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2.3 Outros buscadores cortazarianos

2.3.2 Oliveira e Persio

Em Los premios, romance anterior a Rayuela e primeiro de Cortázar a ser publicado, aparece novamente, embora não em primeiro plano, o tema do labirinto. Vários personagens, de início representantes típicos de vários segmentos da sociedade argentina de meados do século XX, recebem como prêmio de uma loteria uma viagem de navio. Não conhecem, contudo, os detalhes do cruzeiro, e não sabem sequer aonde vão. Não têm acesso, além disso, a grande parte do navio – a popa –, e a partir daí vão se organizando em dois grupos cada vez mais claros: os

50 Borges, apenas um ano antes da publicação de Los Reyes por Cortázar, havia publicado A

casa de Astérion, conto em que, de forma muito semelhante à peça cortazariana, confere nova

significação ao mito do Minotauro e seu labirinto. Bella Jozef considera o labirinto, ao lado do espelho, um símbolo por excelência da obra borgiana, e aponta também na obra de Borges a relação entre o labirinto e a busca: a recriação literária do mito do Minotauro “sugere que a existência humana é uma peregrinação, um itinerário errante, à procura de um centro, um segredo ou uma saída. Também insinua que o acesso ao núcleo da realidade não é linear, que devemos percorrer um caminho sinuoso, fatigante, e a cada momento enfrentar o risco de perder-nos” (1996, p. 121-123). 51 Apenas para exemplificar: Oliveira e a Maga se encontravam “en pleno laberinto de calles”, em Paris (6:34); a síntese final seria a abolição das paredes que segmentam a realidade: “[...] el

laberinto se desplegaría como una cuerda de reloj rota haciendo saltar en mil pedazos el tiempo de los empleados [...] (36:179).

que aceitam as restrições e querem fruir o que lhes é oferecido e os que não admitem portas fechadas e insistem em procurar, nos corredores subterrâneos, o acesso à popa. Numa dessas expedições, ouve-se de um personagem: “Na realidade, a única coisa que nos falta é encontrarmos o Minotauro” (p. 173)52.

Os personagens que se aventuram pelo navio-labirinto, buscadores, oferecem muito claramente uma resistência ao hábito. Destacam-se, nesse sentido, Gabriel Medrano, López, Raul, Atílio Pressutti, Felipe Trejo e as mulheres Cláudia e Paula. Estão também ligados a este grupo Persio e o menino Jorge. Opõem-se aos “partidários do status quo” (p. 263), representados sobretudo pelos mais velhos, Dr. Restelli, Don Galo Porriño, D. Pepa, Sra. Pressutti, Sr. e Sra. Trejo, mas também pelo casal Lucio e Nora, a menina Beba e a noiva de Atílio, Nelly. Utilizando a terminologia de Forster, retomada por Antonio Candido (2007, p. 62-63), tem-se um grupo de personagens esféricas, complexas e surpreendentes, em clara oposição ao segundo grupo, de personagens planas, de opiniões previsíveis e imutáveis.

Para o primeiro grupo, os poucos dias de viagem são um momento de transformação, de revisão de vida. Também eles estavam cheios de “preconceitos burgueses” (p. 114), mas a viagem faz com que reflitam, cada um a seu modo, sobre a identidade que haviam assumido. A popa se ergue, para eles, como um símbolo da inconformidade com as limitações, o desejo de transgressão, o acesso a uma dimensão que ainda não haviam explorado em si mesmos. Os demais personagens não são isentos de conflitos: deixam entrever inquietações e angústias, como se observa, por exemplo, em Lúcio e Nora. O que os planifica é a incapacidade de sair do lugar que lhes foi reservado e cujas demarcações eles ratificam.

Ou seja, são planos porque usam muito convenientemente suas máscaras. Os buscadores tentam ver o rosto que se esconde sobre elas: não andam o tempo todo de cara para as estrelas, mas reconhecem nas máscaras, que também são obrigados a usar, um subterfúgio, uma fuga, uma necessidade social, e buscam arrancá-las, mesmo que por instantes fugazes. O que está em questão não é o uso, mas o grau de consciência e conformismo com que são usadas.

A busca é individual e distinta em cada um, chegando a resultados diferentes, e não se liga a uma ideologia pré-definida. Lucio, por exemplo, é socialista, mas isso não o faz ser buscador, já que acata as doutrinas como dogmas,

quase tão religiosos quanto os de sua noiva. Paula, por outro lado, é a típica jovem burguesa revoltada, e é justamente desse perfil já socialmente demarcado que ela se defende: não quer aceitar que um rótulo se imponha sobre ela.

Cláudia e Medrano são quem melhor explicitam o tema das máscaras. Cláudia, falando sobre o fracasso de sua vida: “Uma sortida coleção de máscaras; e, por trás, acho que um buraco negro” (p. 89). Medrano: “Oh, as máscaras. A gente tende sempre a pensar no rosto que escondem, mas na realidade o que conta é a máscara, que seja essa e não outra. Dize-me que máscara usas, e dir-te-ei que cara tens.” (p. 90) A afirmação, aparentemente conformista, esconde a busca de Medrano em todo o romance: visto num sonho, o rosto de Bettina, sua ex-namorada abandonada em Buenos Aires, “lhe oferecia um espelho escorrendo lágrimas” (p. 329); ao final, quando chega à popa, Medrano sente-se “simplesmente reconciliado consigo mesmo, pondo a rodar como um boneco de barro o homem velho, aceitando a verdadeira cara de Bettina” (p. 386). Ver a popa vazia é ver seu rosto limpo, sem máscaras. Uma visão que lhe custa a morte.

Persio já havia antecipado, antes mesmo do início da viagem, o que Medrano e os outros vão descobrindo aos poucos: diz que cada vez que se diverte submete-se, cede às aparências, o que o leva a afirmar que “[...] toda diversão é como uma consciência de máscara que acaba de animar-se e suplantar-se ao rosto real” (p. 28). Os buscadores do barco não se entregam à diversão, aliás, como os outros, porque estão em busca do rosto real, tentando romper a crosta das aparências.

Acima das buscas pessoais dos personagens, procurando um sentido e estabelecendo a relação entre elas, aparece a busca de Persio. Personagem pouco participativo no enredo, faz reflexões que servem como plano de fundo para as questões individuais. Por meio de poucos diálogos e, sobretudo, de solilóquios interpolados no romance e destacados deste por uma ordenação diferente (alfabética, não numérica como nos outros capítulos) e pela apresentação tipográfica (itálico), mostra-se Persio abrindo-se ao mistério, construindo com o leitor a visão da figura que o navio e seus tripulantes constituem, oferecendo a “filosofia” do romance. Move-se, assim, sobre tópicos caros a Cortázar, retomados depois por Oliveira, em

Rayuela, com menos ingenuidade e uma grande dose de ironia. Daí nosso interesse

Persio vive em grande desapego, quase não tem roupas e bagagem. Brinca com Jorge e interessa-se pelo que dizem as crianças. Morava num “misterioso quarto de Chacarita, onde juntava livros de ocultismo e prováveis manuscritos que nunca seriam publicados” (p. 24). No navio, passa as noites no convés para observar as estrelas. Uma espécie de santo em meditação, à qual se junta a caridade desinteressada: a assistência à doença de Jorge, por exemplo. Mas um santo sem religião, sem doutrina, sem apostas para outras vidas, com a firme confiança na possibilidade de alargamento do presente, na possibilidade de viajar no “infraespaço e no hiperespaço” (p. 91), desistindo continuamente da necessidade de saber para que assim “sinta tudo com mais veemência”, se una ao “casco brilhante da noite austral” e deixe penetrar nos ouvidos “a voz da planície, o ranger do pasto que germina, a ondulação temerosa da cobra que sai no sereno, o leve tamborilar do coelho estimulado por um desejo da lua” (p. 322); numa palavra, abre-se à plenitude do universo. “Não gosto muito da palavra ‘profeta’”, diz Cortázar ao descrever seu personagem, ao mesmo tempo em que lhe concede “uma visão metafísica, uma visão na qual tudo se torna símbolo”, uma “supra-visão” (PREGO, 1991, p. 79-80).

A descrição acima seria talvez ridícula aos ouvidos de Oliveira. Mas ambos compartilham dos mesmos anseios. A grande diferença é que Oliveira teme as armadilhas do pensamento, acha que pode ser enganado pela presença da linguagem na meditação, desconfia dos sentidos. Sem saída, é cínico e amargo, ocupa mais tempo em negar do que em afirmar resultados. Persio opta por meios mais tradicionais (o ocultismo, a astrologia, a contemplação, o orientalismo que seu nome sugere...), é mais confiante e busca chegar a uma síntese não por um meio purificado (ou, o que seria mais próprio a Oliveira, pela supressão de qualquer meio), mas pela consideração de qualquer possibilidade, pela acumulação de muitos resultados parciais que se poderiam cristalizar em uma visão total53.

Persio deleita-se com estas dúvidas a que ele chama arte ou poesia, e julga seu dever considerar cada situação com a maior latitude possível, não somente como situação mas em todos os seus desdobramentos imagináveis, a começar pela sua formulação verbal, na qual tem uma confiança

53 Persio também desconfia da linguagem: “Não, não quero a poesia inteligível a bordo, nem tampouco macumba ou ritos de iniciação. Outra coisa mais imediata, menos copulável pela palavra, algo livre de tradição para que afinal aquilo que toda tradição esconde surja como um alfanje de plutônio através de um biombo cheio de histórias pintadas” (p. 253-254); mesmo assim faz amplo uso dela, já que qualquer resultado é, para ele, válido. É pela acumulação de pequenos avanços que se pode chegar, talvez, ao sucesso.

provavelmente ingênua, até suas projeções que ele denomina mágicas ou dialéticas, segundo se oriente pelos palpites ou pelo fígado (p. 65).

Dessa forma, as questões que se propõe são bem próximas das tentativas de Oliveira. Destacam-se, nesse sentido, os seguintes problemas: as figuras, o mistério e o tempo, além dos já mencionados, as máscaras e a meditação.

O conceito de figura aparece com bastante frequência em Rayuela. Muitas vezes, é verdade, no sentido comum de “figura de linguagem”, mas várias outras num sentido muito próprio do pensamento cortazariano, explícito em Los premios, motivação de 62 modelo para armar. Rayuela não se preocupa em explicar muito o conceito, mas faz dele uma peça chave. Por exemplo, Oliveira fala à Maga, quando esta já se foi:

[...] y poquito a poquito, Maga, vamos componiendo una figura absurda [...], algo inexistente como vos y como yo, como los dos puntos perdidos en París que van de aquí para allá para aquí, haciendo su dibujo, danzando para nadie, ni siquiera para ellos mismos, una interminable figura sin sentido (34:165).

Também Morelli fala de escritores e pintores que estão às margens do “tempo superficial de sua época”, estão em “otro tiempo donde todo accede a la

condición de figura, donde todo vale como signo y no como tema de descripción”

(116:397).

Cortázar mesmo explica:

Persio ve las cosas desde lo alto como las ven las gaviotas. Es decir, es una especie de visión total y unificadora. Allí tuve por primera vez una intuición que me sigue persiguiendo, de la que se habla en Rayuela y que yo quisiera poder desarrollar ahora a fondo en un libro54. Es la noción de lo que yo llamo las figuras. Es como el sentimiento – que muchos tenemos, sin duda, pero que yo sufro de una manera muy intensa – de que aparte de nuestros destinos individuales somos parte de figuras que desconocemos. Pienso que todos nosotros componemos figuras. Por ejemplo, en este momento podemos estar formando parte de una estructura que se continúa quizá a doscientos metros de aquí, donde a lo mejor hay otras tantas personas que no nos conocen como nosotros las conocemos. Siento continuamente la posibilidad de ligazones, de circuitos que se cierran y que nos interrelacionan al margen de toda explicación racional y de toda relación humana” (HARSS, 1996, p. 693).

É assim que Pérsio interpreta a loteria: sem que os premiados suspeitem, eles compõem uma figura, e isso é mais do que acaso (quase absurdo, se se pensar

que vários dos sorteados já se conheciam antes, e, dentre tantos milhões de concorrentes, dois eram professores numa mesma escola e se unem ainda a um de seus alunos). “E assim − disse Persio, suspirando −, somos de repente, talvez, uma só coisa que ninguém vê, ou que alguém vê, ou que alguém não vê” (p. 41). O esforço de Persio é o de distanciar-se para ver a figura “de cima”. O navio, que isola o grupo de personagens da cidade, torna um pouco mais acessível a tarefa que ele se propõe.

A ideia de figura explicaria certas aproximações, distanciamentos, simpatias e espelhamentos de outra forma inexplicáveis. O jogo de duplos, por exemplo, faz parte do acontecimento mais amplo da figura, sem que cada um, por sua própria conta, possa apreendê-la. É como nas constelações, explica Pérsio: a soma da presença isolada de cada estrela não explica suficientemente o conjunto, o jogo harmônico de tensões. O homem sacraliza as constelações porque sente que ali acontece algo que se passa também consigo (cf. p. 42).

As figuras também explicariam o absurdo dos encontros pessoais, que por modificações em mínimas circunstâncias não aconteceriam. “A mais absurda das coincidências” (p. 169), nas palavras de Cláudia, pode alterar completamente o destino de uma pessoa: fazê-la morrer em alguns instantes ou passar o resto da vida amando alguém, por exemplo. Medrano faz a ressalva de que adotar esse ponto de vista seria banalizar a existência, jogar no puro jogo do absurdo o que há de mais grave na vida, ao que responde Cláudia: “Persio diria que o que chamamos absurdo é a nossa ignorância” (p. 169).

Todo o esforço de Persio é por dominar esse absurdo, apreender a figura. “Persio tende a ver o barco como se estivesse instalado na ponte de comando, na vigia central, de onde, já capitão, domina a proa, os mastros de vanguarda, a curva cortante que desperta as efêmeras espumas” (p. 63). Vê o barco como um quadro, faz constantemente a analogia com o guitarrista de Picasso.

E assim a ideia de absurdo é substituída pela de mistério. O mistério pode ser apreendido, embora não explicado. “Persio não acredita que o que está acontecendo seja racionalizável. Não o quer assim” (p. 64). Não se trata de um mistério único: ele se dá a cada um de acordo com suas circunstâncias. Para Felipe, por exemplo, a compreensão dos próprios desejos e impulsos eróticos. Para López, o mistério tem nome próprio, Paula. Cláudia, por sua vez, diz que vive “como que circulando à procura de coisas que não aparecem” (p. 213), a começar por sua

própria identidade: “Sou completamente incapaz de representar a personagem que me tocou por sorte” (p. 118). Para Medrano, a visão do próprio rosto, espelhado no rosto de Bettina que chora.

Todas as dúvidas, o mistério de cada personagem, se condensam, simbolicamente, numa só: a popa do navio. “Absurdo que a popa e Bettina fossem, nesse momento, um pouco a mesma coisa”, diz Medrano (p. 199), por exemplo. Por ser proibida, por não se saber o que há nela, a popa recebe as projeções de cada buscador. Ao final, sabe-se que lá não há nada. Parece que o romance insinua que o mistério persiste, por mais que se avance na busca. A popa vazia é “alguma coisa como um ponto de partida” (p. 386). “Afinal, não estava tão vazia” (387), pensa Medrano, o único que a viu, antes de morrer. Nela está a possibilidade de encontro com o mistério, e, por meio dele, a transformação no “homem novo”, a reconciliação (p. 386). Por isso Pérsio também se preocupa com ela, embora suas vias de acesso sejam outras.

“Você também pensa na popa, não é verdade?”, pergunta Medrano a Persio. “Eu a vejo”, é a resposta. “Eu a vejo e deixo de vê-la, é tudo tão confuso. Pensar, penso o tempo todo nela” (p. 235). O que Persio vê na popa poderia ser tomado por pura imaginação ou alucinação, se ele não falasse o tempo todo por analogias55.

Mas a popa, isso que é Pérsio olhando a popa, as jaulas de macacos a bombordo, jaulas de macacos selvagens a bombordo, um parque de feras sobre o escotilhão da estiva, os leões e a leoa dando voltas lentamente no recinto isolado com arame farpado, refletindo a lua cheia na fosforescente pele do lombo, rugindo com recato, jamais doentes, jamais enjoados [...]. Pouco a pouco, vai descobrindo o ordenamento das jaulas e dos cercados, a confusão se modifica de segundo em segundo, em formas ao mesmo tempo elásticas e rigorosas, semelhantes às que dão solidez e elegância ao músico de Picasso que foi de Apollinaire [...] (p. 231).

A popa é, em primeiro lugar, o próprio observador. Seu mistério projetado. Na projeção veem-se os macacos enjaulados, junto a outros animais. Diversas vezes Oliveira, em Rayuela, fala de macacos, e explica, se associarmos as duas obras, a visão de Persio: por exemplo, quando ouve jazz ao lado de Babs que chora, pergunta-se se Bessie Smith e Coleman Hawkins não seriam ilusões, ilusões de ilusões, “una cadena vertiginosa hacia atrás, hacia um mono mirándose en el água

55 “Está convencido de que uma ordem apenas apreensível por analogia rege o caos portátil [...]” (p. 100)

el primer día del mundo” (12:51); Oliveira sentia-se “una especie de mono entre los hombres”, queria “ser un mono por razones que ni siquiera el mono era capaz de explicarse empezando porque de razones no tenían nada y su fuerza estaba precisamente en eso” (52:254); ainda os personagens de Morelli, “monos sabios”,

“parecían querer retroceder cada vez más hacia sí mismos, anulando por una parte

las quimeras de una realidad mediatizada y traicionada por los supuestos instrumentos cognoscitivos [...] para acabar en una especie de encuentro ab ovo”

(124:407).

Os macacos, assim, simbolizam a recusa da razão, ao menos de uma forma de razão. Além disso, os animais, que refletem a luz da lua e não adoecem, não enjoam etc., simbolizam ainda a comunhão perfeita do homem com o mundo, a abolição da necessidade de contemplação pelo simples e autêntico “estar aí”, ou seja, a vida plena no presente. Por fim, a visão de Persio vê na organização das jaulas os traços, as formas... ou seja, a figura. Vê na popa o que tenta encontrar na proa, na figura formada pelo conjunto de personagens que ele tenta decifrar.

Mas não é fácil manter a visão. Persio sente que está sempre quase lá, mas, depois de iluminações instantâneas e fugazes, volta de novo ao domínio da razão, à necessidade de explicação, ao recurso inevitável da analogia. O buscador insiste em ultrapassar as “bordas”:

Na borda, e essa palavra volta e volta, tudo é borda e deixará de sê-lo a qualquer momento – borda Persio, borda barco, borda presente, borda borda: resistir, permanecer ainda, oferecer-se para beber, destruir-se como consciência para ser ao mesmo tempo presa e caçador, o encontro anulador de toda oposição, a luz que se ilumina a si mesma, a guitarra que é uma orelha que se ouve (p. 229).

Também as bordas do tempo devem ser transpostas. O fato de estar no navio promove nos personagens uma inquietação em relação ao presente, como diz Medrano: “No fundo, o que inquieta a Don Galo e mais alguns é que estamos vivendo uma espécie de suspensão do futuro. Por isso eles estão preocupados e perguntam o nome do navio” (p. 59). Há, ainda uma omissão do passado: os personagens acabam de se conhecer, não dominam, em sua grande maioria, o passado dos outros, o que leva López a pensar: “Se um dia ele se apaixonasse realmente por Paula, [...] então o tempo lhe mostraria seu verdadeiro rosto cego, proclamaria o espaço infranqueável do passado, onde não entram as mãos e as

palavras” (p. 304). Mas viver uma restrição do presente não é, ainda, romper as bordas do tempo, embora seja uma importante motivação. Medrano, que passara a vida tentando ater-se ao agora, é o porta-voz de uma intuição que parece perpassar os outros buscadores do romance:

O presente não podia ser isso, mas só agora, quando muito desse agora era já uma perda irreversível, começava a desconfiar sem muita convicção de que sua culpa maior podia ter sido uma liberdade fundamentada numa falsa higiene de vida, um desejo egoísta de dispor de si mesmo a cada instante de um dia repetidamente único, sem lastros de ontem e amanhã. Visto desse ângulo, tudo o que tinha percorrido parecia de repente um fracasso absoluto (p. 325).

Não se trata de apagar o passado e o futuro, mas de compreendê-los num tempo único. É Pérsio, mais uma vez, que aponta para uma resposta:

Se eu visse simultaneamente tudo o que vêem os olhos da raça, os quatro bilhões de olhos da raça, a realidade deixaria de ser sucessiva, se petrificaria numa visão absoluta na qual eu desapareceria, aniquilado. Mas essa