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A OPORTUNA REPRESENTAÇÃO DE UM CONFLITO PARA SE REPENSAR A DICOTOMIA CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

No documento O de um amor da vida (páginas 142-149)

6 UM NOVO CAPÍTULO PARA A GUERRA CIVIL ARGENTINA

6.1 A OPORTUNA REPRESENTAÇÃO DE UM CONFLITO PARA SE REPENSAR A DICOTOMIA CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

O contexto histórico das guerras civis argentinas – pilar fundamental para que Cristina Bajo pudesse embeber-se criativamente para a desenrolar ficcional de seu romance – revelou-se, vale-se dizer, como um ponto de partida também para aquilo que, anos depois, foi narrativizado e utilizado aos interesses da história hegemônica. Estabelecido o choque entre capital e o interior da nação, foi possível que um ideal dicotômico se estabelecesse. Sob a égide sarmentina, civilização e barbárie passam a servir como metonímias do choque entre Buenos Aires e o interior (Europa versus América; Brancos versus criollos, gauchos e índios; Unitarios versus federales etc), o interesse ideológico de um discurso oficial a serviço da homogenização de uma nação nascida (como todas as demais latino-americanas) a partir de um condicionante de mistura, ou, melhor dizendo, de mezcla.

196 “- Meus irmãos andam com os montoneiros e minhas irmãs, casadas e em outras províncias. Somente os meus pais e alguns tios acabaram ficando no vale – disse com tristeza o capitão –. Assim parece que as famílias argentinas têm sido lançadas ao vento...”.

Exatamente por isso, a eventual discussão oportunizada pela obra de Cristina Bajo credencia um grande nível simbólico para o debate do próprio romance histórico enquanto modalidade narrativa e, claro, sobre algumas das suas características a partir da produção iniciada já na década de oitenta do século XX. A dimensão alcançada pela escritora torna-se ainda mais interesante quando federales e unitarios são engendrados em uma realidade comum, partem de uma mesma cidade, de uma mesma província, de uma mesma casa, de uma mesma educação, de um mesmo ventre; o fato histórico é, assim, colocado como principal regente de uma família (seria a própria Argentina?) que luta para a sua sobrevivência, para a sua necessária continuidade. Sobre isso, a Parte III desta dissertação assumirá função específica. Aqui, reserva-se o comentário para pensar a representatividade das guerras civis como fundamento primeiro de uma tensão colocada em xeque até a contemporaneidade, inclusive, nos estudos literários.

(Re)montando às guerras civis, Cristina Bajo possibitará o reconhecimento, por exemplo, do componente indígena para a sociedade argentina, fato que, oficialmente, parece ter sido, durante muito tempo, propositalmente obnubilado. Ou pior: muitas vezes, no discurso histórico, a figura indígena é estranhamente – e superficialmente – apenas sentenciada como “salvaje” (BEST, 1983, p. 109). Sobre essa presença identitária em território argentino, aliás, é de grande valia algumas das ponderações de Antônio Houaiss (1972). Apesar de voltar-se para a questão linguística na América Latina, o trabalho de Houaiss traz um interessante cenário quanto à presença indígena na Argentina. A partir de quadros comparativos, o linguista pontua, por exemplo, que, ao menos em 1950, a população indígena nas terras argentinas correspondia a menos de 1% do número de toda a população. Em 1960, isso significou um estimado de 130 mil integrantes (HOUAISS, 1972).

Ainda que quase inexpressivo, o trabalho referido, em uma comparação com o mesmo ano, destaca que, no Brasil, a relação de integrantes indígenas era de 120 mil, ou seja, 10 mil a menos que na Argentina. O que, por comparação, fortalece que a representatividade indígena no país do Prata não é tão pequena assim. No caso do Brasil, é necessário fazer um aparte e destacar a advertência deixada pelo pesquisador já que, segundo ele, quase 200 tribos não puderam ser catalogadas por conta da

inacessibilidade das regiões onde habitam. A localização dessa presença ajuda a relativizar o mito branco e europeu proposto pelo ideal nacional sarmentino. É claro que os números parecem desprezíveis ao se pensar na realidade de países notoriamente conhecidos por sua base indígena, tal como Peru (mais de 3 milhões de integrantes), além de Bolívia e México (cada um com quase 2,5 milhões de integrantes entre toda a população).

A resistência ao indígena não é esquecida por Cristina Bajo, ao contrário, comporta-se como a primeira linha de força para o encaminhamento da trama ficcional, permitindo possível – e verossímil, ficionalmente e historicamente – o encontro entre os personagens Luz Osorio e o índio ranquel Enmanuel. Será da paixão avassaladora (disfarçadamente folhetinesca) que a autora poderá aceder às microfacetas históricas que sacudiram o país nas primeiras décadas do século XIX. A partir desse enamoramento entre o elemento europeu e o viço da representação local – violados por um amor mortal – o romance histórico dará sentido ao seu título Como vivido cien veces.

Sabendo equilibrar recortes históricos em um plano ficcional repleto de nuances e controles, a obra de Bajo faz das guerras civis argentinas o cenário apropriado para a discussão da história hegemônica, fortalecendo a sua relevância para a análise crítica.

Expandindo a questão entre brancos e indígenas (o que ajudará a dar origem, inclusive, a um dos traços identitários mais importantes no país, o legítimo gaucho), Cristina Bajo utiliza a figura de Fernando Osorio para retratar como muitos dos exércitos locais passavam a ser formados. Depois do choque de ver o seu amigo ranquel sendo brutalmente assassinado por membros de sua família e, ao ver sua irmã, literalmente esvaindo-se em sangue pela dor de um amor, Fernando decide incorporar-se aos agrupamentos a favor de Facundo Quiroga, força do partido dos federales. Mais do que imaginação especulativa ficcional, ganha, outra vez, o destaque de uma minuciosa reconstrução e revisão do passado. Em sua historiografia a respeito sobre as guerras protagonizadas no país, Félix Best também aponta a presença de refugiados brancos entre os índios: “También había cristianos, y aun oficiales (desertores, montoneros, etc.) refugiados entre los indios a los que dirigían o

aleccionaban (700 de éstos se calcularon en cierto período, sólo entre los ranqueles)197.” (BEST, 1983, p. 108).

Termos que tiveram a sua origem a partir dos embates bélicos internos, como o caso das montoneras, não passam despercebidos aos olhos e ao critério de Bajo. Filologicamente, tal como esclarece Best, a designação seria uma explicação para a maneira não regular na qual os índios se performavam para as batalhas:

Las fuerzas indias, todas de caballería, no tenían unidades tácticas especiales, sino que se constituían grupos por tribus o caciques, con más o menos efectivos. No podría, pues, decirse que conocieran esas unidades, ni las operativas de los ejércitos regulares. Formaban el “montón”, confuso núcleo, sin orden, ni reglas, del que surgiría el nombre de “montonera”, dado a las masas de fuerzas irregulares, especialmente en nuestras guerras civiles198. (BEST, 1983, p. 106, grifos nossos).

Interessante, pois, perceber o quanto a escritora foge facilmente do perigo encapsulante e inevitável do romance histórico, o famoso

“entrampamiento en los clichés del relato histórico199” (GARCÍA GUAL apud FERNÁNDEZ PRIETO, 1998). Isso porque, ao invés de introjetar um dado histórico como um simples elemento obrigatório, muitas vez, paradidático, ofertado forçosamente aos leitores – sem critérios de elaboração ficcional ou verossimilhança para o que está sendo narrado –, Bajo alcança um composto que é, antes de tudo, literário. No caso específico do termo montoneras, a escritora não parece abrir um hiato em sua trama ficcional, tratando a informação de maneira estéril e sisuda. Ao contrário, por meio de um narrador instigante, literariamente, seus leitores tomarão conhecimento e entenderão do que se refere o termo pelo contexto e desenrolar da trama, ao longo de fragmentos que levam a história à boca de quem a vive:

197 “Havia também cristãos, e, ainda, oficiais (desertores, montoneros etc.) refugiados entre os índios aos quais dirigiam ou instruíam (700 destes, calcula-se em certo período, somente entre os ranqueles).”.

198 “As forças indígenas, todas de cavalaria, não tinham unidades táticas especiais, mas sim grupos que se constituíam por tribos ou caciques, com mais ou menos efetivos. Não poderia, pois, dizer que essas unidades se conheciam, nem as operativas dos exércitos regulares.

Formavam o “montón”, núcleo confuso, sem ordem, nem regras, explicando a origem do nobre

“montonera”, atribuído às massas de forças irregulares, especialmente em nossas guerras civis.”.

199 “armadilhamento nos clichês do relato histórico”.

En la ciudad le era adicta la masa popular, pero no lograba vencer a animadversión de los unitarios y de la gente “distinguida”, que lo señalaba como aliado de las montoneras200. (BAJO, 1997, p. 25).

Va a estar muy solo Facundo por un tiempo...

—Hasta que haga una nueva matanza y resucite de sus cenizas — declaró Sebastián torvamente.

—Es posible. ¿Y qué hay de los festejos?

—Aplazados, ya que el general debe dedicarse primero a desarticular las montoneras.

—Los estancieros, agradecidos201. (BAJO, 1997, p. 94)

—He sabido que han pedido en matrimonio a la señorita Luz —dijo Harrison como al descuido.

Lozano movió la cabeza.

—No creo que Eduardito le cumpla.

—¿Y cómo tomará eso don Carlos?

—Prefiero no imaginarlo. ¿Sabe, amigo, que hace años Carlos tuvo un duelo por una de sus hermanas? Hirió de muerte a su mejor amigo... por unas palabras desafortunadas. Son de genio caliente esta gente; siempre andan presumiendo de su origen godo y de las leyes de sangre... Mire nomás dónde levantaron la hacienda. ¿Puede imaginar lo que era ese territorio hace doscientos años? Va a hacer falta algo más que montoneras para desalojarlos.

“Una guerra civil bastará”, pensó Harrison, e insistió202: (BAJO, 1997, p. 111)

(Re)construindo as guerras civis, Cristina Bajo possibitará, então, que a sua obra alimente um preceito fulcral para a modalidade narrativa, permitindo, criticamente, a revisão do passado argentino. Chega-se, aqui, o momento de desaguar nas águas de Como vivido cien veces, navegar pela obra oportunizando sua observação como um representante de seu gênero – o

200 “Na cidade, lhe era fiel a massa popular, mas não conseguia vencer a inimizade dos unitários e das pessoas “distintas”, que o tomovam como aliado das montoneras.”.

201 “Facundo estará muito isolado por um tempo...

- Até que faça uma nova matança e ressuscite das cinzas – declarou Sebastián rigidamente.

- É possível. E como estão as comemorações?

- Suspensas, já que o general deve se dedicar primeiramente a desarticular as montoneras.

- Os donos das estâncias ficam agradecidos”.

202 “Fiquei sabendo que pediram a senhorita Luz em casamento – disse Harrison, fingindo certo descuido.

Lozana moveu a cabeça.

- Não acredito que Eduardito cumpra com o pedido.

- E como Dom Carlos receberá essa recusa?

- Prefiro não imaginar. Sabe, meu amigo, que faz alguns anos que Carlos duelou por uma de suas irmãs? Feriu de morte o seu melhor amigo... por conta de umas palavras desafortunadas.

São de gênio forte essa gente; sempre comportam-se seguindo sua origem goda e diante das leis de sangue... Olhe só onde levantaram a fazenda. Pode imaginar o que era esse território há duzentos anos? Será necessário algo muito mais forte do que as montoneras para tirá-los daqui.

“Uma guerra civil bastará”, pensou Harrison, e insistiu:”.

romance –, aprofundar dados que o legitimem como um romance histórico. É tempo, enfim, de discorrer a respeito do que é lido como a poética bajoniana.

PARTE III

ROMANCE. HISTÓRIA. A PERSPECTIVA DE BAJO

7 POR UMA POÉTICA BAJONIANA: UMA REFLEXÃO SOBRE COMO

No documento O de um amor da vida (páginas 142-149)