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CAPÍTULO 2: O MODELO A/C, O MODELO A/C ESTENDIDO E A CRENÇA

2.2 Objeções de jure e objeções de facto

A afirmação fundamental do autor em WCB é de fato muito simples: a crença em Deus, se verdadeira, pode possuir aval epistêmico suficiente para ser considerada conhecimento. Ademais, Plantinga também afirma que não existem objeções de jure que sejam independentes de objeções de facto. A relação de dependência entre a questão da racionalidade ou aval e a verdade ou falsidade do teísmo se entrelaça de tal modo que a questão do aval epistêmico da crença teísta não é de forma alguma independente da questão de sua veracidade. Consequentemente, as questões de jure que se levantam contra o teísmo não são independentes de questões de facto. Para responder à primeira deve-se responder à segunda, pois conforme o autor insiste, não existe questão de jure razoável independente da questão de facto.

Como dissemos, o propósito de Plantinga em WCB é defender o aval epistêmico da crença em Deus, particularmente do Deus cristão, e oferecer um modelo de crença cristã avalizada, que satisfaça as condições do aval. Mas defender a crença cristã contra o quê especificamente? Quais, precisamente, são as objeções levantadas que tornariam a crença cristã sem justificação, irracional, sem aval epistêmico? Segundo o autor, o pensamento ocidental tem demonstrado, desde o iluminismo, ao menos dois estilos distintos de objeções contra a crença teísta (cristã, em particular). Primeiro, existem as objeções de facto ou “de fato” (em que a pergunta a ser respondida é se a crença é verdadeira porque respectiva a uma proposição verdadeira). Talvez a objeção de facto mais importante à fé teísta seja o argumento do sofrimento e do mal; esta talvez seja a objeção contra a crença cristã que tem sido formulada e afirmada com maior frequência na filosofia ocidental. De

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acordo com tal objeção, a crença teísta afirma a existência de um ser onipotente, onisciente e sumamente bom; mas, dada à quantidade devastadora e grande variedade de sofrimento humano e mal encontrados no mundo, isto simplesmente não pode ser verdade.

Objeções de facto têm uma longa e distinta história no pensamento ocidental, remontando aos longínquos tempos de Epicuro; porém, ainda mais frequentes têm sido as objeções de jure. Objeções de jure ou “de direito” (em que a pergunta a ser respondida é se há razão para crer, ou se é correto ou justo crer) são argumentos ou afirmações contra a racionalidade da crença teísta; são objeções de que a crença teísta, seja esta verdadeira ou não, é de qualquer forma injustificável, ou racionalmente injustificada, ou irracional, ou intelectualmente não respeitável, ou contrária à moralidade, ou sem evidência suficiente, etc. Desta forma, uma objeção

de jure tentará mostrar que a crença teísta não satisfaz pelo menos uma das

condições para o aval epistêmico, sendo, portanto, uma crença intelectualmente inaceitável.

Objeções de facto e objeções de jure são distintas entre si, mas de alguma forma coincidem. Isto é, há, por exemplo, objeções de jure à crença teísta acerca do sofrimento e do mal, bem como objeções de facto: que a existência do sofrimento e do mal encontrados no mundo torna irracional sustentar que a crença teísta seja, de fato, verdadeira porque não se refere a uma proposição verdadeira (objeção de

facto), ou ainda que a conjunção da crença em Deus, conforme descrito pelos

cristãos (principalmente com o atributo de ser onibenevolente, isto é, sumamente bom), com a crença na existência de mal no mundo, torna a crença cristã irrazoável, ou racionalmente inaceitável, ou intelectualmente defeituosa (objeção de jure). Dessa forma,

A objeção de facto em relação à crença é que ela é falsa, tal como a crença na existência do Papai Noel. O objetor de facto, portanto, argumenta que a crença cristã é falsa, ou pelo menos improvável. [...] A objeção de jure, portanto, é que a crença cristã é irracional ou injustificada ou talvez imoral; mais exatamente, alega-se que a pessoa que abraça a crença cristã é irracional, não dispõe de justificativa para isso ou é, de outro modo, merecedora de desaprovação.70

Responder especificamente à objeção de jure à crença cristã consiste de um dos propósitos do autor para abrir caminho para uma formulação de um modelo

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positivo no qual a crença teísta possua aval epistêmico. Mas qual é a qualidade epistêmica que os proponentes de objeções do tipo de jure alegam que o teísta carece? Seria essa qualidade a justificação, a racionalidade, ou mesmo o aval epistêmico? A resposta mais popular é que, independentemente da crença em Deus ser verdadeira (afinal, como alguém poderia saber alguma coisa dessas? — dizem os objetores), o fato é que não parece haver evidências suficientes e que o crente carece de justificação para manter e afirmar racionalmente sua crença na existência de Deus. A crença em Deus é, portanto, injustificada.

Tal concepção de justificação conta com ao menos dois componentes principais. Em primeiro lugar, temos a evidência: a crença é injustificada quando não há evidência a seu favor; em segundo lugar, há o dever, a obrigação ou retidão moral. O dever epistêmico consiste em acreditar apenas naquelas proposições para as quais se possui evidência. A esse tipo de justificação confere-se o nome de justificação deontológica. Acontece que é difícil descrever o tipo de dever ou princípio epistêmico que alguém falha em cumprir ao manter e afirmar a crença na existência de Deus, conforme exigência da justificação deontológica. Como vimos, esse princípio é intimamente associado ao critério de basicalidade apropriada do fundacionalismo clássico, o problema é que o critério de basicalidade própria do fundacionalismo clássico é autorreferencialmente incoerente e ainda por cima exclui uma grande variedade de crenças que tomamos como justificadas, o que não nos deixaria em boa situação epistêmica.71

Além disso, esse tipo de objeção pode ser facilmente respondida: o crente pode certamente possuir justificação à respeito da sua crença sobre a existência de Deus. De que maneira? Suponha que uma pessoa que crê na existência de Deus leia os principais escritores ateístas e todos os melhores argumentos contra a existência de Deus propostos por tais escritores e tantos outros, mas ao final, depois de ponderada reflexão, sinceramente conclui que esses argumentos não são convincentes. Então, de modo semelhante, ela passa a analisar os argumentos a favor da existência de Deus, os melhores argumentos da teologia natural, e conclui que estes também não são melhores que os argumentos ateístas. Após essas investigações, ela ainda mantém uma vida interna espiritualmente rica e com completude, ou seja, ela não somente ainda crê na existência de Deus, como

71 Para mais detalhes veja o capítulo anterior, seção: “crença em Deus como propriamente básica:

também mantém uma relação pessoal e ativa com ele. O ponto a se observar aqui é que não parece haver nenhum tipo de dever epistêmico que essa pessoa falha em cumprir com respeito à sua crença na existência de Deus. Dada a noção de justificação deontológica ela está, na verdade, completamente justificada a respeito de sua crença, pois ela cumpriu seus deveres ou obrigações epistêmicas em relação à sua crença; logo, está dentro dos seus direitos manter tal crença e contabiliza-la como justificada.

E isso não é apenas verdadeiro, mas é obviamente verdadeiro. Podemos ter o vago sentimento de que, sem provas, ela [a pessoa] não está justificada; se assim for, isso deve ser porque estamos importando alguma outra concepção de justificação. Mas se é justificação no sentido deontológico, o sentido envolvendo as noções de responsabilidade, estando dentro dos seus direitos intelectuais, ela está certamente justificada. Como ela poderia ser culpada ou irresponsável, se pensa sobre o assunto tão profundamente e da maneira mais responsável que pode, e ainda chega a estas conclusões? De fato, não importa a que conclusões chegue, não estaria ela justificada se chegasse a elas dessa maneira?72

Para Plantinga, a objeção de jure não pode envolver a afirmação de que o crente não pode estar justificado com respeito a sua crença na existência de Deus. E o que dizer da racionalidade? Podemos perguntar se o crente é racional ao crer da forma que crê, isto é, que Deus de fato exista? Muitos que levantam objeções do tipo de jure a colocam em termos de racionalidade, não justificação. Poderia então uma objeção de jure viável ser formulada em termos de racionalidade: se a crença cristã, com ou sem evidências, é racional? Plantinga examina diversos tipos de racionalidade73 e não considera nenhum deles como sendo capaz de formular objeções viáveis. É nos escritos de Sigmund Freud e Karl Marx que o autor encontra uma caracterização mais proeminente da objeção de jure.