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2. CONTEXTUALIZAÇÃO

2.2 OFERTA E DEMANDA NA SAÚDE

Gadelha, Quental e Fialho (2003) defendem que as políticas de saúde, além de apresentar uma dimensão social, também constituem mecanismos estratégicos para a consolidação de um sistema dinâmico, com efeitos diretos no desenvolvimento econômico- financeiro nacional e nas organizações do setor em questão (i.e., saúde). Para os autores, há que se discutir sobre uma orientação para a organização dos serviços de saúde a partir ou da lógica capitalista (competitividade) ou da lógica sanitarista (assistencial) para desenvolvimento do setor, inclusive das organizações hospitalares. Entretanto, Mersha, Meredith e McKinney (1987), há décadas, já ressaltavam as dificuldades para definição de uma forma adequada de organização e de alocação de recursos aos hospitais – em especial, àqueles sem fins lucrativos. Para os autores, a maioria dos modelos de alocação de recursos aos hospitais, cujo objetivo é resolver o problema de racionamento de recursos, não é adequadamente utilizada.

No art. 35 da LOS (BRASIL, 1990), foi explicitado um conjunto de critérios distributivos para a alocação dos recursos públicos federais ao setor saúde. Todavia, a LOS não tratou, dentre outros fatores, de um modelo de alocação de recursos que considerasse as variáveis de perfil demográfico e epidemiológico ou ainda outros critérios destinados, por exemplo, a incentivar melhorias nos níveis de desempenho e qualidade dos serviços prestados (PORTO, 2003).

O envelhecimento populacional aumenta os problemas de saúde dos indivíduos e, consequentemente, os custos relacionados aos cuidados médico-hospitalares (MOREIRA, 2010; VECINA NETO; MALIK, 2011). Para satisfazer a demanda crescente, é preciso alterar a estrutura de oferta e de organização de serviços de saúde. Contudo, existe uma significativa dificuldade na definição de modelos capazes de medir de forma abrangente a necessidade de cuidados de saúde (VIEGAS; BRITO, 2004), aliando variáveis como demanda, oferta, capacidade organizacional produtiva e rede de organizações prestadoras de serviços.

No setor público brasileiro, usava-se predominantemente, até o início dos anos 1990, o orçamento global para repasse de recursos para os prestadores públicos de serviços de saúde. A partir da instituição do Pacto pela Saúde (cf. Seção 2.3), são as secretarias estaduais e municipais que passam progressivamente a alocar recursos para os prestadores de serviços de sua jurisdição, por meio principalmente da Programação Pactuada Integrada (PPI). Desde então, coexistem no Brasil distintos modelos de repasse e de alocação de recursos para os prestadores de serviços hospitalares, modelos esses que variam segundo a realidade estadual ou municipal (VECINA NETO; MALIK, 2011; GADELHA, 2012).

Esses modelos, entretanto, tratam a demanda por serviços especializados de saúde de forma reativa, isto é, presta-se de acordo com o que é necessário e paga-se pelo que é cobrado. Em outras palavras, não há, de fato, uma racionalização, em nível federal, regional e local, dos serviços de alta complexidade, tanto em relação às necessidades de consumo de serviços quanto em relação à capacidade operacional das unidades prestadoras de serviços de alta complexidade (i.e., os hospitais). Exemplo disso pode ser observado no estado de Minas Gerais: comparando os dados da PPI de 2010 e 2011 (MINAS GERAIS, 2012) com os dados disponíveis no DATASUS sobre as AIH pagas (BRASIL. Ministério da Saúde, 2012), é possível observar a discrepância entre a quantidade pactuada no PPI e a quantidade de AIH autorizadas e pagas pelo SUS em todo o estado (cf. TAB. 1).

Tabela 1: Dados de procedimentos cirúrgicos realizados no estado de Minas Gerais

Ano Quantidade pactuada na PPI Quantidade de AIH autorizadas e pagas pelo SUS Diferença (%)

2010 375.345 427.278 13,84%

2011 375.348 449.527 19,76%

Fonte: elaborada pela autora com base nos dados de Minas Gerais (2012).

Ainda pela TAB. 1, verifica-se que, apesar do aumento da diferença entre pactuação x execução, de 13,84% em 2010 para 19,76% em 2011, a quantidade de procedimentos cirúrgicos ‘pactuados’ e inclusos na PPI se manteve praticamente inalterada. Em 2010, foram

375.345; no ano seguinte, houve um aumento de apenas três procedimentos. Esses dados corroboram o entendimento de Vecina Neto e Malik (2011), que afirmam que essa pactuação para o financiamento dos hospitais tende a se manter estável ao longo do tempo e pouco reflete as mudanças nos perfis de demanda. As organizações consomem todo o orçamento, decorrente da pactuação, “durante o exercício fiscal para manter um valor histórico básico de negociação para o próximo exercício fiscal” (VECINA NETO; MALIK, 2011, p. 61).

A necessidade de repensar a forma como os recursos são alocados às organizações também é nítida quando analisados os indicadores financeiros e operacionais dos hospitais. Em um estudo que buscou analisar a eficiência de hospitais brasileiros, Guerra (2011) mostra que grande parte dos hospitais pesquisados apresenta tanto dificuldades financeiras quanto operacionais, ou seja, é ineficiente. Os indicadores financeiros e operacionais calculados pela autora para o ano de 2008, como a Margem Operacional, mostraram-se muito próximos de zero ou mesmo negativos (cf. TAB. 2).

Tabela 2: Índice Margem Operacional de hospitais brasileiros

Estado Hospitais Operacional Margem

SP Hospital Santa Bárbara (Fundação ROMI) -3,78

SP Hospital Santa Casa de Capão Bonito -1,52

RS Hospital Cristo Redentor S/A (Grupo Hospitalar Conceição) -0,55 RS Hospital Nossa Senhora da Conceição S/A (Grupo Hospitalar Conceição) -0,24

SC Hospital Regional do Oeste -0,23

PA Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência -0,12

SP Hospital Geral da Pedreira (Associação Congregação Santa Catarina) -0,11

RS Hospital Universitário São Francisco de Paula -0,10

MG Hospital Aroldo Tourinho -0,07

MG Hospital São Sebastião -0,07

SP Hospital das Clínicas FAEPA (HCFMRP) -0,06

RS Hospital Fêmina S/A (Grupo Hospitalar Conceição) -0,04

RS Hospital das Clínicas de Porto Alegre 0,00

RS Hospital Santa Casa de Porto Alegre 0,00

SP Hospital Estadual Mário Covas de Santo André (Fundação ABC) 0,01

SP Hospital Santa Casa de São Paulo 0,02

CE Hospital Santa Casa de Fortaleza 0,04

SP Hospital e Maternidade São Domingos 0,07

MG Hospital Luxemburgo (Associação dos Amigos do Hospital Mario Penna) 0,07

RS Hospital de Caridade São Roque 0,08

MG Hospital São João de Deus 0,08

AL Hospital Santa Casa de Maceió 0,10

SP Hospital das Clínicas FMUSP (Fundação Zerbini) 0,11

MG Hospital Escola da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Fundação de Ensino e Pesquisa de Uberaba) 0,12

SP Hospital Santa Casa de Itapeva 0,18

MG Hospital Santa Casa de Belo Horizonte 0,19

Fonte: adaptada de Guerra (2011).

Nota: Alagoas (AL); Ceará (CE); Minas Gerais (MG); Pará (PA); Rio Grande do Sul (RS); Santa Catarina (SC); São Paulo (SP).

Margem Operacional é um índice de rentabilidade que mostra a proporção do resultado obtido em relação à atividade operacional da organização – se positivo e maior que 1, o saldo operacional final (receitas operacionais menos despesas operacionais) é maior que as receitas operacionais. Pela TAB. 2, é possível observar que, dos 26 hospitais pesquisados por Guerra (2011), nenhum possui Margem Operacional acima de 1; doze deles, inclusive, apresentam valor negativo, indicando que a atividade operacional acarretou prejuízo à organização – tal como ocorre em vários hospitais do país, inclusive aqueles conveniados ao SUS (LA FORGIA; COUTTOLENC, 2009).

Apesar das dificuldades operacionais e financeiras, entende-se que a ineficiência e ineficácia do SUS quanto à integralidade dos serviços prestados não devem ser atribuídas a ausência de recursos financeiros ou organizacionais e que as filas de espera para atendimento em um sistema universal de saúde não podem servir como justificativa para o restrito acesso aos serviços (OCKÉ-REIS, 2010). Uma abordagem crítica da organização dos serviços de saúde e do modelo de alocação de recursos (financeiros) às organizações prestadoras de serviços de alta complexidade exige a consideração do custo de oportunidade relativo à alocação de recursos. Com base na análise desse custo, o melhor modelo resultaria em uma alocação racional para ‘valorização’ dos recursos (financeiros) aplicados na execução dos serviços hospitalares e, dentre outros, em: (i) melhores condições de saúde da população; (ii) melhor alocação dos recursos – com base no custo-benefício organizacional e de prestação do serviço; (iii) incentivos contratuais para organizações prestadoras de serviços de saúde complementares; (iv) utilização dos recursos tecnológicos de forma mais custo-efetiva; (v) desenvolvimento e emprego de recursos humanos qualificados; (vi) incremento da produtividade; e (vii) corte de desperdícios (OCKÉ-REIS, 2010).

Diante do atual contexto brasileiro, é preciso reverter a lógica de atuação do Estado (OCKÉ-REIS, 2010; GADELHA, 2003). A partir de um pensamento (lógica) que busque a competitividade do setor saúde, deve-se considerar como alternativas para a atual situação brasileira (i) a manutenção da rede privada de serviços de saúde (e.g., hospitais filantrópicos e santas casas), mas necessariamente aplicando-se mecanismos de subvenção estatal (incentivos governamentais), e, concomitantemente, (ii) melhor organização da rede de serviços públicos de saúde de alta complexidade. Assim como o Estado atua na questão das grandes indústrias produtoras de matérias-primas, bens e serviços, é preciso que, no setor saúde, o Estado exerça seu papel intervencionista (MACHADO, 2007; VECINA NETO; MALIK, 2011), incentivando, por exemplo, que organizações conveniadas e/ou contratadas

se instalem em regiões em que há escassez de oferta de serviços de saúde de alta complexidade (cf. discussão sobre a lógica capitalista na Seção 3.2).

Conforme mencionado na Seção 2.1, consoante Couttolenc e Zucchi (2002), uma política pode ser traduzida em um padrão específico de alocação de recursos. Esse padrão, traduzido por meio dos mecanismos de repasse ou da lógica de alocação de recursos às organizações, podem refletir a forma com que o ‘Estado’ direciona a política de saúde pública. Esses mecanismos serão apresentados a seguir.