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O uso improvável e controlado O cinema educativo e o Estado Novo

No documento Aprender del cine: narrativa y didáctica (páginas 152-158)

Luís Alberto Alves

1. O uso improvável e controlado O cinema educativo e o Estado Novo

Ao analisar o espólio da atual Escola Secundária Sá de Miranda e antigo Liceu, o investigador Bento Duarte da Silva da Universidade do Minho, relativamente à aquisição de equipamentos, identiicou quatro momen- tos principais:

[…] O primeiro, que abrange toda a segunda metade do século XIX e início do século XX, é marcado pela penúria de meios em correspondência à adopção do método de

ensino tradicional; O segundo, iniciado com o Estado Novo, é marcado essencialmen- te pela descoberta do cinema educativo; O terceiro, iniciado na década de 60, mas apenas com airmação na década de 80, é marcado pela introdução dos meios au- diovisuais no ensino; O quarto, iniciado em inais da década de 80 e que percorre a

primeira parte da década de 90 é marcado pela entrada da informática; O quinto, em curso, está marcado pelo multimedia e pelas redes telemáticas de comunicação […].

Silva (2001, p. 238)

Sendo que, para nós, o mais importante aqui seja o segundo momento, não deixa de, desde logo, ser surpreendente, que os Liceus desde a década de 1930 tenham apostado na aquisição de equipamento procurando ren- tabilizar de forma educativa e didática — das diferentes disciplinas — o contributo que o cinema podia dar. Aqui não houve interrupções com uma dinâmica de pensamento e de decisões que já vinha da 1.ª República. Re- lembremos que o regulamento da reforma de 1918 do governo de Sidónio Pais determinava que os liceus deveriam ter, para além dos outros recursos e meios já deinidos em reformas anteriores — como biblioteca e labora- tórios para trabalhos práticos de química, física, mineralogia e geologia, ciências biológicas e geograia —, uma das salas adaptada a salão cinema- tográico1. Era já o relexo de uma pedagogia mais ativa, mais participativa,

mais experimental mas também mais atualizada que o movimento da Escola Nova protagonizou. Adolfo Lima, por exemplo, na sua obra “Educação e En- sino” (1914) considera importante que o aluno “explique e dê o seu parecer sobre o que viu, ouviu, leu ou fez”. António Ferrão, em 1922, num artigo intitulado “O Teatro e o Animatógrafo na Educação” previa já a importân- cia do cinema no processo de comunicação pedagógica e a sua utilização, entre outras, nas disciplinas de História, Geograia e Ciências Naturais, con- siderando que por meio do cinema tudo se pode ensinar, e concluindo que a exibição de itas, precedida ou acompanhada de prelecções, vale muito mais que a leitura de centenas de páginas de obras de história ou a audição de muitas dezenas de lições e descrições verbais (Silva, 2001, p. 241).

Mário de Vasconcelos e Sá, professor liceal licenciado em Ciências Histórico-Geográicas e Filosóicas, numa intervenção no IV Congresso Pedagógico do Ensino Secundário Oicial realizado em Braga em 1930, teorizando sobre as vantagens da mensagem visual sobre a mensagem oral e rebatendo críticas formuladas sobre a criação de uma situação de passividade intelectual e de facilidade, airma:

[…] na falta de um objecto ou ausência de um fenómeno, só deles se pode ter uma ideia exacta desde que se tenha a sua iel expressiva representação, porque, por mais completa e perfeita que seja a descrição verbal ou escrita, ela nunca nos pode- rá dar uma ideia exacta e clara de um objecto, sobretudo se ás três dimensões que ixam a sua iguração no espaço, juntarmos uma quarta - o tempo - que a faz variar constantemente de posição e de aspecto […] se os conhecimentos adquiridos pela passagem de um ilm se obtêm com facilidade é isso uma manifestação incontes- tável de superioridade do uso de um método que, juntando o esforço visual ao in- telectual, o torna atraente, vivo […]. E se tais conhecimentos são adquiridos mais rapidamente, é porque a observação pode recair imediata e precisamente sobre o objecto que se quis focar, sem que a criança perca e fatigue a sua atenção em mil outros detalhes que na natureza, na vida ou na observação directa, acompanham e cercam o fenómeno ou o objecto.

Vasconcelos e Sá (1954, pp. 95 e 101)2

A inalizar a sua intervenção, Vasconcelos e Sá propôs que fossem adoptadas medidas sobre a utilização do cinema na educação, de entre as quais se destaca a criação de uma comissão de técnicos de pedagogia e de cinematograia com a inalidade de adquirir ilms escolares, obtidos no estrangeiro e em Portugal, bem como o estudo e organização de um plano de ilms escolares educativos pela abertura de concurso entre as produtoras nacionais (Silva, 2001, p. 242).

É com este enquadramento que podemos melhor entender a consagra- ção legal destes princípios no decreto 20 859 de 4 de fevereiro de 1932 que cria a “comissão do cinema educativo”, justiicando esta iniciativa da seguinte forma:

A cinematograia desempenha actualmente uma função de muito relevo na educa- ção dos povos, e nenhum país culto existe onde este elemento de educação não faça parte do ensino oicial.

Em diversos congressos pedagógicos realizados nos maiores centros culturais tem sido demonstrada com sólidos argumentos a inluência que a igura animada exerce 2 Ver também artigo de Cláudia Castelo em Nóvoa, António (dir.) (2003). Dicionário dos

não só no espírito curiosos da criança mas também no dos adultos, mesmo daque- les em que a incultura predomina.

Fairgrieve, no seu relatório sobre a função das películas educativas, reconhece que a inluência exercida pelo cinema nos alunos é tal que a criança mais rebelde à retenção de uma igura alfabética de quadro ixo segue com interesse notável a ex- pressão e a ixação das imagens animadas, acabando por mantê-las inalteráveis na sua memória.

Pedagogistas célebres nesta especialidade de ensino são unânimes em airmar que não virá longe o dia em que a tela substitua nas escolas o quadro negro, chegando a airmar-se que uma ‘bobina de película vale mais do que uma preleção’ […].

Diário do Governo (4 de fevereiro de 1932, p. 250)

Três ideias que importa reter: a primeira reside na continuidade desta iniciativa relativamente à defesa que vinha sendo feita do papel do ci- nema como recurso educativo, tanto em termos nacionais como interna- cionais3; a segunda passa pela justiicação cientíica de um saber — Psi-

cologia e Pedagogia — epistemologicamente fundamentado no quadro das ciências da educação que se emancipam a partir do último quartel do século XIX; a terceira reside na importância dos recursos visuais face

aos escritos, a tal ponto que auguram para breve a alteração das hierar- quias no campo das aprendizagens — a tela substitui o quadro, o cine- ma vale mais do que a exposição.

A nova legislação consagra assim o cinema como recurso importante no processo de ensino e aprendizagem e cria mesmo a “Comissão do Ci- nema Educativo”4, “com o im de promover e fomentar nas escolas por-

3 “Os primeiros sinais oiciais do interesse dos pedagogos pelo cinema surgem em 1919, quando o governo francês instituiu a Commission Bessou , encarregue de apresentar um relatório sobre as capacidades de utilização do cinema enquanto meio didático. Dois anos depois o governo francês consagrou um primeiro orçamento destinado à organização do cinema escolar, criando também uma precária e débil Cinemateca no Museu Pedagógico” (Cunha, 2006, p. 356).

4 Integraram a Comissão o secretário geral do Ministério da Instrução Pública, os direto- res gerais do Ensino Técnico e do Ensino primário, o inspetor geral do Ensino Particular, o diretor do Ensino Secundário, o inspetor geral dos Espetáculos, o diretor dos serviços da 10.ª Repartição de Contabilidades Públicas, o reitor do Liceu Pedro Nunes, um artista de

tuguesas o uso do cinema como meio de ensino e de proporcionar ao público em geral a apreensão fácil de noções úteis das ciências positi- vas, das artes, das indústria, da geograia e da história” (artigo 1.º do referido decreto).

Esta perspetiva didática e pedagógica em contexto escolar não pode ser analisada sem auscultarmos o interesse político e ideológico que este meio de comunicação começava a despertar junto dos regimes, em par- ticular aqueles que mais necessitavam de fazer passar uma mensagem inovadora, apelativa e ‘democrática’ no sentido de acessível a uma lar- ga franja da população onde reinavam elevadas taxas de analfabetismo. Dois exemplos ajudam a concretizar esta vertente: em 1929, o Ministé- rio da Agricultura português criou o ‘Serviço de Cinema da Campanha do Trigo’ com intenções “cientíicas e educativas” procurando usar esse meio para “divulgar e actualizar conhecimentos, ao nível de materiais e novas técnicas de cultivo” (Cunha, 2006, p. 359); António Ferro, res- ponsável pela constitucionalização e institucionalização da Política do Espírito e controverso diretor do Secretariado Nacional da Propaganda5,

não escondeu a inluência da “política cinematográica de Lenine — ‘de todas as artes, a arte cinematográica é, para nós, a mais importante’ — e dos regimes fascistas europeus (Departamento V de Joseph Goebbles)” (Cunha, 2006, p. 357). Num discurso pronunciado no SNI, na festa de distribuição dos Prémios Cinematográicos de 1944 e 1945 esclarece-nos sobre o que pensa e pretende: “O Cinema constitui […] um desses pro- blemas fundamentais, vitais, cuja importância, infelizmente, nem sem- pre é reconhecida. A sua magia, o seu poder de sedução, a sua força de penetração são incalculáveis. Mais do que a leitura, mais do que a mú- sica, mais do que a linguagem radiofónica a imagem penetra, insinua-se sem quase se dar por isso, na alma do homem (Ferro, 1950a, p. 44).

(Afonso Lopes Vieira), estes dois últimos nomeados diretamente pelo Ministro da Instrução Pública (Cunha, 2006, p. 362).

5 Criado pelo Decreto-Lei n.º 23 054, de 25 de Setembro de 1933, é um organismo direta- mente dependente da Presidência do Conselho e, concomitantemente, de Oliveira Salazar. Em 1944, perto do inal da Segunda Guerra Mundial, passa a Secretariado Nacional de In- formação, Cultura Popular e Turismo (SNI) e, no período marcelista, em 1968, transforma-se

Daí a criação dentro do SPN/SNI de uma secção de Cinema e o incenti- vo ao cinema ambulante, depois de testada que foi a sua importância na divulgação das Comemorações Centenárias da Nacionalidade. Mais uma vez, o exemplo de outros países funcionou como referência mas também como razão acrescida para a aposta. Rússia, França, Alemanha, Inglater- ra, Suiça e Holanda já tinham experienciado, sob a orientação do Estado, o papel da “missão educativa do cinema” (Ribeiro, 2010):

[…] o Cinema Móvel é organizado pelo SPN desde 1935, agindo como “antídoto po- deroso contra a ignorância, a mentalidade […] inculta de grande parte […] do povo português”, como missionário civilizador, no meio dos numerosos sertões de Portugal. Fragoso (1933, pp. 3 e 8)

Assim, percorrendo o país, contribuindo para a modelação da cultura popular, es- sas “caravanas de imagens”, como se lhes referia Ferro, dirigem-se ao povo, com ternura e compreensão, [criadas] para educar o bom-gosto do povo, para lhe dar, todas as semanas ou todos os meses, algumas horas de alegria, e esquecimento.

Ferro (1950a, pp. 36 e 38)

As carrinhas do cinema ambulante percorrem as vilas e aldeias de Portugal, com sessões realizadas nos espaços de juntas de freguesia ou de sociedades recreativas. Em 1937, realizaram espectáculos em 96 po- voações; no ano seguinte contemplaram 141 locais; em 1939, já com duas equipas com aparelhagens em funcionamento, estiveram em 306 terras, 264 no ano subsequente, 351 povoações em 1941, 258 em 1942 e 216 lo- calidades em 1943, com sessões gratuitas, nesse ano, para cerca de 390 000 pessoas. No total, trata-se de 2 235 espectáculos, vistos por 2 304 570 pessoas, entre 1937 e 1947. De referir ainda a passagem do Cinema Ambulante, durante seis meses, em 1946, pelo arquipélago dos Açores, realizando 116 espectáculos e tendo discursado 70 oradores, num total de 230 700 espectadores. O SPN dispunha ainda de duas aparelhagens móveis para exibições, solicitadas por escolas, liceus, quartéis, sindi- catos e outros organismos, como a Legião Portuguesa. Nestas jornadas cinematográicas, além do visionamento de documentários de carácter

nacionalista, o SPN/SNI patrocinava breves conferências doutrinárias, onde convidados se pronunciavam sobre as virtudes do regime e o valor educativo dos ilms (Ribeiro, 2010).

É nesta conluência de interesses políticos, ideológicos mas também educativos que o uso do cinema em contexto educativo ou com ins edu- cativos assume um papel didático que permanecerá como um recurso ino- vador e merecedor de uma atenção particular nos anos de 1950, tanto em escolas que criam ‘centros de cinema cultural’ — iremos exempliicar com as atividades numa escola técnica (Industrial Infante D. Henrique) e por iniciativa de um docente rendido à riqueza didática do cinema —, como em iniciativas governamentais que, visando a obtenção de resultados com poucos recursos, vai apostar no cinema para fomentar a educação popular e reduzir as taxas de analfabetismo que envergonhavam o país.

No documento Aprender del cine: narrativa y didáctica (páginas 152-158)