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O OLHAR DE DEUS

No documento UM OLHAR NA OBRA DE SARAMAGO (páginas 96-99)

4 OLHARES EM O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO

4.2 O OLHAR DE DEUS

Outro olhar que chama a atenção é o olhar sobre Deus e o olhar de Deus. Em várias obras Saramago vem construindo (ou desconstruindo) uma imagem de Deus em que fica ressaltada uma primazia do homem sobre o divino. Na citação seguinte, Salma Ferraz demonstra que essa idéia já está presente em Levantado do chão:

...Deus no céu, como podes tu não ver estas coisas, estes homens e mulheres que tendo inventado um deus se esqueceram de lhe dar olhos, ou o fizeram de propósito, porque nenhum deus é digno do seu criador, e portanto não o deverá ver.

LC, pp. 220,221.

(...)

Na citação anterior, Deus é inventado, criado pela imaginação dos homens que esqueceram de dar olhos a este deus, e, assim, ele não pode enxergar o seu criador ou criadores, as mazelas daqueles que o criaram. O fato de Deus ser criado cego pode ter sido por esquecimento ou de propósito, uma vez que Deus não é digno do seu criador (O HOMEM) e, dessa maneira, não o deverá ver. A profanação é evidente, o homem é transformado em criador e Deus em mera criatura.

[FERRAZ, 1998, p. 28-29]

O que se observa nas imagens que se têm de Deus na obra de Saramago é que se está sempre demonstrando que Deus é fruto da necessidade humana, é inventado e ressalta-se a influência de sua imagem sobre os homens. A divindade é criada a fim de consolar, socorrer a humanidade de suas tragédias. Não obstante, verifica-se a continuidade desse sofrimento, então, o que está dito pelo narrador de Levantado do chão, e que é reiterado em outras obras entre elas o ESJC, é que Deus só pode ser cego pois não consegue ver o sofrimento humano e socorrer-nos, o que mostra um deus limitado em seus poderes, pois fruto da imaginação humana.

Mais que essa inversão entre criador e criatura ressaltada por Salma Ferraz, a imagem de um Deus cego se opõe à do Deus onipotente, onipresente do texto bíblico, e reitera a idéia de que a visão revela o mundo em que se deve interferir. No ESJC, Deus não se preocupa com o mundo, ou seja, não olha para o mundo, ele se recusa a ver, a compreender e salvar a humanidade. Seu interesse é apenas egoísta. No diálogo seguinte, entre Deus e Jesus, é explicado o porquê do destino de Jesus:

Desde há quatro mil e quatro anos que venho sendo deus dos judeus, gente de seu natural conflituosa e complicada (...) Estás, portanto, satisfeito, disse Jesus, Estou e não estou, ou melhor, estaria se não fosse este inquieto coração meu que todos os dias me diz Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de quatro mil anos de trabalho e preocupações, que os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e variados que sejam, jamais pagarão, continuas a ser o deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte diminuta do mundo que criaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu, meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta, por assim dizer vexatória evidência todos os dias diante dos olhos, Não criei nenhum mundo, não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a quê, A alargar a minha influência, a ser deus de muito mais gente, [SARAMAGO, 1994, p. 369-370]

A imagem de Deus que fica é de um deus ganancioso, preocupado com a própria imagem, que não quer a “vexatória evidência todos os dias diante dos olhos”.

Deus não tem diante de seus olhos a humanidade, mas a si mesmo. Se no Levantado do chão, é dito que Deus é cego, no ESJC Deus e o Diabo se assemelham:

Este é o Diabo, de quem falávamos há pouco. Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu que, tirando as barbas de Deus, eram como gémeos, é certo que o Diabo parecia mais novo, menos enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um engano por ele induzido. [SARAMAGO, 1994, p. 368]

Saramago não é piedoso com Deus: a satanização do Deus não ocorre apenas pelas suas atitudes, mas também por meio de sua imagem. Bem e mal se complementam24. Mas em seus pensamentos Jesus admite que seus olhos podem iludi-lo, o Diabo pode parecer mais novo apenas aos olhos de Jesus. Aqui admite-se uma questão importante: o que se vê nem sempre corresponde ao real, há algo invisível entre os nossos olhos e o objeto, que pode comprometer o reconhecimento do que se vê. Deus sabe da importância da imagem, por isso necessita da crucificação de Jesus, necessita que a humanidade tenha essa imagem:

24 Pode-se ressaltar o diálogo entre Deus e o diabo sobre Bem e Mal: Porque este bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim ,se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro.

[SARAMAGO, 1994, p. 392-393]

Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedade, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega. E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé. [SARAMAGO, 1994, p. 370]

E ainda:

A um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se possível infame, para que a atitude dos crentes se torne mais facilmente sensível, apaixonada, emotiva, Não estejas com rodeios, diz-me que morte será a minha, Dolorosa, infame, na cruz [SARAMAGO, 1994, p. 393]

No capítulo 3 desta dissertação ficou demonstrada a importância dessa imagem no romance. Cabe apenas acrescentar que o Deus do antigo Testamento é um Deus invisível, nesse evangelho de Jesus Cristo é dito da necessidade de sensibilizar a humanidade por meio de uma imagem. Além da imagem da crucificação, o personagem Jesus, nesse evangelho25, é marcado pelo olhar triste:

Jesus levantou-se, parecia que queria fugir, mas não deu mais que dois incertos passos, foram-se-lhe abaixo de repente as pernas, as mãos acudiram-lhe aos olhos para suster as lágrimas que rebentavam, pobre rapaz, ali enroscado e torcendo-se no pó como se sentisse uma infinita dor, eis que o vemos sofrendo o remorso daquilo que não fez, mas de que há-de ser, enquanto viva, ó insanável contradição, o primeiro culpado. Este rio de agónicas lágrimas, digamo-lo já, irá deixar para sempre nos olhos de Jesus uma marca de tristeza, um contínuo, húmido e desolado brilho, como se, em cada momento, tivesse acabado de chorar. [SARAMAGO, 1994, p. 223]

Esse mesmo olhar marcado por lágrimas é citado em outros momentos, como neste:

25 Importante ressaltar que Saramago está trabalhando com a imagem que se tem desses personagens não apenas presentes nos evangelhos, mas também com as imagens pictóricas. O olhar triste de Jesus é uma marca dessa iconografia.

Quatro anos, mesmo arrastados, podem não ser bastantes para sarar uma dor, mas, no geral, adormecem-na. Perguntara no Templo, refizera os caminhos da montanha com o rebanho do Diabo, encontrara Deus, dormira com Maria de Magdala, este homem que para cá vem não parece já sofrer, tirando aquela humidade dos olhos de que temos falado. [SARAMAGO, 1994, p. 291]

Cristo personifica a imagem do cordeiro que será levado ao sacrifício. No romance fica claro que essa é a imagem pretendida por Deus para o seu mártir, por isso, o Deus do ESJC é descrito como cruel26.

No documento UM OLHAR NA OBRA DE SARAMAGO (páginas 96-99)