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O TEXTO POÉTICO E O LEITOR

No documento A pintura verbal de Armindo Trevisan (páginas 33-39)

1. ARMINDO TREVISAN E A POESIA MODERNA

1.3. O TEXTO POÉTICO E O LEITOR

No livreto do CD Poemas de Armindo Trevisan, lançado em 2001, o poeta con- ceitua poesia como uma arte que já se encontra nos mais antigos documentos escri- tos da humanidade. Que é poesia? “No meu entender, é uma lucidez enternecida”. O poeta explica.

Lucidez enternecida: o poeta é, em primeiro lugar, um realista. Ele parte de experiências que todo ser humano pode fazer: sensações, sentimentos, emoções que, por serem pessoais, são até certo ponto intransferíveis. Como as impressões digitais ou o código genético de cada pessoa. Todo ser humano pode ser poeta, na medida em que transforma tudo isso em linguagem. A vocação poética pode existir em profissionais de qualquer área. Basta que a pessoa se familiarize com a tradição poética

de sua língua, e com os recursos formais, que lhe permitam uma expressão original (CD, 2001).

E o poeta? “É o operário da emoção social.” Trevisan também explica:

Operário da emoção social: sim, o poeta parte de si mesmo para chegar aos outros. É aqui que entra o trabalho específico do poeta, o qual, no dizer de alguém, recebe de Deus, pela inspiração, a primeira palavra do seu poema, e é obrigado a encontrar as outras palavras, que ele vai buscar no tesouro do próprio idioma, no meu caso, a suave, aconchegante e luminosa língua portuguesa. É uma tarefa árdua, longa, e apaixonante. Às vezes, posso dedicar quatro ou cinco anos à elaboração de uma criação poética, e num caso específico, esperei dez anos pelo amadurecimento de um poema.

Notemos que a poesia, que nasceu oral, foi encerrada, com a invenção da imprensa, “no sarcófago da palavra escrita”. É preciso que todas as pessoas voltem a ter uma experiência pessoal de oralidade, que elas descubram aquilo que o poeta russo Maiakovsky qualificava como “a cor e o som das palavras”.

A poesia, também, exige um mínimo de silêncio e recolhimento para ser apreciada. Quem se dispõe a ouvir poesia tem uma certa comunhão com a natureza, e com os outros homens. O ouvinte de poesia, ainda, é capaz de um mínimo de sonho. O sonho liberta forças psíquicas, reprimidas no cotidiano. Os poetas sonham com a promoção social, e ajudam a criar utopias que, mais tarde, serão realizadas. Quase todos os grandes povos do mundo tiveram poetas associados a seus movimentos de independência.

Gostaria de dizer-lhes que a Bíblia é a minha fonte primeira de inspiração. Ela sempre foi uma leitura comunitária. É ainda hoje uma das maiores aliadas da poesia, pois, veiculando poemas altíssimos, a mantém viva, ajudada nisso pela poesia de todas as grandes religiões do mundo. Para terminar, cito um filósofo francês contemporâneo, Gaston Bachelard, que disse: “O inconsciente não se civiliza”. E também: “As belas palavras já são remédios”. Tudo isso é verdadeiro e profundo. Atrevo-me a acrescentar: a poesia ajuda as pessoas a serem felizes (Idem, 2001).

Portanto, a poesia é a fusão de sentimento e emoção que perdura e se recria em cada pessoa. Uma emoção esquisita, que transporta o leitor ao imaginário, te- cendo um deslumbramento e revelando o mundo.

O poeta, através da magia das palavras, abre diversificadas trilhas no pensa- mento e no sentimento do leitor, marcando-o com sua visão de mundo e, assim, provocando um estranhamento no leitor, que atualiza o poema. O que importa na linguagem poética não é a veracidade dos fatos, mas justamente esse olhar que re- cria o significado das palavras e as coloca num contexto diferenciado do normal (imaginário).

No início, a comunicação entre as pessoas se dava como gesto experimenta- dor da linguagem, isto é, uma autêntica maneira de ampliar a relação entre as pala- vras e as coisas. Mais tarde, a linguagem deixa de ser uma expressão coletiva de re- ligiosidade para ser comunicação e, posteriormente, passa a ser a manifestação dos poetas que se revoltam contra o seu tempo, principalmente a partir do Romantis- mo. A linguagem, desse modo, passou a ser considerada como um produto qual- quer, surgindo diversos tipos de aplicação, como, por exemplo, a propaganda, a política, o jornalismo, a ciência, etc. As palavras, por sua vez, deixaram de ser a ex- pressão de autenticidade para se tornarem um meio de dominação do homem so- bre o homem. Deixaram de ser ponte entre os homens e dos homens com a natu- reza, a fim de serem uma forma de ampliação do mundo circundante. Nesse senti- do, a desautomatização da linguagem revitaliza as palavras descontextualizando-as e, com isso, ressignificando o mundo. Segundo Paz,

o poeta moderno não fala a linguagem da sociedade nem comunga com os valores da civilização. A poesia do nosso tempo não pode escapar da solidão e da rebelião, a não ser através de uma mudança da sociedade e do próprio homem (PAZ, apud PAIXÃO, 1982, p. 22).

A poesia do século XX expressa o profundo sentimento de perplexidade, em face da solidão, da massificação do pensamento, das angústias e da desvalorização dos relacionamentos. O poeta já não fala mais da relação do homem com a nature- za ou com alguns deuses, mas usa da violência das suas palavras ou do humor para

fazer uma poesia que seja resistente à massificação, insistindo em aproximar-se dos valores fundamentais do homem. Por isso, transmite a experiência de todos, e não somente a sua.

A poesia apropriou-se da palavra como recurso de expressão do conflito da vida moderna, da fragmentação do conhecimento e da impossibilidade de represen- tar a totalidade, visto que o homem moderno encara o mundo sem as certezas me- tafísicas. Todavia, a leitura da poesia vale-se da dimensão simbólica do saber, devi- do à relevância da interpretação em nossos dias, o que exige do leitor uma atitude de ação reflexivo-emocional diante do texto. Essa relação simbólica já é aceita pelas ciências como uma forma complexa e evoluída de pensamento, pois a capacidade de simbolizar permite a ação humana frente ao mundo, a coexistência com os mis- térios da vida e a organização coletiva. Afinal, é através desses símbolos que o ho- mem marca sua presença no mundo. As mitologias antigas eram cosmovisões que se apoiavam em mitos e crenças representativos da ordem da natureza e de seus fenômenos tais como atingiam o homem.

A relação entre a linguagem e a simbolização é tão íntima que não se pode dizer qual surgiu primeiro, se a capacidade de o homem se expressar organizada- mente através de códigos e línguas ou se a necessidade de criar signos para designar objetos da realidade. Mesmo na literatura e na pintura realistas (século XIX), a arte extrapola a representação do real, uma vez que as cores e as palavras não constitu- em meramente substância concreta e palpável, mas aparente. Por isso, a poesia tem como objetivo investigar o real, aumentar o conhecimento e a vivência do mundo através das palavras. Na atividade poética, os símbolos transitam de maneira viva, brilhante e efêmera. Uma palavra ou imagem simbólica representa algo mais que seu significado imediato e óbvio (sentido denotativo), pois a intenção fundamental da poesia é a de transmitir algo mais — que ultrapassa o racional e o consciente.

A força do inconsciente interfere e influencia as imagens construídas; porém, a atividade poética também é consciente (o sonho lúdico a que se refere Trevisan). Al- guns poetas do movimento surrealista, do início do século XX, tinham como pres- suposto que seus poemas espelhassem o fluxo inconsciente de seus pensamentos, trouxessem à tona a vibração das camadas mais profundas dos seus instintos, atra- vés da linguagem automática. Entretanto, mesmo assim, isso requer certo grau de trabalho consciente.

O universo simbólico da poesia é atravessado por um diálogo com o tempo e o lugar em que ela é gerada, trazendo aspectos que irão refletir o sofrimento de um povo, como também revelar toda a riqueza de sua cultura. Por isso, a poesia moderna não é alienada da realidade, mas não pode criar um novo mundo e novas relações sociais. A revolução poética das palavras ainda não conseguiu a revolução das coisas e das relações humanas. O poeta do século XX, em contraposição ao romântico, raramente renuncia à vida; mesmo quando retrata a morte ou o suicídio, sua exaltação não é pelo fim da vida humana, mas pelo fim de um tempo em que cresce a repressão, a alienação, a injustiça e o desamor.

A linguagem poética, assim como a musical, tem como suporte principal a cadência rítmica, responsável também pela produção de sentidos. O que não pode ser esquecido é que o ritmo deve existir como movimento de significações pregadas às sílabas e frases, e ele emerge como um relevo sonoro, que reafirma as diferentes densidades do que está sendo dito. A cadência rítmica passa a fazer parte intrínseca da criação poética, assumindo seu lugar de forma indissociável do conteúdo, ao in- vés de servir como forma na qual as palavras devem ser encaixadas. Daí a relevância dos estudos dos formalistas russos.

O ritmo poético deixou de ter divisões de sílabas dos versos e estrofes, ca- racterística da poesia tradicional, para se instalar a concepção de uma unidade intei-

ra do poema. Agora, o que determina o ritmo deve ser encontrado pelo poeta den- tro da própria idéia que inspira o poema. É sua intenção que organiza e concebe os diversos paralelismos de um poema. Mais importante do que aprender a contar sí- labas ou apontar paralelismos de um poema, é o que se sente, aquilo que se percebe através da intuição: o ritmo agradável da leitura. A sensibilidade não invalida o fato de que a harmonia rítmica de alguns poemas modernos esconde uma natureza es- quemática e, mesmo que esses detalhes rítmicos não apareçam tão explícitos como na versificação clássica, eles podem ser desvendados pelo leitor.

Os movimentos de vanguarda do início do século XX romperam com a vi- são formal e conteudística que orientava a criação poética. O poeta não mais en- contra um mundo organizado, como era na concepção clássica de sociedade, mas se depara com uma realidade que, além de fragmentada, é simultânea e diversifica- da.

A linguagem poética não comunica uma idéia de maneira racionalista, como informação didática ou doutrinária, mas a poesia está sempre revelando uma per- cepção subjetiva da realidade. Usando a palavra desautomatizada, o poeta procura passar uma visão diferente sobre aquilo que nos cerca ou, com dois versos, sim- plesmente resumir um discurso inteiro. José Paulo Paes escreveu o poema Os filhos de Nietzsche sobre a morte de Deus: - Deus está morto, tudo é permitido! / - Mas que chati- ce!. São somente dois versos, mas que causam profundo impacto no leitor. O poeta é assim: em poucas palavras diz o que um historiador gastaria páginas e páginas pa- ra explicar.

Constata-se que a poesia, a partir do século XX, surge com um movimento dialético de aproximação e distanciamento, de crítica e de assimilação de valores coletivos, pois reflete a época e o lugar em que é produzida, colocando-se no limiar para revitalizar dois mundos: a realidade e o imaginário. Ela aciona outras realida-

des e experiências diversas. Desse modo, entende-se que cada poema requer um constante trabalho de leitura, em que o leitor deve vivenciar as experiências poéti- cas em busca da poeticidade.

No documento A pintura verbal de Armindo Trevisan (páginas 33-39)