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O trabalho como fator social multidimensional

TRABALHADORES DA CONSTRUÇÃO CIVIL

4.6. O trabalho como fator social multidimensional

Nos últimos anos, a instigante abordagem ergológica31 sobre o trabalho propõe

que esta atividade seja tratada como categoria cultural baseada numa evidência: “em todas as sociedades, quaisquer que sejam os lugares ou épocas, os homens e as mulheres trabalham, ou seja, envolvem seus corpos em uma atividade socialmente programada que visa a produzir os meio materiais de suas existências” (SCHWARTZ, 2011, p. 20). Apesar de sua universalidade, não há uma definição simples e consensual do trabalho.

O trabalho é enfatizado por Yves Schwartz (2011) enquanto não apenas um parâmetro do processo histórico, mas como a própria base do que “faz a história” para os homens. Esta relevância fica clareada quando a “atividade32 do trabalho” por detrás do

“trabalho” é compreendida como pensamento que une “trabalho” e “homens”. Este é o exercício de Daisy Moreira Cunha (2009), ao considerar que a “atividade” no trabalho significa a “inclusão”, ou melhor, a reintegração do homem no trabalho. Sob esta perspectiva, o trabalho é “encarnado”, significante e motivado. Suas dimensões psicológicas, sociais e culturais, retiradas pelo racionalismo científico, são devolvidas.

O nascimento do trabalho poderia ser pensado a partir da fabricação das primeiras ferramentas, objetos que mediavam a relação de uma população com seu meio

31 Para a abordagem ergológica do trabalho, a atividade industriosa é lugar de debate de normas com o

meio no qual se insere. Todo meio de trabalho é constituído por normas antecedentes que, ao serem encontradas nas situações laborais pelo homem produtor, geram renormalizações, até mesmo porque, sem estas últimas, o trabalho prescrito não pode ser realizado. A ergologia convida a tirar consequências dessa distância inevitável entre o prescrito e o real que marca a fundação da ergonomia da atividade (GUÉRIN et

al., 2001). Para a ergologia, se a distância entre o prescrito e o real no trabalho é inevitável, neste hiato se

inscrevem as renormalizações. Mesmo obedecer às normas antecedentes já é praticar escolhas. E ao operar nos interstícios das normas antecedentes, o homem faz história (CUNHA, 2009).

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Segundo Daisy Cunha (2009), o conceito de atividade nos coloca numa confluência de disciplinas: Filosofia, Psicologia, Sociologia, Linguística, Ergonomia e Engenharia de interfaces homens-máquinas. Trata- se de um conceito que integra um quadro teórico alternativo ao paradigma racionalista, cientificista e objetivista do conhecimento produzido nas ciências humanas. A autora completa: “Compreender o ponto de vista da atividade humana como posicionamento epistemológico é se colocar na confluência, na zona de fronteira entre sujeito-objeto, ação-conhecimento, corpo-alma, subjetivo-objetivo, o que propicia um quadro de referência coerente, integrado e operatório capaz de abordar o trabalho humano na sua complexidade” (CUNHA, 2009).

de existência com objetivo de atender expectativas referentes à satisfação da vida. Através da fabricação de ferramentas, foi possível “[...] suplantar a seleção natural como fator explicativo das mudanças, transformando a Evolução em (pré) História” (SCHWARTZ, 2011, p. 21). A noção de trabalho, hoje, remete eminentemente a “tempo de vida vendido”, “[...] prestação remunerada em uma sociedade mercantil e de direito” (SCHWARTZ, 2011, p. 23). Esta concepção, segundo Yves Schwartz, limita o trabalho ao que foi circunscrito pela Revolução Industrial e ao assalariamento. Foi a partir desta noção que, no século XX em diante, se desenvolveriam as lutas, as contradições e a estruturação das relações de forças políticas.

A tentativa de racionalização radical do trabalho, segundo o autor, revela o que é chamado de “dimensões invisíveis do trabalho”. Inicia-se com a transposição da ideia das supostas leis da natureza e suas regras dos movimentos dos corpos, com o fim de submeter o corpo ao trabalho e a uma otimização dramática dos movimentos redundando em menor tempo de execução das tarefas. Estão no bojo das considerações a este respeito: Ferguson, ao supor que o ateliê ou as manufaturas pudessem ser considerados como uma máquina cujas partes fossem os homens; Mandeville e Hume, que acreditavam que o sucesso da Inglaterra do século XVIII relaciona-se com a simplificação das tarefas nas suas manufaturas; ou, ainda, Adam Smith, ao identificar a divisão do trabalho, instrumento de simplificação das tarefas e aquisição de destreza, como causa principal da riqueza das nações.

A intenção de subtrair completamente a subjetividade do trabalhador — e as consequências de sua subordinação à parte da engrenagem — é questionada por uma constatação de Taylor: as normas que objetivam o máximo de rapidez são transgredidas e, em vez de um método único de execução das tarefas, empregam-se centenas. Diante dessa quase anarquia, a racionalidade, tal como pensada anteriormente na administração das tarefas do trabalho, apresenta-se duvidosa.

A divisão do trabalho é particularmente importante para a compreensão dos processos sociais e da tentativa de subtração das subjetividades do homem no trabalho. A própria simplificação das tarefas, anteriormente tratada, encontra na divisão do trabalho um método para sua condução. Schwartz (2011, p. 27) esclarece que se trata de conceito ainda mais amplo: “Fala-se também de divisão sexual, da oposição entre a

cidade e o campo, de separação entre trabalhadores manuais e intelectuais; e se retornarmos às categorias da produção, falar-se-á de divisão social e de divisão de técnica”.

A divisão social do trabalho pressupõe consenso sobre a racionalidade aplicável aos processos do trabalho que, no entanto, nunca existiu. O autor explicita que se trataria de buscar uma mistura de “[...] elementos heterogêneos, sequências maquinais e sequências humanas (SCHWARTZ, 2011, p. 29).” Além do mais, não se pode contingenciar o pensamento no trabalho mais do que em outra instância. A divisão do trabalho (técnica, social ou sexual) é instável: “Todo sujeito, todo grupo humano no trabalho é um centro de vida, uma tentativa de apropriação do meio, e sua vida no trabalho não é uma cerca separada de sua ambição de vida global” (SCHWARTZ, 2011, p. 30).

A tentativa de racionalização radical do trabalho e a “ilusão” da divisão social do trabalho são observadas por Yves Schwartz como impasses. Essas concepções desconsiderariam que “[...] todo trabalho comporta uma parte invisível provisória, na espera de uma eventual elucidação, e uma parte irredutivelmente enigmática” (SCHWARTZ, 2011, p. 31). A referência à “invisibilidade do trabalho” frequentemente é conduzida ao trabalho das mulheres. Esse fato serve para que se escape da reflexão que toma o trabalho como uma atividade estritamente mercantil e permite pensá-lo como uma dimensão antropológica do gênio humano. É importante ter em conta, ainda, as continuidades existentes entre o trabalho informal, doméstico e as formas mercantis de trabalho, o que contribuiria para

redescobrir a parte invisível, enigmática de ‘toda’ a atividade industriosa, e a impossibilidade de circunscrever claramente os recursos, ao atos, os espaços onde se desdobram os corpos e as almas humanas em ‘todo’ o trabalho, até mesmo o trabalho mercantil (SCHWARTZ, 2011, p. 32).

Sobre a abrangência da atividade do trabalho na vida, extrapolando a percepção de atividade puramente mantenedora da sobrevivência, Yves Schwartz cita o ergonomista33 François Daniellou:

Em suas atividades, os homens ou as mulheres tecem no trabalho. Em relação à trama, os fios os religam a um processo técnico, a propriedades da matéria, das ferramentas ou dos clientes, às políticas econômicas — elaboradas eventualmente em um outro continente —, às regras formais, ao controle de outras pessoas... em relação à cadeia, aqui religados à sua própria história, a seu corpo que aprende e que envelhece; a uma multidão de experiências de trabalho e de vida; a muitos grupos sociais que lhes ofertaram saberes, valores, regras com os quais eles produzem dia após dia; aos parentes também, fontes de energia e de preocupações; aos projetos, desejos, angústias, sonhos (DANIELLOU, 1996, p. 1 apud SCHWARTZ, 2011, p. 32).

Essas tessituras presentes no trabalho constituem as suas dimensões invisíveis ou “penumbra”. É lugar onde são possíveis a reapreaciação e o julgamento dos procedimentos do trabalho, as re-normalizações. Há um incessante vaivém entre o micro do trabalho e o macro da vida social cristalizada, incorporada nessas normas (SCHWARTZ, 2011). A OCT (Organização Científica do Trabalho), ao instituir o one best way para ordenar as operações do trabalho, não pôde prever que há “furos nas normas”. Variações ainda permanecem e o trabalhador intervém nelas com consequências que extrapolam a fábrica ou o canteiro de obras. Esses furos das normas:

[...] engajam reconfigurações de maneiras de fazer, dos laços coletivos mais ou menos intensos, das aprendizagens, das redes de transmissão de saber fazer, dos valores do uso de si, da saúde no trabalho e, finalmente, reinterrogam — construindo ou destruindo — o que significa viver em conjunto. É, portanto, toda vida social que é surdamente recolocada em questão na oficina, no serviço, no canteiro de obra, para ser (re)disseminada pelos milhares de canais de sociabilidade com os outros espaços da vida social. (SCHWARTZ, 2011, p. 33)

33 Segundo Daisy Cunha (2009), a ergonomia objetiva compreender o trabalho e sua transformação,

apoiando-se em diversas disciplinas e associando os conhecimentos produzidos por tais disciplinas e outros saberes coproduzidos com os trabalhadores em situações de trabalho.

Pensar o trabalho em sua “penumbra” é “fazer uso de si por si mesmo”, é pensar o mundo e toda a atividade humana como um enfrentamento de normas e re- normalizações que ocorre invisivelmente nas operações do trabalho, mas que continuam

[...] com as normas de vida que todo meio histórico veicula como misto de valores consensuais e valores contraditórios. [...] O que chamamos de ‘o trabalho’ e, mais particularmente, de trabalho stricto sensu é uma forma tardia, mas hoje complexa, ricamente crítica, desta atividade genérica. (SCHWARTZ, 2011, p. 34)

O trabalho extrapola a noção que o tem apenas como atividade mercantil. A partir do questionamento ou da impossibilidade de que as normas ocupem todos os trâmites da vida, há espaço para re-normalizações. Essas têm como ponto inicial as atividades industriosas, mas “[...] contaminam o econômico, o social, o político, os modos de sociabilidade, de ligações ou de ‘desligamentos’ sociais” (SCHWARTZ, 2011, p. 34). Segundo Daisy Cunha, a perspectiva ergológica do trabalho nos permite pensar nos

dramas do uso de si representadas pelo trabalho, como “[...] experiências prenhes de

problemas de cidadania, pois recolocam sem cessar a questão dos valores que permeiam a atividade científica, o governo do trabalho e o viver em comum no território das cidades” (CUNHA, 2009 p. 8). A partir da interpretação da cidade enquanto lugar prioritariamente do trabalho, há possibilidades de que se construa, a partir da perspectiva do “trabalho” brevemente citada acima, enquanto elemento de reconfiguração social, uma requalificação da própria noção de cidade.

Ana Fani A. Carlos (2001) defende que as relações sociais, construtoras de mundo, se dão através da apropriação do espaço e que, apesar de englobar o mundo do trabalho, não se encerra nele. Envolve também a produção da humanidade do homem. É possível, porém, que o mundo do trabalho adquira mais importância quando o percebemos extrapolando os termos da produção de mercadorias para tê-lo como categoria social multidimensional. Como pensar no cotidiano como elemento constitutivo da reprodução no mundo moderno da metrópole, sem atribuir grande importância ao “trabalho”? Nota- se que será preciso (re) pensar o mundo do trabalho, sua real dimensão no âmbito das práticas socioespaciais e enquanto uma experiência entendida também como lugar do agir humano. Conforme assinalam Daisy Moreira Cunha e João Bosco Laudares (2009), é possível que o trabalho seja um objeto transdisciplinar esperando re-conhecimento.

Nesse sentido, os autores enfatizam a centralidade do trabalho como categoria que explica o conjunto da vida social e a necessidade de avançar na compreensão das subjetividades pra além daquelas formadas pelo capital.