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ROMANTISMO

No documento UM OLHAR NA OBRA DE SARAMAGO (páginas 43-46)

1 O OLHAR E A POÉTICA

1.3 ROMANTISMO

Tanto o Classicismo quanto o Barroco e o Arcadismo são movimentos artísticos em que a manifestação do convencionalismo estético clássico ainda é muito forte. Mas com o Romantismo, como é sabido, o cenário estético muda de forma radical.

Em literatura, a expressão do EU caracteriza a poesia desse período. Adquire destaque a figura do sujeito literário, que muitas vezes será confundido com o próprio autor das obras devido ao forte tom confessional. Embora se pretenda, sob essa idéia, uma inovação, não se repudiaram os princípios clássicos, mantendo-se alguns modelos tradicionais. Assim, são assimiladas e retomadas características da poesia tradicional (como a simplicidade dos temas), contudo elas são adaptadas a um tom confessional fruto de liberdades formais e de uma crescente afirmação da subjetividade.

1.3.1 Almeida Garrett

Para tratar de aspectos da lírica desse período, serão analisados alguns poemas de Folhas Caídas, obra da terceira fase de Almeida Garrett. Este autor romântico passeia, e muito bem, pelos gêneros literários: na épica, destaca-se o poema Camões; nos romances, há um novo modo de escrever sobre Portugal; no drama, é considerado o criador do teatro nacional, com obras como Frei Luís de Sousa, em que o passado é retomado para se pensar o presente; e, por fim, na lírica, predomina uma atitude de naturalidade e sensualidade até então jamais encontradas na poesia portuguesa.

Pode-se destacar alguns pontos em comum entre a obra de Camões e a de Garrett. Em Folhas Caídas, por exemplo, a dicotomia neoplatonismo e quotidiano está presente, conforme informa José-Augusto França:

Folhas Caídas abre com um poema-dedicatória, “Ignoto Deo”:

... a combatida

Existência aqui ponto, aqui votado Fica este livro – confissão sincera

Da alma que a ti voou e em ti só espera.

Que deus desconhecido é este? É Garrett quem responde à pergunta, em 1853: o seu deus não é um deus críptico, mas “aquele misterioso, oculto e não definido sentimento da alma que a leva à inspiração de uma felicidade ideal, o sonho de outro do poeta”. A deusa dos seus amores transformara-se numa divindade ideal:

o “mundo dos espíritos” sobrepusera-se ao “mundo dos corpos”. Encontramo-nos em face do problema, já aflorado, do neoplatonismo de Garrett1. O poeta apela, sem dúvida, para um ideal, e mesmo para uma essência primeira: “Ignoto Deo”, tal como o poema “Ela”, como “Às Minhas Asas”, recolhido em Flores sem Fruto, exprime uma vontade de elevação à pureza essencial. Não podemos porém, ignorar que esses momentos da vida espiritual de Garrett não passam de momentos e que, após a sua expressão, ele recai no abrasante quotidiano. Do ser do poeta só as cinzas restam:

“a cinza em que ardi”2. Esta dialéctica da elevação e da queda deve terminar com a morte. O segundo poema do livro intitula-se, precisamente, “Adeus”: um adeus mortal coroa o drama romântico, é-lhe, de facto, indispensável – adeus roído pelo remorso, espécie de mea culpa desesperada de um ser maldito que assume inteiramente a culpa. [FRANÇA, 1993, p. 120. Grifo meu.] Notas de José-Augusto França: 1Hernâni Cidade, artigo “Neoplatonismo”, in Dicionário das literaturas portuguesa, galega, e brasileira (Porto, 1960), pp. 536-537. 2 Garrett, Folhas Caídas. Ed. Obras Completas, I, 182.

Se na prosa e no drama de Garrett percebe-se claramente a imagem do poeta como ser isolado, exilado, nostálgico, na lírica isso se manifesta na forma de uma angústia existencial, decorrente em grande parte dessa dialética da elevação e da queda. Em Garrett, contudo, prevalece claramente a opção pela paixão menos de alma e mais de sensações – há o poema “Os cinco sentidos” em que o eu lírico demonstra que suas sensações voltam-se para a amada –, por isso utiliza, e muito, as sinestesias (Quem bebe, rosa, o perfume / Que de teu seio respira?14). Os olhos adquirem muita importância em seus poemas, pois a visão é o sentido privilegiado para expressar os sentimentos. Mas, o sujeito literário demonstra que, por vezes, há mais de um olhar, como no poema Quando eu sonhava:

Quando eu sonhava, era assim

14 GARRETT, Almeida. Folhas caídas. Lisboa : Ulisseia, 1998, p. 121.

Uma ideia, um pensamento, Um raio de estrela incerto No imenso firmamento, Uma quimera, um vão sonho, Eu sonhava – mas vivia:

Prazer não sabia o que era, Mas dor, não na conhecia...

...

[GARRETT, 1998, p. 106]

A linguagem não busca o convencionalismo, mas a naturalidade, a espontaneidade, o que está de acordo com a temática do poema, em que se rejeita a racionalidade (a idéia, o pensamento) e se busca o prazer. Embora haja duas maneiras diferenciadas de ver a amada (uma interior, idealizada – a do sonho; outra exterior – a “real”), em nenhum momento ela é retratada (Quando era vaga, / uma ideia, um pensamento, / um raio de estrela incerto..), não há uma imagem sendo apresentada; o que se apresenta é a angústia de um Eu, as suas sensações de dor e prazer que confirmam a sua existência, o momento presente (Agora que estou desperto), que a ausência da imagem no poema só intensifica. Idéia essa também presente no poema “Este inferno de amar”, do qual segue a última estrofe:

Só me lembra que um dia formoso Eu passei... dava o Sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam, Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? Eu que fiz? – Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei...

[GARRETT, 1998, p. 118. Grifo meu.]

Observa-se que na estrofe acima, o poeta relaciona o amar com o viver. E o olhar (em específico a troca de olhares) é o elemento desencadeador dessa vida. Da mesma forma, percebe-se a ausência da racionalidade nesse encontro dos amantes: Que fez ela? Eu que fiz? Não no sei.

Já que, de certa forma, vem-se buscando nesta dissertação o olhar como tópico dentro de uma tradição da literatura portuguesa, deve-se ressaltar o poema

“Seus olhos” também pertencente à Folhas Caídas:

Seus olhos – se eu sei pintar O que os meus olhos cegou – Não tinham luz de brilhar, Era chama de queimar;

E o fogo que o ateou Vivaz, eterno, divino, Como facho do Destino.

Divino, eterno! – e suave Ao mesmo tempo: mas grave E de tão fatal poder,

Que, um só momento que a vi, Nem ficou mais de meu ser, Senão a cinza em que ardi.

[GARRETT, 1998, p. 154]

Há uma ressonância das cantigas trovadorescas, nessa forma de expressar o amor a partir do momento em que se vê a amada. Na segunda estrofe, menciona-se o “poder” do amor que advém da mulher amada. Mas, deve-se ressaltar que o que lá era convencional, aqui, no Romantismo, há a liberdade para se optar por esta convenção.

Se em Garrett, a naturalidade e espontaneidade da linguagem, a força da expressão sentimental de um Eu apontam para uma identificação entre o poeta e o eu lírico, no século XX , Fernando Pessoa afirmará que a dor poética é fruto do fingimento.

No documento UM OLHAR NA OBRA DE SARAMAGO (páginas 43-46)