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2.1 Metalinguagem: a informática como tema

2.1.3 Um olhar sobre a identidade virtual

Quando o personagem Alcides Capella estranha a desenvoltura da sogra na informática, Mario Prata coloca em discussão outra característica trazida pela internet: a possibilidade de anonimato da web, do desprendimento que se dá entre a mensagem e o emissor. De maneira bem humorada, o autor expõe o problema da identidade causado pelas salas de bate-papo virtuais, que se tornaram um fenômeno de audiência no início da internet no Brasil: “Me disseram que tem lá um troço chamado chat que é pra isso mesmo. Para uma velhinha, como este exemplar que tenho aqui na minha frente, mentir que tem 20 anos, o peito da Feiticeira e a bundinha da Tiazinha” (PRATA, 2000a, p. 84).

Por essa passagem, mais uma vez vemos que o autor registrou na obra um hábito que fez parte do seu cotidiano durante os seis meses de escrita, fazendo alusões aos bate-papos abertos pelos internautas que acompanhavam Os anjos de Badaró e aparecem listados na dedicatória do livro impresso com seus nomes e respectivos nicknames. “Eles (leitores) começaram a bater-papo todo dia num chat. Aí entrei e vi que eles estavam falando de mim, claro, tudo fã. Achei ótimo aquilo, entrei com meu nome e falei ‘oi, pessoal, tô aqui’. Só que ninguém se manifestou, nada, silêncio. Aí chamei uma menina pro reservado e ela disse que eu era o quinto Mario Prata que entrava ali” (PRATA, informação verbal). Segundo o autor, ele precisou passar por uma bateria de testes para comprovar que ele realmente era o escritor Mario Prata.

Por se tratar de uma ferramenta de comunicação instantânea centrada exclusivamente no texto, o chat permitia a desvinculação do corpo em relação ao indivíduo, da aparência em relação às ideias e do mundo físico em relação ao virtual. “As duas características distintivas do mundo virtual em sentido mais amplo, são a imersão e a navegação por proximidade. Os indivíduos ou grupos participantes são imersos em um mundo virtual, ou seja, eles possuem

uma imagem de si mesmos e de sua situação.” (LÉVY, 2010, p. 75, grifo do autor).

Com esse desprendimento, as salas de bate-papo possibilitavam, através do texto, o encontro de pessoas desconhecidas ou não, distantes geograficamente ou não. Por meio de letras impessoais na tela, elas podiam se conhecer, descreverem-se ou até projetarem-se em caracteres como pessoas totalmente diferentes; remontando preocupações sobre a autoria surgidas nos primórdios da escrita21. O fenômeno virtual de poder assumir outra personalidade através da interface gráfica dos computadores recebeu o nome de avatar, cuja etimologia está ligada ao Avatarã da religião hindu, que se refere a encarnação das divindades no plano terreno. Segundo a pesquisadora Poliana Barbosa de Oliveira, foi a partir do romance Snow crash de Neal Stephenson que o termo se difundiu no meio digital, sendo utilizado para atribuir a presença do indivíduo no ambiente virtual:

“Não sendo exatamente o usuário, o avatar é, contudo, uma manifestação do usuário; ou talvez, melhor dizendo, uma virtualização do usuário. Desse modo, o usuário pode assumir uma representação completamente diferente de sua forma física (o que pode ser desde transformações simples, como modificar o corte de cabelo, passando por uma mudança de etnia, por uma “cartunização”, até chegar em mudanças mais drásticas, como a representação por meio de uma criatura mitológica ou mesmo como uma pintura abstrata), e mesmo assim manifestar uma parte significativa do seu “eu” através da forma assumida.” (OLIVEIRA, 2011, pp. 83-84)

É preciso lembrar também que no início do século XXI o recurso da webcam ainda era restrito, os softwares de bate-papo (mIRC e ICQ) não traziam a opção de inserir fotos no perfil, as redes sociais ainda não existiam, a propagação de imagens pela rede não atingira as proporções atuais com a popularização das câmeras digitais e as conexões à internet eram bem mais lentas, nos primórdios do serviço de banda larga no Brasil, o que inviabilizava a transferência de arquivos mais pesados. Com a inversão desse cenário, os avatares deixam de ser imposições e as novas ferramentas virtuais incentivam a queda das máscaras, facilitando a postagem de fotografias e a criação de perfis com teor verídico.

21 Ao mesmo tempo, como a dinâmica dos chats exigia uma agilidade que mais se aproximava da comunicação

oral do que da escrita, logo os usuários passaram a transformar as signos escritos, estabelecendo convenções como a abreviação de expressões (vc ao invés de você), substituições gráficas sem alterações na sonoridade (do k em vez do qu) e o recurso que ficou conhecido como emotions, adoção de símbolos para expressar sentimentos e movimentos faciais como alegria =) , amor <3 ou piscadelas ;) .

Essas mudanças, segundo a pesquisadora de cultura contemporânea Paula Sibilia, trazem como consequência o desvio no interesse pela vida de figuras ilustres para o cotidiano de pessoas comuns. Outra alteração é em relação ao eixo do público e privado, com o alargamento da faixa para o acesso à intimidade (SIBILIA, 2008, p. 34). Aos poucos, usuários criativos e estranhos da rede começaram a se destacar, logo sendo alçados a celebridades do ambiente digital, conferindo aos perfis das redes sociais (como Twitter e Facebook) valor de capital social, medido pelo número de seguidores e sua capacidade de influenciar comportamentos e o consumo de bens culturais.

Em 2000, contudo, a situação era diferente e o uso de nicknames era uma prática recorrente, um fenômeno que abria novas experiências para a comunicação interpessoal. Tanto que, um ano depois, Mario Prata retorna ao tema na crônica Minhas letras, presente no livro Minhas tudo, obra posterior a Os anjos de Badaró:

“Apaixona-se, hoje em dia, pelo texto. Via internet. Via cabo, literalmente. [...] Sim, pela primeira vez nesta nossa humanidade já tão velhinha, as pessoas estão se conhecendo primeiramente pela palavra escrita. E lida, é claro. [...] A relação, o namoro, começa ali no monitor. Você pode passar algumas horas, dias e até semanas sem saber nada da outra pessoa. Só conhece o texto dela. E é com o texto que vai se fazendo o charme. Você ainda não sabe se a pessoa é bonita ou feia, gorda ou magra, jovem ou velha. E, se não for esperto, nem se é homem ou mulher. (PRATA, 2001, p. 14-15)

O conceito é retomado como estratégia narrativa pelo autor em pelo menos outras duas obras. A possibilidade de anonimato vira a fonte de mistério que move a investigação policial do romance Os Viúvos (2010), quando o detetive Ugo Fioravanti passa a receber e-mails assinados pelas iniciais E. R. N. E em Purgatório, o protagonista Dante encara como uma brincadeira de mau gosto as mensagens recebidas por correio eletrônico e via chat da sua paixão Beatriz, que havia falecido num desastre de avião.

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