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Parte I Definindo conceitos e demarcando campos do conhecimento 119

1.1 Trajetória da noção de Segurança Alimentar e Nutricional 120

2.1.1 Oferta e Produção de Alimentos

Pertence a essa dimensão, que combina temas próprios do abastecimento alimentar com geopolítica, a noção de soberania alimentar compreendida como a combinação de uma dimensão interna dada pela auto-suficiência, decorrente da produção agrícola e da capacidade de obter alimentos, tanto interna como externamente.

A soberania alimentar vista, nesse caso, como imagem da existência de uma

oferta de produtos e o seu respectivo controle pelos governos – de modo a

assegurar que esta seja perene e suficiente às necessidades internas de alimentos – contribui para que sejam devidamente compreendidos o papel dos mercados (interno e externo), as conexões e conflitos entre os conteúdos do sistema agroalimentar e os processos econômicos e sociais dos países e as ações sob a

forma de políticas públicas orientadas para a consecução do direito humano à alimentação, na promoção da segurança alimentar (MALUF, 2000).

Tal associação, da noção de segurança alimentar com os elementos que devem garantir uma oferta de alimentos permanente e suficiente, inspira inevitavelmente medidas protecionistas como forma de cumprir o objetivo estratégico

interno – atender à demanda agregada – ao mesmo tempo em que, do ponto de

vista externo, a soberania alimentar converte-se em poderosa moeda de troca na construção das relações entre nações, seja igualando-as, no caso dos países desenvolvidos, seja contribuindo para reforçar laços de dependência, quando o eixo se desloca para as nações pobres.

A garantia de manutenção da oferta interna de alimentos envolve, como é possível depreender, bem mais do que a busca de uma produção diversificada e suficiente que, ao mesmo tempo em que remunere os produtos, garanta que esses alimentos cheguem em quantidade e regularidade necessárias, aos pontos de distribuição, livres dos sobrepreços produzidos por intermediações desnecessárias, de sorte a pelo menos não ampliar a distância entre a renda e os preços no mercado. Haveria ainda de garantir a constituição de estoques reguladores, estratégicos e de emergência, que sob o controle do governo central, permitisse a intervenção no mercado e a sustentação de políticas assistenciais de distribuição de alimentos.

Como garantia de oferta de alimentos, o conceito de segurança alimentar se refere a dois problemas enfrentados pelos Estados nacionais. Primeiramente, há a necessidade permanente da disponibilidade física de alimentos a preços acessíveis e estáveis para atender a uma demanda interna. Daí advém o caráter estratégico da garantia da oferta, no sentido da constituição de estratégias de abastecimento alimentar que se contraponham a eventuais bloqueios de alimentos originados por conflitos internacionais. Em outras palavras, neste enfoque a segurança alimentar expressa a capacidade de um país de alimentar-se a si mesmo, e o tema da fome e da desnutrição se relaciona com a resposta da oferta agrícola e com os aspectos políticos e estratégicos do comércio mundial de alimentos (LUNA,1997).

De modo geral, as implicações da segurança alimentar como um problema ligado à garantia de oferta de produtos agrícolas levou à constituição de políticas agrícolas ativamente protecionista para o setor agrícola nos países desenvolvidos.

Há também a percepção da necessidade do país garantir a produção interna

de alimentos suficientes para oferecer um nível mínimo de ingestão de alimentos per

capita à população, protegendo-se das grandes oscilações de preços e de situações

adversas, como no caso de guerras e embargos econômicos

(FAO/WFS96/TECH/8,1996).

Para Luna (1997), a estratégia dos defensores da geração de auto-suficiência, através da forte presença de políticas governamentais de estímulo e controle, levam em conta que: (Luna,1997, p.396-7):

 A ausência de um mercado mundial perfeitamente competitivo, invalida a

suposição teórica da vantagem comparativa;

 Os países industrializados adotam um forte protecionismo na sua política

agrícola em áreas na quais, é difícil encontrar vantagens comparativas;

 Muitas vezes, a instabilidade dos preços internacionais pode agravar a restrição de divisas, de modo que a possibilidade do termo de intercâmbio desfavorecer países em desenvolvimento não pode ser subestimada;

 Os cultivos de exportação podem aumentar a produção e a entrada de divisas, mas se todas as nações o tentassem simultaneamente, o aumento considerável da oferta reduziria os preços internacionais e, consequentemente, os benefícios para os países em desenvolvimento;

 Um aumento na entrada de divisas originado por maiores exportações

agrícolas não necessariamente implica em maiores importações de alimentos.

 Os cultivos de exportação geralmente interrompem o vínculo produção-

autoconsumo que caracteriza a agricultura tradicional, de modo que o fortalecimento dos mecanismos de mercado pode prejudicar ainda mais

as populações pobres e suscetíveis à insegurança alimentar. (LUNA apud

Deste modo, os principais riscos decorrentes da dependência do comércio internacional para a segurança alimentar apontados incidem na deterioração dos termos de intercâmbio e na queda de preços de exportações, e na elevação dos preços de importações.

Luna (1997, p. 400) discorre ainda sobre o caráter permanente ou transitório dos problemas de insuficiência de oferta alimentar, e sobre as propostas de ação diferenciadas para ambos os casos. A insuficiência de oferta transitória configura uma redução temporária no consumo de alimentos num nível abaixo do aceitável, podendo ser atribuída a reduções na produção local ou no volume de importações. As opções geralmente utilizadas no seu combate são as reservas alimentares estratégicas, os mecanismos comerciais compensatórios e a ajuda alimentar. Já a insuficiência de oferta permanente indica que o consumo alimentar de grupos sócio-econômicos específicos é insuficiente mesmo em condições normais de oferta alimentar. Neste caso, a superação do problema exigiria, entre outras ações de caráter estrutural, a modificação das pautas de comércio de alimentos ou mesmo a elevação da produção nacional.

Desta ótica, um país garante a oferta interna de alimentos basicamente por meio das duas estratégicas. Por um lado, pode-se estimular a produção agrícola interna, a autosuficiência alimentar, pois muitos consideram menos vulnerável o país cujas importações de alimentos representarem uma pequena porcentagem de suas exportações. Por outro lado, como indica a noção de auto-capacidade alimentar, pode-se estimular uma produção doméstica que atenda parcialmente as necessidades do consumo interno, ao mesmo tempo em que se assegura a capacidade para importar, de modo a atender plenamente a demanda (SHETJMAN,1994).

Luna (1997, p.400) destaca a especificidade dos problemas de insegurança alimentar e nutricional enfrentados pelos países, de modo que não há uma resposta única para o seu enfrentamento.

Assim, nem a auto-suficiência alimentar é uma garantia absoluta das necessidades nutricionais de uma população, nem a exportação agrícola e o comércio internacional implicam em deterioração destas condições nutricionais.

Entretanto, o autor ressalta que a discussão sobre a garantia da oferta tem contribuído para a redução da fome e da desnutrição, mas não é suficiente para a sua eliminação. Os limites à sua efetividade estão relacionados com um aumento

excessivo na oferta, ao passo que a fome é um fenômeno de subconsumo. Mesmo que a produção e o consumo estejam vinculados, a relação entre ambos não é determinística. Produzir mais alimentos é importante, porém se o objetivo é eliminar a fome é necessário disponibilizar estes alimentos onde mais se fazem necessários, e é este o verdadeiro desafio. A segurança alimentar e nutricional implica não somente na produção de alimentos mas, sobretudo, na capacidade de um indivíduo de obtê-los (LUNA,1997).

Algumas observações finais envolvendo o debate em torno da auto-suficiência e oferta de alimentos merece nossa atenção. A primeira, mais evidente, relaciona-se á condição de insegurança alimentar e à contribuição na superação dessa insegurança, a partir da garantia de uma oferta regular e permanente de alimentos.

Perece suficiente, em termos gerais, compreender que, pelo menos potencialmente, a existência de uma oferta capaz de garantir o atendimento da demanda agregada de alimentos na sociedade é um elemento importante na superação da insegurança alimentar resultante de um quadro de restrições de acesso físico à comida por conta de indisponibilidade dela.

Esse aspecto, contudo, não dá de todo o problema quando a noção de segurança alimentar com a qual se trabalha, refere-se à garantia de acesso regular, permanente, de todos os alimentos, nas quantidades e com a qualidade necessária, para contribuir com o pleno desenvolvimento da pessoa humana.

Primeiro, porque o acesso aos alimentos, se realiza predominantemente no espaço dos mercados e, por conseguinte, há que pressupor a existência de renda nas mãos dos indivíduos de sorte a garantir-lhes o poder comprar tais alimentos. Isso explica a condenação de uma parcela significativa da população ao subconsumo com todas as implicações que isso provoca.

Menos óbvia do que essa restrição é a composição da oferta de alimentos. Esta pode, comprometer a condição de segurança alimentar e nutricional se apresentar-se, na forma de produtos alimentares tanto inseguros do ponto de vista da sua qualidade comprometida pelo uso de elementos nocivos à saúde (venenos, adubos químicos em excesso, componentes químicos duvidosos ou pouco conhecidos, adicionados nas formulações de produtos processados, e outros), quanto pela introdução de novos hábitos e práticas alimentares que contribuem para

destruir a cultura gastronômica dos povos, anulando identidades e alimentando modismos que ampliam dependências de padrões sob monopólio.

Sob esse enfoque, a noção de insegurança alimentar desfaz o cenário das restrições da renda no qual costuma ser ancorada e avança para um problema cada vez mais preocupante no mundo contemporâneo. Portanto, tão essencial quanto ter o que comer, é saber o que está sendo oferecido para as pessoas se alimentarem. Logo, a dimensão a ser assumida pela existência de uma oferta de alimentos regular, permanente e suficiente para atender à demanda agregada de alimentos na sociedade, impõe, para ser tomada como um dos conteúdos presentes na noção de segurança alimentar, que essa disponibilidade seja mediada tanto pela garantia de acesso quanto pela segurança do alimento.

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