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Opinião punitivista e condição de classe

No documento fabioricardodosanjosribeiro (páginas 187-190)

4.2 Análise do material dos grupos focais e entrevistas

4.2.7 Opinião punitivista e condição de classe

O discurso humanitário é normalmente possibilitado por uma situação de classe favorável que faz com que as privações não sejam experimentadas como urgências que impedem o próprio pensamento. Os jovens de classe baixa que investiguei não dispõem dos privilégios advindos dessa condição, uma vez que experimentam realidade bem mais precária.

Entre os alunos de classe média, que não precisam nem sentem que precisarão em um futuro próximo trabalhar para se manter, os anseios por trabalho, quando existentes, estão associados à autonomização financeira em relação aos pais e ao sucesso profissional como decorrência a médio e longo prazos do investimento em capital escolar. A dedicação à atividade escolar, possibilitada por um ambiente de classe favorável, reflete-se no humanismo generalizado presente nos discursos. No caso em questão, esse humanismo consegue superar, pelo menos no âmbito do discurso, a discriminação da pobreza, que costuma estar atrelada à defesa liberal da meritocracia em classes de relativo sucesso econômico. Parte da explicação para isso advém do fato de que os pais desses jovens fazem parte de uma burguesia ascendente detentora mais de capital cultural que de capital econômico. Pais e mães desses jovens são funcionários públicos de médio escalão, profissionais liberais e no máximo pequenos comerciantes. Não são, portanto, grandes capitalistas. A escolha de uma formação relativamente humanista para e por esses alunos está relacionada à própria formação humanista de seus pais. Nos casos em que essa conexão é mais fraca, o próprio efeito do ambiente escolar contribui para a equalização dos discursos. (Nos grupos focais que realizei era patente a unanimidade de opiniões, muito característica daquele espaço bastante homogêneo em que os alunos se formam em grande medida a partir da frequência às mesmas aulas e de uma similar origem de classe. As divergências esperadas nesse tipo de experimento metodológico, quando

existentes, decorriam mais de pequenas diferenças de ênfase que de pontos de vista claramente conflitantes. Tanto isso é verdade que precisei o tempo todo simular o contraditório para tentar, em vão, criar ou evidenciar discordâncias.)

Os jovens de classe baixa vislumbram, no horizonte imediato, uma vez concluído o Ensino Médio, começarem a trabalhar enquanto estudam em uma faculdade ou curso técnico para poderem ter um ―bom emprego‖ – entendido como emprego bem remunerado – no futuro. O trabalho remunerado é urgência em um universo em que não se tolera muito facilmente o investimento ―desinteressado‖ nos estudos. Estes, ao mesmo tempo e contraditoriamente, são reconhecidos como condição para o acesso a ―boas‖ profissões, mas devem ser conciliados com atividades remuneradas. Esses jovens, escolhendo o necessário, acreditam que é perfeitamente factível e até desejável – uma vez que têm como valor apenas aquilo que é fruto de grande esforço pessoal – a dupla jornada trabalho/estudo. A busca de um curso superior, que no outro universo pesquisado está também associada à busca de autocompreensão e, muito frequentemente entre jovens daquela idade e classe social, à vinculação a ―causas sociais‖, vincula-se neste caso à busca por ascensão social. Esses jovens pobres esperam viver no futuro o mais próximo possível em melhores condições econômicas que aquelas enfrentadas por seus pais. Percebem-se como portadores de uma promessa de condição de classe melhor tanto para si mesmos como para seus pais, dos quais não mais dependerão e aos quais poderão retribuir assim que puderem, sempre o mais rápido possível.

Nesse universo de relativa privação material, as carências são experimentadas também como questões materiais. Os ―direitos humanos‖ dentro dos quais se classifica o direito à vida, à liberdade de ir e vir, à privacidade, à dignidade da pessoa etc., estão em um plano por demais abstrato para esses jovens, uma vez que, nesse sentido, dizem respeito a uma experiência bastante distante. As possíveis afrontas a esses direitos nos discursos dos apresentadores dos programas policiais sequer são percebidas, pois se sobressaem outras preocupações. Quando presentes, aparecem em sentido equivalente àquele apontado por CALDEIRA (1991), quando a autora se refere à população da cidade de São Paulo, em contexto imediatamente

posterior à promulgação da Constituição de 1988, no qual a disputa por direitos fez parte da pauta política nacional:

a reação à defesa dos direitos humanos forçou de modo tão negativo e enfático a associação com criminosos, que atualmente a defesa de direitos humanos suscita massiva oposição junto à população. (CALDEIRA, 1991, p. 164).

Claro que, no plano do discurso, na maior parte das vezes as posições não são claramente articuladas. Diferentemente do que foi encontrado por CALDEIRA, naquele momento sócio-histórico específico, creio que não encontraria entre as pessoas que pesquisei quem declarasse abertamente ser ―contra os direitos humanos‖. De todo modo, explicitamente declaram ser ―contra o que eles consideram ser ‗regalias para bandidos‘‖ e, ao defenderem punições sem limite, convergem com os discursos dos apresentadores e ―acabam reagindo contra a ideia de direitos humanos de um modo geral‖ (idem).

Os telejornais policiais, ao se pautarem pela cobertura rotineira da criminalidade, transmitem a sensação de que o mundo está decaído. Ao apelarem para a indignação quase ritual de seus telespectadores em relação ao atual estado de coisas – indignação essa que pude observar a partir dos grupos focais e entrevistas – contribuem, a meu ver, inclusive para a aceitação do uso da violência. Como é constatado por vasta literatura sobre o tema (cf., p. ex., ADERALDO, 2008; OLIVEIRA, 2007; ROMÃO, 2013; VARJÃO, 2015a; VARJÃO, 2015b) há nesses telejornais clara banalização da violência (repetição das imagens de execução, sem cortes, como na cobertura da perseguição policial, analisada no capítulo anterior, vídeos de linchamento e humilhação dos acusados, que se tornam rapidamente ―criminosos‖, através dos julgamentos feitos através dos comentários dos apresentadores) sempre, é bom lembrar, em nome da audiência, ou, na linguagem utilizada pelos interessados na defesa dos procedimentos utilizados nesses programas, em nome do direito à ―liberdade de expressão‖ (VARJÃO, 2015b) e mesmo do ―interesse público‖. Com os bandidos, maus caracteres etc., pode-se fazer tudo – já que eles fazem o mesmo e até pior. A violência física e simbólica é facilmente tolerada e até desejada.

No documento fabioricardodosanjosribeiro (páginas 187-190)