3.3 Outros exemplos importantes
3.3.2 Orbitas coadjuntas ´
Exemplos importantes de variedades simpl´eticas aparecem na teoria dos grupos de Lie. Faremos aqui uma breve incurs˜ao no tema. O leitor pode consultar, por exemplo, [19, 28] para mais detalhes.
Um grupo de Lie ´e um grupo G munido de uma estrutura de variedade diferenci´avel para qual a multiplica¸c˜ao m : G× G → G ´e uma aplica¸c˜ao suave; neste caso, a invers˜ao g7→ g−1tamb´em ´e suave,
como consequˆencia do teorema da fun¸c˜ao impl´ıcita.
Para cada g∈ G, as aplica¸c˜oes Lg: G→ G, a 7→ ga, e Rg: G→
G, a7→ ag s˜ao difeomorfismos, com (Lg)−1= Lg−1 e (Rg)−1 = Rg−1.
Dizemos que um campo de vetores X ∈ X(G) ´e invariante `a esquerda se (Lg)∗X = X, e invariante `a direita se (Rg)∗X = X, ∀g ∈ G. O
espa¸co dos campos de vetores invariantes `a esquerda (resp. direita) ´e denotado por XL(G) (resp. XR(G)). Note que cada u ∈ TeG
determina campos de vetores ul∈ XL(G) e ur
∈ XR(G),
ulg= deLg(u), e urg= deRg(u),
e isso nos define um isomorfismo de espa¸cos vetoriais:
XL(G) ∼= TeG ∼= XR(G). (3.3.6)
Uma ´algebra de Lie (real) ´e um espa¸co vetorial (real) g munido de um colchete [·, ·] : g × g → g que ´e bilinear, anti-sim´etrico e satisfaz a identidade de Jacobi:
[[u, v], w] + [[w, u], v] + [[v, w], u] = 0.
Como o colchete de Lie de dois campos de vetores invariantes `a es- querda ´e invariante `a esquerda, podemos definir um colchete
[·, ·] : TeG× TeG→ TeG, [u, v] = [ul, vl](e),
com respeito ao qual TeG ´e uma ´algebra de Lie, que denotamos por
ge denominamos ´algebra de Lie de G.
Observa¸c˜ao: A defini¸c˜ao do colchete em TeG em termos de campos
Qualquer espa¸co vetorial V ´e um grupo de Lie abeliano com res- peito a soma de vetores. O grupo das matrizes reais n× n invert´ıveis, denotado GL(n, R), ´e um grupo de Lie com respeito ao produto. Como GL(n, R) ´e um aberto no espa¸co das matrizes Mn(R), seu
espa¸co tangente na identidade ´e o pr´oprio Mn(R). O colchete de Lie
´e o comutador
[A, B] := AB− BA.
Outros exemplos importantes s˜ao dados por subgrupos de GL(n, R). Exemplo 3.3.7.
a) O grupo linear ortogonal O(n) = {A ∈ GL(n, R) | AtA =
Id}, ou seja, as transforma¸c˜oes lineares de Rn que preservam o
produto interno canˆonico. A ´algebra de Lie associada ´e u(n) = {A ∈ Mn(R)| A = −At}.
O grupo O(n) tem duas componentes conexas, caracterizadas pelas condi¸c˜oes det(A) = 1 ou det(A) = −1. O subgrupo SO(n) ={A ∈ O(n) | det(A) = 1} ´e chamado grupo ortogonal especial, e tem a mesma ´algebra de Lie de O(n).
b) Podemos considerar tamb´em matrizes complexas. Assim temos GL(n, C), o grupo das matrizes complexas invert´ıveis. A ´algebra de Lie associada ´e Mn(C), com colchete dado pelo comutador.
Definimos o grupo U (n) = {A ∈ GL(n, C) | A∗A = Id
} das matrizes complexas que preservam o produto interno hermi- tiano canˆonico de Cn. Sua ´algebra de Lie ´e u(n) =
{A ∈ Mn(C) | A∗ = −A}. Note, por exemplo, que U(1) = S1 ´e
o grupo dos n´umeros complexos com valor absoluto igual a 1. De maneira mais geral, se V ´e um espa¸co vetorial (real, de di- mens˜ao finita), consideramos o grupo de Lie GL(V ) das transforma- ¸c˜oes lineares invert´ıveis de V em V . A ´algebra de Lie gl(V ) associada ´e dada pelo espa¸co de todos os endomorfismos lineares de V , e o colchete ´e o comutador.
Uma representa¸c˜ao de um grupo de Lie G num espa¸co vetorial V ´e um homomorfismo de grupos de Lie ψ : G→ GL(V ). A derivada dessa aplica¸c˜ao na identidade, deψ : g → gl(V ), ´e ent˜ao um homo-
morfismo de ´algebras de Lie, e define uma representa¸c˜ao de g em V .
Dada uma representa¸c˜ao ψ : G → GL(V ) e um ponto x ∈ V , a ´
orbita de x ´e a subvariedade imersa Ox={y ∈ V | ∃g ∈ G, ψg(x) =
y} ⊆ V , e vale que
TxOx={deψ(u)(x)| u ∈ g}, (3.3.7)
usando a identifica¸c˜ao TxV ∼= V .
Duas representa¸c˜oes canˆonicas associadas a qualquer grupo de Lie s˜ao as seguintes:
Exemplo 3.3.8 (Representa¸c˜oes adjunta e coadjunta). a) Para g∈ G, considere a aplica¸c˜ao Ig: G→ G, Ig(a) = gag−1.
Como Ig(e) = e, temos uma aplica¸c˜ao linear
Adg:= deIg: g→ g.
O homomorfismo Ad : G→ GL(g), g 7→ Adg, ´e a representa¸c˜ao
adjunta de G em g. Neste caso, a representa¸c˜ao de g em g induzida pela derivada ´e
ad : g→ gl(g), u 7→ adu,
onde adu(v) = [u, v].
b) Podemos dualizar a representa¸c˜ao adjunta e obter a representa¸c˜ao coadjunta
Ad∗: G→ GL(g∗), g7→ Ad∗g:= (Adg−1)∗,
ou seja,hAd∗g(ξ), ui = hξ, Adg−1ui, para ξ ∈ g∗, u∈ g. Note a
necessidade de tomarmos a adjunta com respeito a g−1para que
tenhamos um homomorfismo de grupos. Ao n´ıvel das ´algebras de Lie, temos a representa¸c˜ao
ad∗: g→ gl(g∗), u7→ ad∗u,
definida porhad∗u(ξ), vi = −hξ, [u, v]i.
Exerc´ıcio:Suponha que g tenha um produto interno h·, ·i que seja Ad- invariante, ou seja, hAdgu, Adgui = hu, vi, para todo g ∈ G. Mostre que a
identifica¸c˜ao g ∼= g∗induzida por este produto interno identifica tamb´em as representa¸c˜oes adjunta e coadjunta.
Como veremos agora, toda ´orbita coadjuntaO ,→ g∗ possui uma
estrutura simpl´etica canˆonica. Este fato ´e comumente atribu´ıdo a Kostant-Kirillov-Souriau.
Considere ξ ∈ g∗, e seja
O a ´orbita coadjunta que passa por ξ. Segue de (3.3.7) que os vetores da forma ad∗u(ξ) geram o espa¸co TξO,
TξO = {ad∗u(ξ)| u ∈ g}.
Note que se ad∗u(ξ) = ad∗u0(ξ), ent˜ao
hξ, [u − u0, v]
i = (ad∗u0− ad
∗
u)(ξ) = 0,
para todo v ∈ g. Portanto, para ξ ∈ g∗ fixo, o valor de hξ, [u, v]i
depende apenas de ad∗ue ad∗v no ponto ξ. Podemos, com isso, definir
uma forma bilinear anti-sim´etrica em TξO por
ωξ(ad∗u(ξ), ad∗v(ξ)) :=hξ, [u, v]i, (3.3.8)
e segue imediatamente da defini¸c˜ao que ωξ ´e n˜ao degenerada. Obte-
mos assim uma 2-forma n˜ao-degenerada em cada ponto de O. Teorema 3.3.9. Seja O ⊂ g∗ uma ´orbita coadjunta. Ent˜ao (3.3.8)
define uma 2-forma simpl´etica em O.
Demonstrac¸˜ao: ´E um fato b´asico que a representa¸c˜ao adjunta preserva o colchete de Lie, [Adg(u), Adg(v)] = Adg([u, v]). Portanto
h(Ad)∗gξ, [Adg(u), Adg(v)]i = hAd∗gξ, Adg([u, v])i = hξ, [u, v]i,
o que mostra que a 2-forma ω definida pontualmente por (3.3.8) ´e invariante pelas transforma¸c˜oes adjuntas Ad∗g. Como estas trans-
forma¸c˜oes agem transitivamente na ´orbitaO, segue que ω ´e de fato suave. Resta verificar que ω ´e fechada.
Como g ∼= (g∗)∗, podemos considerar g⊂ C∞(g∗). Dado u
∈ g, temos que du∈ Ω1(g∗) ´e definido por (du)
ξ(η) = η(u). Assim
(iad∗
u(ξ)ω)(ad
∗
v(ξ)) =hξ, [u, v]i = (du)ξ(ad∗v(ξ)),
e portanto iad∗
uω = du ´e exata (aqui pensamos em ad
∗
u como um
campo de vetores em g∗, definido em ξ
∈ g∗por ad∗
u(ξ)∈ g∗∼= Tξg∗).
Usando a f´ormula de Cartan e a invariˆancia de ω, temos iad∗
ou seja, dω = 0.
Exemplo 3.3.10. a) Considere o grupo
SO(3) ={A ∈ GL(3, R) | AtA = Id, det(A) = 1}. Sua ´algebra de Lie ´e so(3) ={A ∈ M3(R) | A = −At}. Pode-
mos identificar so(3) com R3 de acordo com
uu12 u3 7→ u03 −u03 −uu21 −u2 u1 0 .
Com esta identifica¸c˜ao, o colchete de Lie em R3 ´e o produto
vetorial, i.e., [u, v] = u× v, e a representa¸c˜ao adjunta toma a forma
AdA(u) = Au, adu(v) = u× v.
Como o produto interno usual de R3 ´e invariante pelas trans-
forma¸c˜oes de SO(3), a identifica¸c˜ao R3∼= (R3)∗por ele induzida
identifica tamb´em as representa¸c˜oes adjunta e coadjunta. Por- tanto as ´orbitas coadjuntas em R3 s˜ao as esferas centradas na
origem, incluindo a ´orbita singular{0}. Assim, para cada r > 0, temos a ´orbita coadjunta
Or={ξ ∈ R3| kξk = r}.
A forma simpl´etica emOr definida pelo Teorema 3.3.9 ´e
ω = 1
rσr, (3.3.9)
onde σr´e a forma de ´area da esferaOr.
Exerc´ıcio:Use a identidade u × (v × w) = vhu, wi − whu, vi para mostrar que σr(u × ξ, v × ξ) = rhξ, u × vi. Com isso, prove (3.3.9).
b) Considere o grupo de Lie U (n) (Exemplo 3.3.7, parte b)). Sua ´
algebra de Lie u(n), dada por matrizes complexas anti-hermiti- anas, possui um produto interno invariante pela representa¸c˜ao adjunta,
(A, B)7→ tr(A∗B).
Podemos usar este produto interno para identificar u(n) com u(n)∗. Como u(n) = iH, onde H = {ξ ∈ M
n(C) | ξ = ξ∗} ´e
o espa¸co das matrizes hermitianas, temos a identifica¸c˜ao H ∼= u(n)∗ dada por
hξ, ui = −tr(iξu), u∈ u(n), ξ ∈ H.
Com esta identifica¸c˜ao, a representa¸c˜ao coadjunta de U (n) em H ´e
Ad∗A(ξ) = AξA−1.
Portanto duas matrizes emH est˜ao na mesma ´orbita coadjunta se e somente se elas tˆem o mesmo espectro. Assim, cada lista de n n´umeros reais λ = (λ1, . . . , λn), com λ1≤ λ2≤ . . . ≤ λn,
define uma ´orbita coadjunta
Oλ={ξ ∈ H | espectro(ξ) = λ}.
A topologia das ´orbitas varia de acordo com λ. Por exemplo, se λ1< λ2= . . . = λn, ent˜ao cada ξ∈ Oλ ´e totalmente caracteri-
zado por uma linha complexa em Cn; pense nesta linha como o
autoespa¸co associado ao autovalor λ1, de modo que o seu com-
plemento ortogonal em Cn ´e o autoespa¸co associado ao outro
autovalor. Portanto a linha complexa caracteriza a matriz ξ completamente. Assim, para λ1< λ2= . . . = λn, temos
Oλ= CPn−1,
e obtemos, pelo Teorema 3.3.9, uma fam´ılia a dois parˆametros de formas simpl´eticas em CPn, todas m´ultiplas da forma de
Fubini-Study.
Mais geralmente, no caso λ1 = λ2 = . . . = λk < λk+1= . . . =
λn, cada ponto da ´orbitaOλ´e totalmente determinado por um
autovalor λ1, com multiplicidade k, de modo que o autoespa¸co
associado a λk+1, com multiplicidade (n− k), ´e o seu comple-
mento ortogonal. Assim, neste caso, temos Oλ= Gr(k, n),
a grassmanniana de k-planos em Cn.
Para λ1 < λ2 < . . . λn, cada ξ ∈ Oλ ´e caracterizado pelos n
autoespa¸cos Lj, ou, equivalentemente, pelos subespa¸cos Ei =
⊕i≤jLj,
E1⊂ E2⊂ . . . ⊂ En = Cn.
Em outras palavras,Oλ´e uma variedade “flag” completa. Para
os outros tipos de espectro, as ´orbitas s˜ao variedades “flag” incompletas.
Os exemplos anteriores ilustram ainda o fato geral de que ´orbitas coadjuntas de grupos de Lie compactos s˜ao n˜ao apenas simpl´eticas, mas de fato K¨ahler.