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O Trauma e o Desamparo

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CAPITULO 4. REVISITANDO O CONCEITO DE TRAUMA

4.1. O Trauma e o Desamparo

Segundo Rudge (2006, p.07), ao discorrer sobre a atualidade do conceito de trauma e sua presença na psicanálise, sustenta que são as questões da clínica atual [com toda sua heterogeneidade] que “nos confrontam incessantemente com as repercussões da angústia e do sentimento de desamparo oriundos da exposição à violência e à insegurança.” Repercussões e sentimentos que acompanho em pacientes da enfermaria de traumatologia, vivenciarem após serem acometidos dessa exposição violenta.

Uma vez que o termo “desamparo” sugere a ideia de separação e transformação, ele “evoca o sentido de cair sem ter algo para agarrar-se, escorar-se ou apoiar-se, [...] implica uma condição de abandono, solidão e esquecimento” (MENEZES, 2012, p. 24). Desse modo, o desamparo pressupõe [e impõe] a existência do outro. A situação de imprevisto em que o acidente ocorre, deixa o paciente diante do fato de que não há proteção absoluta

na vida e, também da falta de garantias de segurança, essas, desde sempre, advindas do outro. Como algo que cai, importante ver que a inutilização de algum membro do corpo, ou mesmo a amputação deste como consequência de um acidente, ratifica esse sentimento de falta, de perda: o trauma do corpo tem uma marca de vazio, de perda, pois é o traço [em suas representações psíquicas] do desamparo nesse corpo.

Mendlowicz (2006, p.56) destaca que o desamparo é considerado como o protótipo da situação traumática causadora de angústia, uma vez que “as situações traumáticas estão sempre ligadas a perdas, seja do objeto amoroso, de partes de si próprio, de ideais, do amor do supereu”. Na situação de perda traumática, “um laço significativo que dava sentido à vida do sujeito é rompido [...] e o sujeito mergulha no desemparo, perdendo a valorização de si próprio” (Ibid, p. 56). Essa autora assinala que as “pequenas perdas” podem adquirir um valor traumático, porque o importante é a invasão do sentimento de desamparo, a ruptura da continuidade expressiva do eu, e não a dimensão traumática em si, como no caso das guerras.

O estado de desamparo, de acordo com Menezes (2012), tal como é exposto no texto “Inibições, sintomas e ansiedade” de Freud, de 1926, “coloca o eu como desamparado e abandoado à sua sorte, diante das excitações poderosas com as quais não pode lidar”. Esse estado é o causador de angústia, correspondendo à noção freudiana de “angústia-automática”, que gera a condição afetiva intrínseca da situação traumática.

Pereira (2008) recorre à noção freudiana de desamparo para situar a questão psicopatológica do pânico na metapsicologia, pathos desse sintoma da contemporaneidade. Para esse autor, existe uma íntima relação entre o pânico e as situações de perdas, pois, essas situações deveriam estabelecer um estado de tristeza ou depressão, pertinentes ao trabalho de luto. Mas, em suas constatações, esse autor sustenta que os sujeitos acometidos por ataques de pânico não realizam um trabalho de luto e nem entram em um estado

melancólico. A perda tem uma importância para esses sujeitos e os coloca diante da realidade de que “não há garantias! Não há fiador para meu mundo! [...] Eu também vou morrer!” (PEREIRA, 2008, p. 371). Nessa situação, o autor diz que ocorre o desencadeamento das crises. Portanto, segundo Pereira (2008), o sujeito acometido de ataques de pânico, “é, sem dúvida, uma pessoa mais perto do conhecimento profundo da condição de desamparo fundamental da existência humana” (Ibid, p.249).

Rouanet (2006) aponta para o fato das violências urbanas estarem atingindo níveis psiquicamente insuportáveis, pois se encontram associadas ao crime organizado financiado pelo tráfico de drogas e resultam na fragilização e no trauma psíquico do sujeito. Pois o indivíduo contemporâneo, segundo Macedo (2012), não se adequa mais aos ideais libertários, como na década de 60, quando buscava superar limites e interditos. Na atualidade, segundo o pensamento desta autora, o que caracteriza o individualismo é uma experiência de desenraizamento, “vinculada à perda de referências simbólicas, que leva a uma busca constante de ancoragens indentitárias, ainda que transitórias” (MACEDO, 2012, p.99). Esse desenraizamento tem como efeito uma espécie de intensificação do desamparo ante a situação traumática, pois não há referência simbólica para restituir o sujeito dessa condição de abandono.

Conforme afirmações de Fernandes (2011, p.15), o corpo está em alta, uma vez que tem sido alvo de completude e perfeição: “parece servir de forma privilegiada, por intermédio da valorização da magreza, da boa forma e da saúde, como estandarte de uma época marcada pela linearidade anestesiada dos ideais.” Por sua vez, esse corpo saiu do espaço privado e das instituições de saúde para o espaço público (academias, clínicas de estéticas, as ruas, dentre outros). No entanto, esse ideal que se busca alcançar, com hiperinvestimento no corpo, frequentemente resulta em frustração e sofrimento. Dessa

forma, a imagem do corpo ganha um papel de relevância, constituído de imagem sem volume e interioridade que determinam efeitos patogênicos envolvendo a corporalidade.

Esses fatos segundo Fernandes (2011, p.17), assinalam para os “novos sintomas” que se apresentam na clínica hoje, tais como: os transtornos alimentares, a compulsão para trabalhar, as incessantes intervenções cirúrgicas para modelagem do corpo, a sexualidade compulsiva, o horror do envelhecimento, a exigência da ação, o terror da passividade, a busca patológica da saúde ou,” ao contrário um esquecimento patológico do corpo, e ainda a variedade dos quadros de somatização.” A autora refere, ainda, ao fato de que Freud sempre levou em conta o corpo e sua diversidade expressiva, sem deixar de se preocupar como os materiais psíquicos. O próprio conceito de pulsão é compreendido por Freud como limite entre a concepção psicológica e a concepção biológica. Acrescento a esses sintomas elencados pela autora, o traumatismo físico em acidentados, tais como encontro na enfermaria: os indivíduos mutilados adicionam ao seu desamparo e trauma uma cicatriz narcísica, por que seu corpo não é mais o corpo ideal, o corpo perfeito, mas um corpo marcado, imperfeito.

Fonseca (2007) pontua as diferenças das compreensões de corpo para a medicina e para a psicanálise, uma vez que para a primeira o corpo é concebido como uma máquina, um organismo que pode ser manipulado e dissecado pelo olhar da ciência, enquanto que para a psicanálise, ele é uma organização erogeneizado, marcado pela pulsão e pela linguagem, sendo ambas inseparáveis. Dessa maneira, o adoecer [do corpo], sob o ponto de vista da psicanálise, é diferente aos olhos da Medicina, “por manifestar-se em um corpo marcado pela linguagem e pela pulsão”, (FONSECA, 2007, p. 230).

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