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O conceito de ação conectiva gerou um intenso debate no que diz respeito ao papel exercido pela identidade coletiva, tema tão caro aos estudiosos do campo de movimentos sociais pela importância que o conceito assumiu na explicação sobre processos de mobilização, sobretudo a partir dos anos 80. A provocação teórica de Bennett e Segerberg (2012) diz que houve uma mudança na natureza da ação

coletiva a partir de dois elementos: 1) a perda da centralidade das organizações de movimentos sociais para mobilizar e organizar protestos, sendo substituídas pelas plataformas de mídias sociais 2) e a substituição de uma identidade coletiva formada pelos movimentos sociais para construção de um processo que levou à personalização das mensagens, que atualmente é realizada de forma individual e tecnologicamente conectada.

Gerbaudo e Treré (2015) chamam a atenção para o fato de que boa parte dos estudos sobre mídias sociais e protestos deixaram de lado o estudo sobre a identidade coletiva. Eles elencam três razões para que o conceito tenha ficado fora dos estudos. O primeiro deles considera que há uma tradição predominante advinda da teoria de mobilização de recursos que privilegia uma ênfase nas estruturas organizacionais e que é hegemônica no estudo sobre o ativismo digital. O segundo fator seria a predominância de abordagens baseadas na noção de redes em estudos empíricos como a formulada por Bennett e Segerberg. E, por último, há uma certa negligência com os dados qualitativos em detrimento do uso de big data que não permite uma análise capaz de compreender processos simbólicos e culturais.

Os autores argumentam que o pressuposto sobre o “declínio de organizações de massa formais e o aumento combinado de formas individualizadas de engajamento32” (GERBAUDO e TRERÉ, 2015, p. 867) é bastante perspicaz, mas

não justifica a insignificância da identidade coletiva nos estudos recentes. Neste sentido, não se pode encarar os laços da rede como substitutos da identidade coletiva, pois a identidade coletiva é gerada na interação. Gerbaudo e Treré organizam um dossiê na revista Information, Communication and Society no qual apresentam vários estudos que deslocam “o foco da estrutura da comunicação para os processos simbólicos que ocorrem nas mídias sociais e da natureza das aquisições tecnológicas para a análise dos conteúdos veiculados através dessas plataformas on-line33” (Gerbaudo e Treré, 2015, p. 868). Os autores destacam a

fluidez e a efemeridade como uma característica típica da comunicação digital levantando questões significativas para estudiosos de movimentos sociais.

32 Tradução de: “the decline of formal mass organizations and the combined rise of individualized forms of engagement”.

33 Tradução de: “the focus from the structure of communication to the symbolic processes taking place on social media, and from the nature of technological affordances to the analysis of the content conveyed through these online platforms.”

Destaco alguns elementos desses textos que fundamentam teoricamente esta pesquisa. O primeiro deles é o estudo de Treré (2015) sobre a campanha, ocorrido no México, #YoSoy132. Ao investigar as dinâmicas comunicativas internas em bate- papo e grupos fechados do Facebook e das mensagens instantâneas de Whatsapp, o autor argumenta que o movimento tem sua coesão interna e identidade coletiva moldadas e acentuadas nas plataformas de mídias sociais.

Essa construção se dá a partir de três mecanismos identificados por Treré. O primeiro deles diz respeito à construção de fronteiras, com a definição de um “nós” e um “eles” que no movimento em questão se deu a partir da gravação de um vídeo realizado pelos estudantes. Esse vídeo propagou-se rapidamente e fez com que outros estudantes aderissem à campanha, gravando vídeos também e iniciando o YoSoy132. O segundo mecanismo é a conexão a um patrimônio de protesto, no qual a identidade coletiva é constituída na tentativa de se atribuir uma coerência entre eventos do passado com a luta do agora na qual o movimento se coloca como a continuidade de uma tradição, sendo o herdeiro dos valores e ideais (TRERÉ, 2015). O último mecanismo é a construção e manutenção de redes de confiança e solidariedade a partir das interações realizadas de modo informal e apoio entre ativistas.

Milan (2015) também constrói um argumento para refutar Bennett e Segerberg (2012) ao afirmar que o cerne das mobilizações contemporâneas é a identidade coletiva e não o incentivo à participação. A autora propõe a noção de identidade coletiva como “um exercício de individualidade, desempenho, visibilidade e justaposição [...] e um princípio organizacional34” (MILAN, 2015, p. 03). Além disso,

expõe a noção de protesto na nuvem e política da visibilidade para repensar a ação coletiva organizada.

Para ela, as plataformas de mídias sociais fornecem meios específicos para ampliar a interação e o compartilhamento da ação coletiva, ativando relacionamentos e promovendo uma extensão dessa experiência de ativismo da esfera privada para a coletiva (MILAN, 2015). A personalização da ação proposta por Bennett e Segerberg, dessa forma, não opera num vácuo e sim no trabalho realizado pelos indivíduos de construção, interação e negociação da identidade

34 Tradução de: “an exercise of individuality, performance, visibility and juxtaposition. [...]as an ‘organizational principle’”.

coletiva. A autora enfatiza “o papel fundamental do intermediário das mídias sociais na construção de "ideias internalizadas ou personalizadas", em vez de simplesmente circulá-las35” (MILAN, 2015, p. 09).

A autora concorda com o argumento da perda da centralidade das organizações, principalmente na definição de narrativas e regulação de participantes. Não há como controlar a produção simbólica e normativa, visto que isso é feito pela “nuvem [que] coletivamente "eleva" selecionando, destacando e compartilhando conteúdo, determinando assim o que se encaixa na narrativa coletiva36” (MILAN, 2015, p. 09). Outro aspecto correlacionado e mencionado por

Gerbaudo (2015) é que este tipo de ação abre brechas para uma ação coletiva mais fragilizada e movimentos sociais mais instáveis.

São as postagens, os vídeos e links compartilhados que se tornam o fundamento da identidade coletiva construída.

Os participantes se apropriam dos elementos identitários que melhor correspondem às suas inclinações, selecionam e enfatizam os significados criados por seus pares [...] A identidade resultante, feita de montagens customizadas de significados disponíveis e sua recombinação, facilita o alinhamento das identidades pessoais e coletivas (cf. Snow & McAdam, 2000). Em outras palavras, a nuvem fornece uma afiliação frouxa trabalhando individualmente: criada por seleção e justaposição, isto é, dizer, o "posicionamento" incremental de significados produzidos por indivíduos discretos, a identidade coletiva torna-se flexível e simbolicamente inclusiva, construída como é em mínimos denominadores comuns abertos a interpretações.37 (MILAN, 2015, p. 09/10)

A autora nomeia de política da visibilidade esta nova forma em substituição as políticas de identificação, objeto de estudo de Melucci. Essa política da visibilidade é formada por três mecanismos: 1) desempenho virtual e a expressão da ação nos perfis como uma condição da ação; 2) as mídias sociais estabelecem novas

35 Tradução de: “it emphasizes the fundamental broker role of social media in building ‘internalized or personalized ideas’ as opposed to merely circulating them”.

36 Tradução de: “the cloud collectively ‘votes’ by selecting, highlighting and sharing content, thus determining what fits to the collective narrative”.

37 Tradução de: “Participants appropriate the identity elements that best correspond to their inclinations, and select and emphasize meanings created by their peers, [...]. The resulting identity, made of custom-built assemblages of available meanings and their recombination, facilitates the alignment of personal and collective identities (cf. Snow & McAdam, 2000). In other words, the cloud provides a loosened affiliation working on an individual basis: created by selection and juxtaposition, that is, to say, the incremental ‘placing together’ of meanings produced by discrete individuals, collective identity becomes flexible and symbolically inclusive, built as it is on minimum common denominators open to interpretations”.

possibilidades de trocas, alcances de novos públicos e definições entre o “nós” e o “eles” ao permitir identificar por meio de tags, citações e menções outros indivíduos engajados; e por fim 3) as interações assíncronas que permitem, entre outras coisas, mudar a fruição do público a partir de reconstituições permanentes da ação social e estender o ciclo de vida da mobilização. Tudo isso possibilita que a identidade coletiva seja estilizada e dramatizada de forma a regenerar vínculos e promover solidariedade (MILAN, 2015).