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Parte I – Pressupostos teóricos

Capítulo 1 – Os caminhos da pobreza no capitalismo contemporâneo

1.1. Olhares sobre a pobreza: da conceituação à medição

O estudo da pobreza toma diferentes e tortuosos caminhos a depender das influências teórico-metodológicas utilizadas. São diferentes pela diversidade de leituras

existentes e das classificações daí decorrentes. E também tortuosos pelo fato de tornarem-se, em muitos casos, mais falseadores que propriamente reveladores da realidade. A crítica a tais concepções não advém apenas de preciosismo acadêmico ou simples posicionamento político; as diferentes concepções e medições da pobreza podem, em grande parte dos casos, deturpar as ações para seu enfrentamento, limitar resultados e, o que é mais grave, restringir o acesso de grande parte dos pobres as já limitadas ações de combate à pobreza, visto que há uma íntima relação entre as concepções de pobreza e as estratégias de enfrentamento adotadas em diferentes períodos históricos. Em outras palavras, diferentes explicações e concepções resultam igualmente em diferentes respostas políticas (Alcock, 2008).

Ademais, embora travestidas de rigor e neutralidade científica, a definição de pobreza envolve sempre um julgamento social, por vezes moral, que reflete o contexto histórico e social em que são produzidas representações sobre quais sejam as necessidades de um indivíduo. Além disso, retratam escolhas políticas – a maioria influenciada por interesses das classes dominantes, hegemônicas nos meios oficiais de produção de conhecimento, em especial dos organismos internacionais que, na atualidade, assumem papel central na definição local das políticas sociais e econômicas. Nas palavras de Ridge e Wright (2008), “defining poverty is not just a scientific

mensure but also a political act”16

(p. 3).

Sem a pretensão de resgatar todos os estudos e teorias a respeito do tema, tarefa já devidamente cumprida pela literatura disponível17, mas com o intuito de demarcar o

16Tradução livre: definindo pobreza não apenas como medida científica, mas um ato político”.

17 Yasbek (2012) indica três conjuntos de pontos de vistas aos quais se vinculam as abordagens conceituais sobre a pobreza. O primeiro refere-se às análises empreendidas a partir de determinados fundamentos teórico-metodológicos, como os positivistas (funcionalistas e estruturalistas) e marxistas.

terreno conceitual necessário a delimitar o posicionamento aqui assumido, recorrer-se-á a apresentação de alguns movimentos teóricos que marcam o campo em análise.

Inicialmente, destaca-se o conjunto de concepções advindas da construção de indicadores que definem, no conjunto da população, quais indivíduos ou famílias devem ser considerados pobres. Portanto, parte-se de uma compreensão relativamente simples de pobreza, qual seja aquela situação em que uma pessoa ou família não tem condições de viver segundo padrões socialmente estabelecidos em um dado período histórico (Stotz, 2005). Deste conjunto, destacar-se-ão três problemas ou limitações teórico- metodológicas, a saber: medição versus concepção, limites da análise e problemas metodológicos internos às medições.

Sobre o primeiro, entende-se que o fato de, por meio da construção de dezenas de indicadores, definir que determinado estrato da população encontra-se em condição de pobreza ou pobreza extrema, não significa a construção de um campo conceitual em que sejam consideradas suas determinações e vinculações com outros fenômenos sociais. De forma simples, significa responder apenas à questão de quem são os pobres, deixando de lado outras mais importantes em que se questiona como a pobreza é produzida, quais os seus determinantes, como a pobreza se apresenta e suas implicações no cotidiano das populações que a vivenciam.

Assim, ao reduzir as respostas sobre a pobreza à definição de quem são os pobres, evidencia o segundo problema concernente aos limites da análise, pois ao retirar

Em seguida, as concepções decorrentes do desenvolvimento histórico, social e político da sociedade capitalista com relação aos princípios que regem o Estado Liberal e o Estado Social. E, por último, e não menos importante, as definições formuladas a partir de indicadores regidos por medidas monetárias ou, mais recentemente, as chamadas multidimensionais, que incluem o acesso a determinadas condições que afetam o bem-estar dos indivíduos.

do conceito o seu potencial explicativo, naturaliza-se o fenômeno da pobreza, uma vez que pouco interessa como ela é produzida e reproduzida no cotidiano da sociedade.

A medição assume o lugar privilegiado de análise, empobrecendo o espectro de compreensão da realidade e limitando as ações de enfrentamento à questão. Conforme Ribeiro (2005), os estudos apoiados em técnicas estritamente quantitativas sobre a pobreza retiram de cena as análises históricas das relações sociais de produção e também o contexto social que permitiriam a compreensão das singularidades assumidas pelo fenômeno.

Por último, têm-se os problemas resultantes do próprio processo de construção dos indicadores18. Por utilizar diferentes parâmetros acerca do nível de renda necessário para sobrevivência ou de quais os itens ou serviços essenciais para viver em condição digna, existem medidas diferentes e mesmo conflitantes para definição da pobreza. De acordo com Schwartzman (2004), dependendo do tipo de estudo, os números de pobres e indigentes no Brasil podem variar de 8 a 64 milhões. Essa diversidade tem como consequência a existência de dados diferentes e, até mesmo, incompatíveis, acerca da pobreza. Aliado a isso, verifica-se que a redução da maioria dos indicadores à questão da renda não permite uma aproximação maior das reais condições de vida da população, visto que um mesmo nível de renda pode significar condições de vida diferentes (Barros, Henriques, & Mendonça, 2001; Troyano, Hoffmann, & Ferreira, 1990), além de não abarcar a medição da renda não monetária advinda, por exemplo, de ajudas

18

A maioria das medições sobre pobreza toma como referência os conceitos de pobreza absoluta e pobreza relativa. O primeiro refere-se à incapacidade de indivíduos ou famílias em acessar os meios necessários para a sobrevivência. Já a relativa classifica aqueles que estão com um nível baixo de rendimentos em relação à sociedade em que vivem (Alcock, 2008; Schwartzman, 2004).

familiares ou auxílios governamentais, que representa boa parte da sobrevivência das famílias pobres (Schwartzman, 2004; Soares, 2001).

Como alternativa surgem, mais recentemente, estudos denominados de multidimensionais que integram outros elementos, de forma a ampliar a sua compreensão para além da insuficiência de renda. Neste sentido, um teórico de destaque é Amartya Sen, que articula o termo pobreza ao de capacidades envolvendo a liberdade individual de exercício e busca de direito, além da busca e análise das diferentes formas de acesso e distribuição de bens e recursos (Kerstenetzky, 2000).

As concepções multidimensionais têm influenciado os institutos de pesquisas e os organismos internacionais que passam a adotar critérios mais amplos de medição da pobreza, como o IDH ou, mais recentemente, o IPM – ambos já definidos acima. O problema é que tais concepções, embora travestidas de novidade ou de alternativas para uma compreensão analítica mais ampla da pobreza, acabam por servir a uma lógica extremamente restritiva e residual de trato à pobreza.

É sabido, por exemplo, que o BM, em conjunto com o Fundo Monetário Internacional (FMI), tem sido um dos principais formuladores dos receituários econômicos e políticos a que estão submetidos os chamados países periféricos. Pois

bem, a partir dos anos 2000, o BM passa a utilizar a noção de “privação de capacidades”

de Amartya Sen para embasar seu receituário de práticas contra a pobreza. Segundo Ugá (2004), o BM tem pautado suas ações em uma concepção que divide e classifica os pobres entre competitivos e incapazes. Os primeiros, embora possam estar temporariamente fora do mercado de trabalho, têm capacidade (capital humano) para uma reinserção rápida, sem o auxílio do Estado. Somente os incapazes devem ser alvo temporário do Estado, pois precisam adquirir competitividade para a inserção no mercado.

Em outros termos, o Estado deve focar sua atenção somente naqueles indivíduos que, incapazes, não conseguem galgar seu espaço na sociedade. Para eles será ofertada a oportunidade de desenvolver suas capacidades, o que permitirá ampliar a sua liberdade. Em um processo natural, o aumento da capacidade e a liberdade individual promoverá o bem-estar coletivo (Mauriel, 2011; Ugá 2004). É o velho liberalismo de mercado, que ganha força com o Estado mínimo do neoliberalismo, travestido de nova teoria social19.

Nesses termos, a questão continua sendo tratada de forma desvinculada dos seus determinantes políticos e estruturais. Mesmo que implicitamente, a pobreza é explicada prioritariamente como fenômeno natural no sistema social vigente, determinada por questões de cunho individual e relacionada às capacidades e habilidades pessoais. Os pobres são culpados por sua condição, uma vez que não conseguem se adequar às novas necessidades sociais e de mercado. Daí provém tanto o processo de criminalização da pobreza20, quanto os programas assistenciais focalizados de combate à pobreza (Oliveira, 2010).

Assim, o problema não reside somente em considerar a renda ou dimensões específicas relacionadas como fatores principais de definição, mas tratar a pobreza como entidade isolada da forma de estruturação das sociedades. O que parece estar subjacente é a impossibilidade de se tomar a pobreza como um fenômeno único, fechado e separado da realidade social contemporânea. Dessa forma, propõe-se entender

19 Os ideários liberal e neoliberal serão discutidos no Capítulo 2, bem como a forma como influenciaram

e influenciam as políticas de combate à pobreza.

20 O tema da “criminalização da pobreza” advém dos estudos de Louis Wacquant em que o “Estado

Penal” sobrepõe-se ao “Estado do Bem-Estar Social”, a partir de uma repressão generalizada sobre as “classes perigosas” compostas fundamentalmente pelos pobres, “desempregados estruturais” e

a pobreza como totalidade histórica, em que é impossível separá-la das suas condições de produção e que se articula com a forma de organização societária vigente.

1.2. Pobreza e “questão social”: novas facetas e velhos dilemas na sociedade