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A “obsessão” heideggeriana em fazer uma leitura da história da filosofia como esquecimento do ser, uma necessidade “doentia” de superação (talvez uma herança

Distância e proximidade

3. A “obsessão” heideggeriana em fazer uma leitura da história da filosofia como esquecimento do ser, uma necessidade “doentia” de superação (talvez uma herança

hegeliana), que ainda parece reagir ao medo, à necessidade de segurança como garantia, faz com que Heidegger fique atolado naquilo que ele pretende superar.

Quando se supera algo, esse algo deixa de ser um tema importante, um fio condutor. Contrapondo-se a isso, vemos em Lévinas uma liberdade maior de relacionar- se com a tradição, conseguindo fazer leituras ainda mais aguçadas e sensíveis de outros filósofos da tradição, conseguindo apesar disso articular uma originalidade maior de pensamento. Pensamento engajado, isto é, não acomodado no ambiente acadêmico, pensamento que nos coloca frente à nossa responsabilidade, ao dever, que tanto inspirava Kant, um filósofo que aparece de modo muito mais interessante quando nos dedicamos à essa leitura mais sensível.

Parece que falta certa “humildade” à Heidegger, essa humildade que permite a abertura, que nos coloca no aberto que se abre, antes de ser “abertura do ser”, que tem sentido antes de ser “sentido do ser”, pois o que ele parece não se dar conta é que apesar de sua lucidez em relação a perceber o esquecimento da questão, que ainda continua uma crítica pertinente ao ainda atual domínio da técnica, repousa sobre um ponto que permanece cego para Heidegger por uma contaminação que há na própria noção de ser. Pois o estranhamento, o pensamento, tematiza o ser apenas a posteriori. Mesmo que Heidegger tente fugir da tematização do ser, na referência do ser ao nada, à um nada fecundo, ele não consegue desapegar-se do racionalismo como “desfecho”, do medo da morte que dá um sentido finito à esse nada. O vazio deve ser um meio para a fecundidade, não a própria fecundidade, e a semeadura deve ganhar um sentido explícito do engajamento no mundo, pela continuidade do mundo, na responsabilidade que inaugura perante as relações inter-humanas, isto é, perante a vida dos outros.

Com isso, pensamos que a humanidade do homem não se reduz às análises da existência de Heidegger, em que o homem aparece como dasein, estrutura que encontra no seu fim, na sua morte, sua própria autenticidade. Foi importante, como dissemos, o trabalho de Heidegger no sentido de liberar o horizonte de interpretação para que o homem não ficasse atolado na moral, e Lévinas não pretende resgatar valores para interpretar o homem.

“Não se trata de encontrar nele (em Kant) uma prova da existência de Deus suscetível de acalmar a nossa angústia diante da morte, mas de mostrar, no seio do ser finito da subjetividade e do fenômeno ( a Crítica da Razão Pura é uma filosofia da finitude), que há uma esperança racional, uma esperança a priori. Não é a um querer sobreviver que Kant dá satisfação, mas a uma conjuntura absolutamente diferente de sentido. Esperança a priori, quer dizer, inerente à razão finita e, portanto, à semelhança da mortalidade, esperança razoável, racional, sem que um tal sentido possa refutar a mortalidade que se mostra no ser enquanto ser (= ser finito), mas também sem que a

esperança da imortalidade se situe apenas entre os derivados do ser-para-a-morte e, portanto, da temporalidade originária do ser-aí.”36

Temos assim que interpretar o sentido dessa esperança, não como usualmente o fazemos, isto é, espera no tempo, mas como fundamento, motivação própria. Com isso Lévinas começa a esboçar uma outra interpretação do tempo, diferente de Heidegger, e assim, uma outra interpretação para a morte, diferente dá que resulta do nada do ser. Essa esperança não é uma necessidade de sobreviver, assim como, a morte e o nada não são o ponto culminante da relação no aberto, que é, para Lévinas, relação com o infinito.

Essa esperança também não repousa da noção de Deus, mas pelo contrário, é Deus que ganha um sentido a partir dela. A “ação livre”, isto é, em consonância com a lei moral universal, tem independência em relação a tudo, até mesmo de Deus. Ele aparece como postulado apenas se desejamos, para-além do ato moral, encontrar a felicidade, mas não é necessária para o valor moral da ação. Assim, a esperança, em seu caráter racional, está em consonância com a felicidade.

Entretanto, trata-se de uma esperança contra todo saber. Apesar de se admitir a existência de Deus e a imortalidade da alma, como exigências da razão, elas devem ficar apenas como o que é esperado. O que importa à essa esperança é que ela não deve se referir à algo no âmbito do ser, isto é, à algo que deva, por assim dizer, ganhar existência.

“A espera é acesso ao que pode ser contido num saber. Aqui, a esperança é diferente de um pressentimento, diferente do desejo de sobreviver (para Kant, a morte é o limite do que pode ser conhecido). Mas esta esperança não é também uma nostalgia subjetiva. Designa um domínio que é mais do que um comportamento humano e menos que o ser. Mas podemos colocar-nos esta pergunta: a esperança – mais do que um qualquer comportamento humano e menos do que o ser – não é mais do que o ser?”37

Este “mais do que ser”, não deve ser interpretado com referência a existência, ou como um correlativo de um saber. A subjetividade estaria em relação com o que não se pode realizar. Se trata de uma relação que não pode ser medida e que por isso é esperança. A imortalidade da alma, em Kant, não é uma esperança que deve se realizar, que deve dar-se a conhecer num determinado tempo, pois se assim fosse, poderia ser

36 Idem, p. 84. 37 Idem, p. 85 e 86.

conhecida no modo do fenômeno, o que está excluído da Crítica da Razão Pura por se tratar de uma possibilidade de entrar em contato com o absoluto. Assim, essa esperança racional não é uma esperança no tempo.

O que Kant pensa, e que é interessante para Lévinas, é que a racionalidade humana não se esgote em “ter-de-ser”, como acontece nas análises heideggerianas, nem mesmo sendo o “guardião” do ser, à serviço do ser. O ser é que se encontra à serviço da racionalidade que exige a conciliação entre virtude e felicidade. O dever aqui não significa nem se define na relação do ser ao seu ser, mas em referência à uma esperança racional que projeta um sentido num domínio de “puro nada”, sem ser um êxtase temporal fora do tempo e do ser dado, a menos que esse tempo seja uma relação com o que “não pode chegar”. Com isso, Lévinas não quer indicar que se trata de uma espera em vão, mas uma espera em que o esperado excede a espera, e a duração do tempo é uma relação que “tende mais do que contém”: “acolhimento de um excesso”38.

4. Contra Heidegger, Lévinas levanta a questão de como pensar o “nada”,