanos e capital de forma inovadora”. Para isso, essas pessoas precisam ter “conhecimento técnico, capacidade de identificar boas oportunidades de negócios, de atrair recursos financeiros e de tomar decisões rápidas em face de situações relacionadas ao seu ramo de negócio”.

193  Entende-se, portanto, que o empreendedorismo é uma das principais utopias dos teóricos que defendem a manutenção do capitalismo. Por isso, concorda-se com Camacho (2013, p. 720), quando esse autor coloca que a concepção do empreendedorismo tem como cerne a ideia de que “os mais eficientes tem a possibilidade de progredir e ascender socialmente e economicamente. E a crença no empreendedorismo vai além, pois pode ser a solução para gerar e distribuir a renda”.

Embasado nessa crença, Norberto Odebrecht projetou seu modelo de educação pelo trabalho para além dos muros da corporação. Parte-se do pressuposto que esse modelo educativo esteja relacionado à formação moralista e religiosa do seu idealizador. Mas, para além disso, tem uma relação estreita com as discussões que versam sobre educação empreendedora, educação corporativa, educação neoliberal no campo, educação do capital e educação rural, o que exige um pouco de atenção ao significado político de cada uma dessas expressões.

De acordo com Tiradentes (2012, p. 247; 249), a educação corporativa corresponde a um modelo de formação que surgiu nos Estados Unidos, na década de 1950. Neste modelo, a empresa ocupa o lugar da escola, desenvolvendo programas de “educação formal, informal e não formal de trabalhadores, de fornecedores e da comunidade, para aumento de produtividade, valorização do capital de marca e como estratégia hegemônica de difusão da concepção de mundo da classe dominante”. O objetivo inicial da educação corporativa era “treinar os trabalhadores de algumas indústrias”. Sua origem tem relação direta com a estratégia de negócios e com o sistema de formação de pessoas com base em competências vinculadas aos propósitos, valores, objetivos e metas empresariais.

A noção das competências se fundamenta em teorias educacionais que visam atender ao sistema capitalista. Para isso, é necessário a construção de um modelo educativo que valorize a produtividade e a competitividade, valores a serem alcançados numa educação cuja ideologia atenda às classes dominantes. Como disse Camacho (2013, p. 661), o objetivo é ir moldando o “comportamento das classes subalternas de acordo com as necessidades do capital em sua fase da acumulação flexível”, basta que essas competências sejam difundidas por meio “de técnicas a serem apreendidas por uma metodologia de ensino-aprendizagem que garanta o seu desenvolvimento, o adapte as transformações atuais e o inclua de maneira subalterna no modo de produção capitalista”.

194  Esse formato de educação, baseado na pedagogia das competências, visa manter a exclusão social das camadas populares. Sendo assim, o que se apresenta como concessão de um direito social é, na verdade, a difusão da ideologia neoliberal que, ao invés de engendrar um projeto de emancipação humana

(...) pode levar a reprodução de uma ideologia que faz com que as classes subalternas pensem que estão livres emancipados por estarem se apropriando do direito a educação, que foi historicamente negado, quando na verdade é mais uma forma de garantir a manutenção da lógica desigual do capital (CAMACHO, 2013, p. 744).

No contexto neoliberal, a educação corporativa adquiriu maior expressão atrelada a duas questões inter-relacionadas. De um lado, a ideologia de desqualificação do Estado social, abrindo espaço para que outros sujeitos assumissem funções que até então eram suas. Do outro, as mudanças nas bases técnicas e de gestão que exigem do trabalhador a incorporação dos valores das empresas. A junção desses dois aspectos fez com que um número cada vez maior de corporações passasse a promover programas de formação intelectual e técnica dos seus funcionários sempre em aderência a lógica do capital (TIRADENTES, 2012).

Vale lembrar que, no Brasil, o início dos anos 1990, foi marcado pela junção de vários processos que culminaram no comportamento social do setor privado, dentre os quais: abertura da economia; privatização das empresas estatais; crise política e econômica; fortalecimento da sociedade civil; maior envolvimento das organizações não-governamentais; busca de melhoria na qualidade dos processos de gestão das empresas nacionais, acompanhado de mudanças no mercado de trabalho, redução na capacidade de atuação do Estado e no crescente envolvimento das empresas privadas em ações sociais (PELIANO, 2011).

É importante registrar, que o comportamento social ou a responsabilidade social do setor privado se refere à maneira pela qual o empresariado “participa de ações sociais de caráter público” como, por exemplo, através de “atividades ou doações não obrigatórias realizadas pelas empresas para atender ou ajudar a comunidade com serviços de assistência, alimentação, saúde e educação, entre outros” (PELIANO, 2001, p. 13; 26). Por muito tempo, essas práticas não eram de conhecimento público devido ao baixo interesse das empresas e da mídia na sua divulgação, bem como pela escassez de trabalhos acadêmicos sobre o assunto, o que

195  passa a mudar justamente a partir dos anos 1990, em decorrência dos processos destacados acima, o que desembocou no crescimento do número de empresas que adquiriram o comportamento dito social.

Dentre os aspectos elencados, atribui-se relevância as mudanças no mercado de trabalho e a abertura da economia. O primeiro, teve importante relação com a introdução de novas tecnologias. Em meio a esse processo, houve um aumento do desemprego, o crescimento da informalidade e a terceirização das atividades de produção. Por outro lado, o Estado já não conseguia responder às crescentes demandas sociais (PELIANO, 2011). Nesse bojo, ganharam força as teses que sustentam a formação de novos agentes sociais, como as empresas privadas (PELIANO, 2001) e as organizações não-governamentais (SILVA, 2002).

Foi justamente esse contexto que permitiu a difusão da educação pelo trabalho do Grupo Odebrecht para além dos muros das empresas que integram a holding. Esse processo se deu de duas formas. Uma delas foi a implementação de projetos educacionais e de geração de trabalho e renda pela Fundação Odebrecht. A outra forma ocorreu com a formação de mão de obra para ser ligada a um dos negócios da Organização (ODEBRECHT S.A., 2013a, p. 7). Esse processo formativo também passou a ser feito com os colaboradores que já integravam o Grupo, especialmente para que se incorporassem continuamente os valores e concepções da empresa.

No caso da educação pelo trabalho voltada para os colaboradores ou futuros colaboradores, pode-se inferir que o Grupo Odebrecht tem como propósito preparar seus funcionários para aquilo que Luc Boltanski e Éve Chiapello denominaram como “mercantilização das relações sociais”, ou seja, exige-se um perfil específico de trabalhador, o de “homem conexionista”, um indivíduo apto a conviver com a realidade perturbadora de um mundo flexível “em que os seres se modificam ao sabor das situações que encontram” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p. 420).

Conclui-se, então, que os gestores da Organização Odebrecht identificaram a escassez de indivíduos com o perfil “conexionista” – ou, como colocou o próprio Norberto Odebrecht, compreendeu-se que os

Seres Humanos dotados de inteligência, conhecimento, talento e criatividade na medida exigida pela sociedade global em que vivemos, são escassos e tenderão a tornar-se cada vez mais raros. Os países vão precisar investir maciçamente na educação e formação de Seres Humanos deste tipo e as organizações também (ODEBRECHT, 1991, p. 451).

196  Por conta disso, a Odebrecht S.A. optou por partilhar e executar os princípios de uma “educação eficaz” no entorno das obras construídas pelo Grupo. Ao posicionar-se na dianteira desse movimento, o Grupo compreendeu que, assim como os “países vão precisar investir maciçamente na educação e formação de seres humanos”, as organizações, também, precisam fazê-lo (ODEBRECHT, 1991, p. 413; 451). Por isso, desde a década de 1980, o Plano de Ação do Grupo Odebrecht passou a priorizar a identificação, a seleção e a formação de jovens através da educação pelo trabalho.

Nesse sentido, o Grupo Odebrecht possui um programa institucional voltado para o desenvolvimento de pessoas em parceria com universidades e centros de formação como, por exemplo, o Programa Acreditar e o Programa Acreditar Júnior. Esses programas visam qualificar e contratar a população local em cada região que a Odebrecht se instala, seja no Brasil ou no exterior, envolvendo adultos (Programa Acreditar) e/ou jovens (Programa Acreditar Júnior). No Brasil, em parceria com o antigo MDS, os Programas priorizaram os beneficiários do Programa Bolsa Família do governo federal (ODEBRECHT S.A., 2015, 2014, 2013a, 2012, 2011, 2010). Desde 2008, o Programa Acreditar já havia contratado 3.034 pessoas que foram capacitadas nessas ações (ODEBRECHT S.A., 2015, p. 33).

O forte apelo e empenho do Grupo Odebrecht na formação de mão de obra também está em consonância com o que Boltanski & Chiapello (2009) denominam por espírito do capitalismo, ou seja, um conjunto de crenças que contribui para justificar e sustentar a ordem capitalista e legitimar os modos de ação e as disposições coerentes com ela, tornando-a aceitável e até desejável. A justificativa moral do capitalismo é pertinente pela importância em se refletir os motivos pelos quais esse sistema pôde criar uma série de representações capazes de guiar a ação, a ponto de ser aceito como a melhor das ordens possíveis.

Elementos como “motivação material” (salário), “empenho forçado” (coerção) e o nexo entre inspiração religiosa e práticas econômicas já se mostraram insuficientes em apontar razões morais para aliar-se ao capitalismo. Na contemporaneidade, a injunção desse sistema vem sendo interiorizado e justificado. Uma das vias utilizadas pela ordem capitalista para transmitir seus valores é a escolarização (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009). Como porta-vozes desse discurso em favor do “espírito do capitalismo” estão envolvidos grandes executivos de importantes empresas, tal qual o Grupo Odebrecht. Essas iniciativas garantem a difusão da Tecnologia Empresarial

197  Odebrecht para sujeitos que não fazem parte do conjunto de colaboradores da Odebrecht S.A., como os camponeses que são o alvo dos projetos educacionais e de geração de trabalho e renda Fundação Odebrecht.

A educação pelo trabalho promovida pela Fundação Odebrecht no interior da Bahia, também pode ser pensada como uma concepção de educação neoliberal no campo ou educação do capital. A educação do capital propõe “formar sujeitos que sejam funcionais à reprodução do capital, buscando inculcar ideologias dominantes, contribuindo para a perpetuação das desigualdades sociais e manutenção da sociedade de classes”, ou seja, está voltada para a formação de jovens rurais com o propósito de construir um “agronegócio inclusivo” ou uma “agricultura familiar empreendedora” (CAMACHO, 2013, p. 348; 702).

Com base em Kuhn (2015), o modelo de educação pelo trabalho se aproxima da chamada educação rural. Não que a filosofia educacional do Grupo Odebrecht esteja associada à precariedade e a má qualidade típica desse modelo histórico. O ponto em comum é fruto do novo ciclo de retorno da educação rural que avançou nos aspectos práticos, mas reproduz o modelo produtivista do campo, pois permanece com pouca crítica da realidade, prossegue com a escolarização descontextualizada e, principalmente, mantem a ausência de preocupação com a transformação das relações sociais e econômicas.

Seja com o nome de educação empreendedora, educação corporativa, educação neoliberal no campo, educação do capital ou educação rural, o que importa é que no modelo de educação pelo trabalho do Grupo Odebrecht, os camponeses não são protagonistas do processo, porque continuam sendo subalternos aos interesses do capital. Significa, também, que quando o capital passa a propor o ensino para o campesinato existe uma disputa teórica-política-ideológica pelo território imaterial da educação.

Essas disputas perpassam também no âmbito das políticas públicas. Vale lembrar, por exemplo, que o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), criado em 1998, se tornou uma política de Estado em 2010 (CAMACHO, 2013). O PRONERA foi a primeira grande conquista material da luta em defesa da educação do campo por ter se consolidado como “espaço de resistência” (FONEC, 2012, p. 9) pela capacidade orgânica de articular questão agrária e educação (KUHN, 2015).

198  As disputas no âmbito das políticas públicas para a educação do campo se tensionam, a partir de 2012, com a criação do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO). Esse Programa expressa uma contradição por destoar da “radicalidade pedagógica” pleiteada pelo campesinato organizado (CALDART, 2010) e agregar tanto o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) quanto o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC). Este último, indica a hegemonia do capital, pois tem o SENAR e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) como seu principal formulador e, além disso, atende a lógica da formação técnico- profissional com o objetivo de garantir a preparação da mão de obra para o agronegócio e/ou diminuir os focos de conflito com os camponeses. Ou seja, é uma política de educação profissional que serve ao mercado (FONEC, 2012; KUHN, 2015).

Contudo, antes mesmo que essas políticas específicas fossem criadas, é válido mencionar o papel do Estado na criação do PRONAF (1996), na criação do Programa Novo Mundo Rural (1999) e na criação e institucionalização da categoria agricultor familiar (2006). Essas três políticas públicas demarcam as disputas entre os distintos modelos de sociedade para o campo. Ainda que propor classificações não seja uma tarefa simples, é possível afirmar que essas disputas em torno da educação e do campo estejam demarcadas teoricamente entre o Paradigma da Questão Agrária e o Paradigma do Capitalismo Agrário.

O território teórico do Paradigma da Questão Agrária é o que dá sustentação a Educação do Campo ligada aos movimentos territoriais. Este Paradigma se contrapõe a educação rural e propõe a educação territorial que, por sua vez, se caracteriza por três premissas: educação de qualidade no campo; educação contextualizada; posição política e ideológica contra o capital. Além disso, tem concepções específicas sobre o campo (territórios em disputa), o camponês (classe social e modo de vida) e a educação (emancipação humana). Em outras palavras, o campo é a centralidade analítica e os sujeitos do campo são os protagonistas do processo de transformação das relações sociais, em contraponto a noção de campo apenas como a base física ou o cenário em que os processos educativos se davam e onde os grupos sociais não precisavam de uma educação de qualidade (CALDART, 2010; CAMACHO, 2013; KUHN, 2015).

Por sua vez, o Paradigma do Capitalismo Agrário, defende uma educação que promova o diálogo harmonioso entre agricultores familiares e agronegócio. Isso se dá