• Nenhum resultado encontrado

2.2 Outros buscadores da literatura ocidental

2.2.3 Oliveira e André

Ao narrar Nadja, André pretende alcançar um livro “escancarado com uma porta” (p. 143). A aleatoriedade dos fatos narrados, o recurso a outras formas não- verbais de narração (fotografias, desenhos...) e o registro de fatos sem relação com a trama e sem explicações fazem com que a obra atenda ao propósito de Breton, manifestado na nota introdutória da edição de 1962: a obediência a imperativos “antiliterários” (p. 19).

Mas por que essa revolta contra a literatura, a pretensão de escrever antiliteratura? Além de questionar as formas usuais da arte, o que, como diz Etienne referindo-se a Morelli, é coisa corrente em todo bom artista (99:364), André, como também Oliveira, entende que a escrita é um meio privilegiado para a busca de

compreensão de si mesmo pelo escritor. Se não aceita a identidade que lhe é conferida pelos mecanismos de coerção social, também não aceita uma literatura valorizada por essa mesma sociedade.

Isso fica evidente nos três primeiros blocos de texto (separados por breves espaços) da primeira parte de Nadja. No primeiro, a questão da identidade; no segundo, a literatura; no terceiro, o problema da narrativa. Se é imprudente, por um lado, buscar estabelecer uma lógica entre partes de um romance que deliberadamente se deixa governar pelo acaso, não deixa de ser interessante, por outro, perceber como a sequência ratifica esta proposição: a narrativa literária não tem outra meta senão a de servir de instrumento para a busca (em última instância, como diz Cortázar, extraliterária) do escritor.

A pergunta inicial do romance, “Quem sou?”47, faz o narrador reconhecer uma distinção naquilo que se pode considerar sua existência individual: as manifestações objetivas, submetidas às contingências de tempo e lugar, ligadas à delimitação de uma personalidade pelas relações estabelecidas com outras personalidades (“com quem ando”), não passam de um “fantasma”, uma formulação imaginária que se superpõe a um campo desconhecido; para que este seja alcançado, é preciso desconsiderar as manifestações contingenciais, ou “aquilo que eu deveria deixar de ser para ser quem sou” (p. 21). Há um movimento de retorno, portanto, que recusa uma visão superficial de si mesmo, tomada como falsa, em favor de um eu situado num plano de anterioridade. Este eu é buscado contra todo tipo de demarcação social, que lhe é exterior: “o importante é que as atitudes particulares que descubro lentamente aqui no mundo não me distraem em nada da busca de uma atitude mais geral, que me seria própria, e não concedida a mim” (p. 22); mas não passa, ainda, de uma postulação, uma meta. Como buscá-lo?

O segundo bloco de texto parece responder à questão. A arte e, mais particularmente, a literatura, é um caminho possível; um certo tipo de literatura, é verdade: aquela que não tem preocupação com a “fabulação romanesca” e a descrição psicológica dos personagens, mas que é um registro das sensibilidades do autor, que, transparentemente, mostra como ele se deixa surpreender pelo espetáculo das coisas. São os “livros escancarados”, que não se preocupam em

descrever (e assim formular, e assim falsear) recortes da realidade, mas apenas em deixar-se sensibilizar por suas manifestações:

De minha parte, continuarei a habitar minha casa de vidro, de onde se pode ver a todo instante quem vem me visitar, onde tudo o que está pendurado no teto ou nas paredes se sustém como que por encanto, onde repouso à noite, sobre um leito de vidro com lençóis de vidro, onde quem eu sou me aparecerá cedo ou tarde, gravado a diamante (p. 26).

Por isso, para André, a leitura de um texto literário deve ter “um objetivo menos inútil que o da revisão puramente mecânica das ideias”; em vez disso, deve buscar as “exterioridades da obra, ali onde a pessoa do autor, exposta aos fatos banais da vida cotidiana, se expressa com toda a independência” (p. 22-23). Servindo-se de exemplos da vida de artistas como Victor Hugo, Flaubert, De Chirico e Huysmans, dentre outros, André exemplifica esta sua posição: é mais importante a disposição do espírito em relação a certas coisas do que as disposições destas para o espírito; entendemos: mais importante do que a formulação de raciocínios, ideias e descrições, ou seja, a maneira como o pensamento organiza a realidade, é a abertura do espírito à manifestação pura, inexplicável, espetacular das coisas, ou seja, uma sensibilidade atenta e isenta de preconceitos. Essa última é capaz de se deixar governar pelo acaso, de perceber coisas que uma formulação racional fechada não é capaz de compreender, de atender a “essas formulações perpétuas que parecem vir de fora e nos imobilizam por alguns instantes diante de um desses arranjos fortuitos, de caráter mais ou menos novo, cujo segredo parece que encontraríamos em nós mesmos, se nos indagássemos devidamente” (p. 26). Assim se vão dando os passos de retorno em direção daquele eu, que, na forma como reflete a surpresa constante do mundo, pode vir a surpreender-se diante de si próprio.

Tal estado de surpresa será buscado também no processo da narrativa. No terceiro bloco de texto da parte inicial do romance André declara que tem a intenção de narrar episódios de sua vida tal como pode concebê-la “fora de seu plano orgânico” (p. 27), ou seja, aqueles eventos que não correspondem ao “fantasma” de si mesmo, e que, no mundo das aproximações inusitadas, das coincidências reveladoras ao espírito sensível, dos “acordes batidos tal como no piano” (p. 27), fazem ver, embora de maneira rápida o bastante para não permitirem definições. Entre estes fatos se pode ainda estabelecer uma distinção: aqueles que

se dão em circunstâncias discerníveis e que têm consequências previsíveis e aqueles dos quais o próprio narrador-observador não é mais do que testemunha assombrada; os primeiros se equiparam, analogicamente, com o texto premeditado, “maduramente refletido” (p. 28), enquanto os outros são comparáveis ao “texto automático”, este último muito mais adequado ao estado de fascinação e liberdade (p. 28).

A partir daí, André começa a narrar a série de acasos, que considera extraordinários, que se passaram consigo: acontecimentos insólitos, coincidências perturbadoras, experiências no cinema e no teatro, até chegar ao maior e mais importante deles, a aparição de Nadja. A narração, surrealista, acontece “sem ordem preestabelecida” e “conforme o capricho da hora” (p. 29), ou seja, de acordo com o segundo tipo de texto citado acima. Toda a escritura do livro, acreditamos ser válido insistir, não visa a outra coisa senão a responder a sua pergunta inicial.

Não é difícil perceber, pelo exposto desde o início deste capítulo, os diversos pontos de contato entre as preocupações de André e de Oliveira. Embora as respostas não sejam exatamente coincidentes, as questões, e sobretudo, a íntima relação entre as questões sobre identidade, literatura e narrativa, realidade e arte, são muito próximas. Oliveira muitas vezes apresenta comportamento e ordem narrativa tipicamente surrealistas. Lembre-se apenas de alguns exemplos: a desconfiança nas coincidências (“Lo que vos llamás coincidencia... 29:149), a constatação de que a identidade oferecida pelo confronto interpessoal é ilusória (cuántas veces la ilusión de la identidad con los camaradas nos hizo felices – 78:322); o acatamento das manifestações insólitas, mesmo que insignificantes, das coisas (“sé lo que es eso porque también obedezco a esas señales” – 1:15); os flertes voluntários com a loucura (“Estás loco, Horacio. Estás estúpidamente loco,

porque se te da la gana” – 31:155); a adesão à proposta morelliana de narrar

apenas fragmentos isolados, episódios, sem preocupar-se com uma organicidade, deixando que o acaso traga à luz, talvez, a realidade aspirada pela narrativa (Leyendo el libro, se tenía por momentos la impresión de que Morelli había esperado

que la acumulación de fragmentos cristalizara bruscamente en uma realidad total –

Oliveira é um leitor. E dentre tanta bagagem artístico-cultural tem lugar privilegiado o surrealismo48. Muito de seu inconformismo ecoa o grito já lançado

pelos surrealistas, como se lê no Segundo Manifesto: a rejeição de que são possíveis apenas as coisas que “existem”, e afirmação de que por meio destas se pode chegar àquilo que antes “não existia”; a denúncia da “baixeza do pensamento ocidental”; a insurreição contra a lógica; a valorização dos sonhos; a esperança de que um dia “se dará cabo do tempo” e, sobretudo, a intolerância a qualquer “aparelho de conservação social”, sobretudo às “ideias de família, de pátria e de

religião” (BRETON, 2001, p. 157-158).

Mas a adesão de Oliveira/Cortázar ao surrealismo não é total: embora haja uma grande coincidência de temas, reprova-se o movimento e, acima de tudo, a grande confiança que os surrealistas depositam na linguagem49. Etienne, assim como Oliveira, concorda com a crença dos surrealistas de que a linguagem e a realidade verdadeiras estavam censuradas pela estrutura racionalista e burguesa do Ocidente (99:363), mas Oliveira discorda de que essa realidade seja uma meta, o fim de uma evolução ou o produto de uma revolução. Em vez disso, pensa que essa realidade já está aí, basta ser capaz de estender a mão para alcançá-la (99:366). Ademais, não se trata apenas de modificar a relação com as palavras, mas de lançar em dúvida a própria possibilidade de as palavras servirem perfeitamente de meio de contato com a realidade buscada. Por isso, “no se trata de sustituir la

sintaxis por la escritura automática o cualquier outro truco al uso” (99:367), mas de

transgredir, como o queria Morelli, o fato literário total. Etinenne parece explicitar ainda mais claramente a crítica:

No se trata de una empresa de liberación verbal – dijo Etienne –. […] Los surrealistas se colgaron de la palabra en vez de despegarse brutalmente de ellas, como quisiera hacer Morelli desde la palabra misma. Fanáticos del verbo en estado puro, pitonisos frenéticos, aceptaron cualquier cosa mientras no pareciera excesivamente gramatical. Nos sospecharon bastante que la creación de todo un lenguaje, auque termine traicionando su sentido, muestra

48 “[…] estoy yo un argentino afrancesado (horror horror), ya fuera de la moda adolescente, del cool, con en elas manos anacrónicamente Etes-vous fous? de René Crevel, con en la memoria todo el surrealismo, con el la pelvis el signo de Antonin Artaud, con en las orejas las Ionisations de Edgar Varèse, con en los ojos Picasso (pero parece que yo soy un Mondrian, me lo han dicho).” (21:85) 49 De fato, no Segundo Manifesto do Surrealismo, Breton afirma, falando sobre o problema da ação social e da revolução comunista, que a grande questão do surrealismo é “o problema da expressão humana em todas as suas formas”. E acrescenta: “Quem diz expressão diz linguagem, para começar. Ninguém haverá, pois, de se admirar com ver o surrealismo situar-se, antes de tudo, quase unicamente no plano da linguagem; nem tampouco, de que na volta de qualquer incursão, a ele retorne como que pelo prazer de ali sentir-se em terra já conquistada” (2001, p. 182).

irrefutablemente la estructura humana, sea la de un chino o de un piel roja” (99:363).

Não basta, portanto, promover uma alteração, por maior que seja, no uso da linguagem. É preciso que o homem busque compreender-se de outra forma, e assim compreender também de outra forma (entender e abarcar) o mundo: para Oliveira, essa forma seria imediata, sem se deixar seduzir pelos significados pré- definidos da língua. Poder-se-ia dizer, portanto, que a questão inicial de Nadja é, para Oliveira, muito justa; o caminho de resposta, a aposta de todas as fichas na reorganização, ao azar, da língua, embora importante, é ainda insuficiente. Oliveira, contudo, não consegue avançar muito: desconfia da organização das palavras, que tendem a se ajustar por si próprias, ritmicamente, e não adere (pelo menos não totalmente) ao método da escrita automática. Mas escreve. Amaldiçoa seu principal recurso para a busca, a língua, mas não pode prescindir dele.

Há ainda outro ponto que merece destaque: a relação de André e de Oliveira com o trabalho. André fala enfaticamente contra o “valor moral do trabalho”. É capaz de aceitá-lo como necessidade material, mas não como proporcionador de dignidade ou sentido para a vida humana: “O acontecimento que cada um de nós está no direito de esperar que seja a revelação do sentido de sua própria vida, acontecimento que eu talvez ainda não tenha encontrado, mas no caminho do qual me procuro, não virá ao preço do trabalho” (p. 62). O trabalho opõe-se à busca, na verdade, uma vez que pode ser um empecilho grave à liberdade.

Oliveira não discursa contra o trabalho, mas a rejeição aparece em sua prática. Em Paris, há rápidas referências a um trabalho informal que ele prestaria a um velho contador, mas o ócio constante em que ele vive parece refutar a ideia de que esteja disposto a viver a rotina de um emprego. Em Buenos Aires, vende alguns cortes de tecido, depois trabalha no circo e no manicômio, mas sem envolver-se demasiado nisso; pelo contrário, o faz sem responsabilidade. O trabalho é uma imposição necessária para a sobrevivência, nunca uma meta ou um caminho. Aliás, Oliveira fala com desdém de pessoas que têm um emprego estável ou preocupam- se com uma carreira profissional. O ambiente de Rayuela, por fim, confirma isso: os personagens, em sua grande maioria, sempre conversam, bebem, ouvem música, andam pelas ruas, raramente trabalham. Não se sabe ao certo de que vivem. No máximo, são artistas.

Isso está intimamente ligado ao inconformismo de ambas as obras: o trabalho é uma servidão, uma coerção sobre o indivíduo e uma das principais formas de rotulação social. Muito comumente a identidade de uma pessoa é definida por sua profissão: não ter uma profissão, então, é o passo inicial para repensar o lugar do homem no mundo, a possibilidade de seu ser anterior à sua contingência. E não se trata apenas da forma como o trabalho é distribuído na sociedade capitalista: trabalhar é, em qualquer sistema, submeter-se. É uma servidão ao qual o homem está condenado: o que faz o homem livre não é, conforme diz Breton, o aceitamento da pena, mas “a veemência do protesto” (p. 68).

Essa mesma posição, no caso de Cortázar, é válida para a literatura: esta nunca poderá ser um trabalho. Já na Teoria do túnel Cortázar denuncia o “escritor profissional” ou “vocacional” ou, ainda, “conformista” em favor do “escritor rebelde” ou “agressivo”. Enquanto o primeiro “existe para escrever”, o segundo “escreve para existir” (CORTÁZAR, 1998, p. 35). Um faz uma carreira literária, trabalha; o outro tem nela apenas um recurso, um caminho de busca. Morelli, escritor prototípico de

Rayuela, faz parte do segundo grupo, já que “se iba alejando así cada vez más de la utilización profesional de la literatura” (99:362).

A literatura é, antes de tudo, um gesto de liberdade.