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A ideia de compreender a saída de atletas do esporte de alto rendimento surgiu durante o desenvolvimento da pesquisa de mestrado, como já foi exposto na introdução deste estudo. Foi a partir da saída de algumas ginastas da equipe que eu acompanhava que iniciei os seguintes questionamentos: o que levou as meninas a saírem da ginástica? Para onde foram? E todos aqueles anos de prática, quais as marcas que deixaram em suas vidas? Movida por essas primeiras inquietações, após a finalização da dissertação, realizei a leitura de algumas pesquisas no campo da Educação Física a fim de compreender o que estava sendo produzido sobre o tema.

Essas leituras iniciais me levaram a lançar outro olhar para o debate, pois percebi algumas lacunas no conjunto de pesquisas sobre as quais me debrucei. A primeira delas é sobre a concepção homogênea de ‘adolescência’ que os estudos apontaram, como uma fase da vida com características definidas para todos os indivíduos. O principal argumento dos autores é que os ‘adolescentes’ estão mais vulneráveis emocionalmente e fisicamente às pressões e exigências do universo esportivo do alto rendimento, pois estão formando suas identidades e maturando seus corpos. No entanto, ao me aproximar inicialmente das ex-ginastas, percebi que, embora estivessem na mesma fase da vida, entre seus 13 e 14 anos, possuíam histórias de vida e contextos culturais diferentes, fatores que poderiam caracterizar de forma também heterogênea os processos e motivos de suas saídas da equipe.

Para sustentar essas minhas impressões busquei alguns autores que, ao invés de abordarem a ‘adolescência’, abordavam a ‘juventude’ a partir de uma perspectiva social. Dentre os autores que incluí para a discussão, José Machado Pais (1990; 2009) traz para o debate uma concepção de juventude que me ajuda a pensar sobre a heterogeneidade de percursos das ex-ginastas. Para esse autor, a juventude, e também as outras gerações, foi criada socialmente a partir de mudanças na sociedade. Dessa forma, do mesmo modo que a sociedade muda, suas construções também sofrem transformações, o que fez, e ainda faz, a noção de juventude ser mutável. Portanto, ao longo da história os jovens foram vistos de diferentes formas, ora como desajustados e rebeldes, ora como passivos. Um dos sentidos atribuídos à juventude, bastante presente ao longo da história, é a ideia de

que os jovens são os principais sujeitos que sofrem com os problemas sociais de cada época.

No entanto, esse autor olha para os jovens para além da transgressão, passividade e vitimização, pois entende que esses sujeitos se apropriam e ressignificam as diferentes culturas em que são socializados, sendo este um processo ativo. Além disso, os jovens são indivíduos que se relacionam de forma criativa com os marcadores geracionais e com as culturas dominantes das quais fazem parte. O autor também está atento à diversidade cultural entre os jovens e às formas com que as culturas juvenis são construídas. Portanto, se torna central nessa perspectiva compreender como os jovens se relacionam com as mudanças sociais, como se apropriam e compartilham culturas e como as diferenças culturais contribuem ou não para esse compartilhamento. Também a partir desse olhar, diferente de pensar o jovem como um sujeito em uma fase de transição para a vida adulta, esse indivíduo é visto no tempo presente, com desejos, valores, opiniões e ações que contribuem para o processo de constituição de uma sociedade (PAIS, 1990; 2009).

O segundo aspecto que ressaltei nas leituras iniciais é a relação de causa e efeito entre as situações que um atleta vivencia no alto rendimento esportivo e as reações que possui diante delas, levando-o a um possível desligamento do esporte. Essa ideia linear das ações dos indivíduos tem sido também uma das principais sustentações dos estudos que buscam identificar os motivos que levam os jovens a saírem do esporte de alto rendimento.

No entanto, se olharmos para os indivíduos jovens a partir da ideia de que circulam em diferentes contextos sociais, possuem diferentes composições familiares, estudam em diferentes escolas e, com isso, possuem percursos heterogêneos, fica difícil pensar sobre linearidade de comportamentos. Essa concepção é densamente sustentada pelo sociólogo Bernardo Lahire (2001; 2006), o qual, conforme já mencionado, entende o indivíduo de forma plural, podendo este ter diferentes comportamentos e ações, às vezes contraditórias, conforme o contexto e a situação que está sendo estabelecida. Sobre os jovens, nas palavras do autor,

qualquer que seja sua origem social, os públicos jovens (12 a 25 anos), em grande parte estudantes, vivem em regimes culturais de múltiplas imposições, mais ou menos interiorizadas sob a forma de hábitos e de gostos pessoais. Eles compõem seus

programas culturais - de forma harmônica ou contraditória e tensa - basicamente em função de três grandes imposições: (“pressões” surdas e difusas) do grupo de companheiros e, às vezes, de membros da fratria, geralmente fundadas em produtos da indústria cultural difundida pelas mídias, para estar “na onda” e para participar de atividades comuns que não pertencem ao repertório de atividades classicamente legítimas (música e cinema jovem, discotecas, programas e séries de TV, jogos eletrônicos, etc); imposições da escola em matéria de práticas culturais legítimas (literatura, teatro, museus, ciências, etc); imposições culturais dos pais (mais ou menos legítimas em função do capital cultural familiar) (LAHIRE, 2006, p. 427, destaques do autor).

O que o autor destaca no excerto acima é que durante a juventude esses três contextos sociais - amigos, escola e família - estão historicamente presentes na vida desses sujeitos e possuem fortes influências. Além disso, por ser um momento da vida em que é permitida maior experimentação e maiores vivências, os jovens possuem mais liberdade para a circulação em diferentes contextos quando comparados com adultos que estão há mais tempo envolvidos com o trabalho e a família. Apesar de, em muitos casos, essa lógica ainda predominar, é possível fazer alguns acréscimos a esta reflexão.

Sabemos que, atualmente, ter filhos e envelhecer não significa necessariamente um momento de reclusão, pois nos encontramos em uma sociedade que nos possibilita grande acesso às informações através das redes sociais e maior estímulo para circular em variados contextos culturais. Nessa direção, podemos igualmente dizer que, na vida dos jovens, existem outros contextos sociais para além dos grupos de amigos, da escola e da família. No caso das ex-ginastas, é possível acrescentar o esporte, mas poderiam surgir outros — espaços religiosos, cursos de línguas, projetos sociais, etc.

Nesse sentido, acrescentando o que Velho (1997) discorre sobre os campos de possibilidades de um indivíduo, sabemos que existem núcleos de referência importantes na vida dos sujeitos, como a família ou a religião, por exemplo. No entanto, é a circulação em contextos diferenciados que contribui para a ampliação da capacidade das pessoas no que se refere às mudanças de projetos, os quais podem ir na direção contrária dos desejos e valores de um núcleo de referência, como os já referidos acima.

Com base nesse conjunto de reflexões que apresentei até o momento, compreendo o esporte de alto rendimento, como mais um ‘campo de possibilidades’, onde a noção de ‘indivíduo’ é constantemente elaborada e onde esquemas de ações podem ser incorporados. Esse entendimento também me leva a olhar para as possibilidades de

mudanças ou atualizações de ‘projetos’ que o desligamento do esporte de alto rendimento, protagonizado por jovens, pode proporcionar. Assim, refletir sobre as jovens ex-ginastas com desejos, valores e expectativas no tempo presente, e entendê-las como indivíduos plurais e capazes de agir e se movimentar de diferentes maneiras em todos os espaços em que circulam, me levaram ao seguinte objetivo geral de pesquisa: compreender ‘como’

acontece o processo de saída de ginastas jovens do esporte de alto rendimento e 'como’ seguem suas vidas após esse afastamento.

Levando em consideração que as ex-atletas decidiram sair do esporte de alto rendimento no mesmo momento de suas vidas, pergunto de forma específica:

- Como e por que as ex-atletas saíram do esporte do qual faziam parte? Quais sujeitos e situações participaram desse processo?

- Levando em consideração suas condições de ‘jovens’, quais sentidos, valores e experiências as meninas compartilharam nesse processo?

- O que significa para as jovens deixar de ser atletas?

- Após a saída da ginástica, houve atualizações e novas formulações de projetos? Se sim, como são construídos?

- Como a vida esportiva, durante o período em que foram atletas, atravessa as novas experiências vivenciadas em suas ‘juventudes’?