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O olhar teórico do sistema de justiça sobre a violência contra as mulheres

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2 O PODER JUDICIÁRIO E A LEI MARIA DA PENHA

2.4 O olhar teórico do sistema de justiça sobre a violência contra as mulheres

Os estudos sobre os temas violência contra as mulheres, gênero e sistema de

justiça criminal ganharam espaço na academia brasileira, com várias perspectivas

metodológicas em uma tentativa de compreender o fenômeno (ARAÚJO; MATTIOLI, 2004, p. 9). Neste trabalho, não se pretende fazer uma análise exaustiva da produção acadêmica, produzida a partir da década de 1970, sobre a relação entre as categorias. Ao contrário, o objetivo deste trabalho é refletir sobre o desenvolvimento destes estudos até chegar o momento atual. Para tanto adotar-se-á a classificação feita por Heilborn e Sorj (1999, p. 211- 212):

Podemos agrupar os trabalhos arrolados em três linhas. Um primeiro grupo orienta- se para o modo como a justiça opera nos casos em que a classificação violência contra a mulher pode ser acionada. (...) Um segundo conjunto de pesquisas diz respeito às representações femininas acerca da violência. (...) Finalmente, um terceiro núcleo de trabalhos enfoca as agências que atuam nesse campo, seja as organizações não governamentais – os já extintos SOS Violência – ou as delegacias de polícia e equipamentos sociais pertinentes como os abrigos.

Em relação ao primeiro grupo, as práticas feministas da década de 1980 inspiraram estudos sobre os temas violência, gênero e justiça. O livro Morte em família:

representação jurídica de papéis sexuais, escrito pela antropóloga Mariza Côrrea, em 1975,

mas publicado em 1983, é uma importante referência bibliográfica sobre o assunto, cujo objetivo, segundo a autora (1983, p. 15), foi o de “entender um pouco melhor as maneiras como nossa sociedade define as mulheres e delimita o lugar que lhes cabe em nossa estrutura social”.

Ao estudar os processos de homicídio (e tentativas de) envolvendo casais, ocorridos nos anos de 1952 a 1972, na cidade de Campinas, Estado de São Paulo, Côrrea

(1983) observou como os juízes e os jurados, promotores e advogados, atuavam na construção de papéis sexuais, atitudes que reforçavam a desigualdade de gênero.

O julgamento dos casos (condenação ou absolvição) estava atrelado ao juízo que se fazia quanto à adequação ou inadequação dos comportamentos do réu e da vítima às performances pré-estabelecidas a eles pela sociedade, ou seja, ao homem cabia o papel de trabalhador e bom provedor, e à mulher, o papel de boa esposa e mãe. A violência praticada encontrava-se, assim, justificada pelo fracasso do desempenho destes papéis. Nas decisões judiciais, analisavam-se as condutas morais do casal em detrimento da análise do crime ocorrido, enquadrado no CP. Sobre o assunto, Heilborn e Sorj (1999, p. 211) destaca que:

Mariza Côrrea representa o eco inaugural que poderia ter na academia a discussão empreendida no meio feminista. Procedendo a uma leitura de processos judiciais de homicídios (e tentativas de) ocorridos em Campinas (SP), a autora demonstra como a igualdade legal entre homens e mulheres é dissolvida pela preeminência da lógica de gênero nos julgamentos dos crimes. A análise da justiça permite elucidar a maneira complexa pela qual as classificações de gênero podem atuar no benefício ou no agravamento de sua avaliação moral, segundo a tipologia do crime.

Por outro lado, embora não existam pesquisas que tratem acerca das representações femininas sobre o fenômeno da violência contra a mulher, Heilborn e Sorj (1999, p. 211-212) afirmam que a questão defendida pela segunda corrente diz respeito “a cumplicidade da mulher para com a violência ou vitimização”. Isto significa que os estudos produzidos tiveram por objetivo desnaturalizar a violência ocorrida em âmbito doméstico, “ocorrendo um gradativo afastamento das formulações acadêmicas das militantes no sentido de salientar a não universalidade de uma experiência feminina diante das agressões masculinas”.

Em outro polo de discussão (terceiro grupo), têm-se as conclusões de Maria Filomena Gregori apostas em seu livro Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações

violentas e a prática feminista, de 1993, fruto de uma pesquisa realizada no SOS Mulher entre

os anos de 1982 a 1993, na cidade de São Paulo. Neste trabalho, a autora teve dois focos: 1) avaliar o atendimento do SOS Mulher e; 2) analisar as falas de mulheres sobre a violência sofrida pelos seus parceiros.

Santos (2010) explica que o SOS Mulher de São Paulo foi fundado com o objetivo de fornecer assistência social, psicológica e jurídica às mulheres que se encontravam em situação de violência doméstica. No ano de 1981, segundo Santos (2008, p. 6), 1.500 atendimentos de mulheres foram realizados, aproximadamente, no interregno de dois anos de

funcionamento. A autora esclarece, ainda, que a maioria das mulheres procuravam o SOS Mulher para se queixarem da violência conjugal praticada por seus parceiros íntimos, além da humilhação que elas sofriam ao tentar prestar queixas nas Delegacias de Polícia, pois estes órgãos eram lotados, predominantemente, por policiais do sexo masculino.

Ao comentar o trabalho de Gregori, Celmer (2010, p. 81) aduz que:

O trabalho de Maria Filomena Gregori, intitulado Cenas e Queixas, foi publicado nos anos 90. A autora, baseando-se em sua experiência como observadora e participante do SOS-Mulher de São Paulo, entre fevereiro de 1982 e julho de 1983, identificou e analisou as contradições entre as práticas e os discursos feministas na área de violência conjugal, bem como os depoimentos das mulheres que sofreram violência. (...) Gregori observou que, (...) as mulheres atendidas pelo SOS-Mulher não buscavam, necessariamente, a separação de seus parceiros.

Observa-se, então, que conferir visibilidade e criar políticas de combate à violência contra a mulher sempre foi um dos pontos levantados pelo movimento feminista (BANDEIRA, ALMEIDA, 2004).

Em que pese o trabalho do movimento feminista em prol do enfrentamento e combate à este fenômeno social desde a década de 1970, percebe-se que o sistema de justiça ainda realiza interpretações eivadas com preconceito acerca das mulheres que se encontram em situação de violência, em face da ideologia patriarcal que insiste em predominar em nosso sociedade ao invés de reconhecê-las como detentoras de direitos, conforme preceito constitucional.

No próximo capítulo, será analisado o tratamento dado pelos desembargadores da Seção Criminal, integrantes do TJGO, aos incidentes de conflito de competência instaurados pelos juízos de primeiro grau. Apresentar-se-á, também, as análises quanti-qualitativa dos resultados obtidos.

3 O TRATAMENTO DADO PELO PODER JUDICIÁRIO GOIANO SOBRE A

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