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Ordnungsstaat ao Estado pós-legal-racional

No documento Index (páginas 142-144)

Pelo decreto de 4 de Fevereiro de 1938, o Führer atribui-se o comando directo das forças armadas. A 1 de Setembro de 1939, o Führer, em discurso no Reichstag, estabeleceria quem lhe deveria suceder, fazendo-o «como se fosse a coisa mais natural do mundo» (Carl Schmitt)54. No acto de modificação – Änderungsgesetz – de 16 de Setembro de 1939 reaparecia como «supremo justiceiro e juiz» – oberster Gerichtsherr und Richter – sendo-lhe reconhecida a prerrogativa de anular uma sentença criminal passada pelos tribunais. Uma lei de 26 de Abril de 1942 do Grossdeutsche Reichstag reconhecia-lhe, designadamente, o direito de demitir os juízes pelos canais administrativos normais.

51 Em tese, a vontade legiferante do Führer podia revelar-se por via das chamadas Regierungsgesetze, de leis “governamentais” (emanadas de acordo com o art. 1.º da Lei de 24. III. 1933, a que anteriormente aludimos), por meio de Reichstagsgesetze, actos legislativos aprovados pelo Reichstag segundo formas previstas na Constituição de Weimar, bem como via Volksbeschlossenes gesetze, leis “aprovadas” em plebiscito (nos termos da Lei de 14 de Julho de 1933 relativa ao plebiscito). Note-se que a diversidade de “fontes” normativas (designadamente, a tradicional especificidade da fonte normativa Lei) era sempre já anulada (pelo menos parcialmente) pelo facto mesmo de o Führer poder escolher “arbitrariamente”, ao dizer o direito, de entre um conjunto de várias fontes normativas (nominalmente diversas).

52 Vide Le Droit national-socialiste: Conférence internationale tenue à Paris les 30 Novembre et 1er Décembre 1935, cit., p. 48.

53 Ver Massimo La Torre, La “lotta contra il diritto soggetivo”: Karl Larenz et la dottrina giuridica nationalsocialista, Dott. A. Guiffrè Editore, Milano, 1988, p. 414, nota 132, de onde retirámos as citações

de Sauer e Binder.

54 Carl Schmitt, Apropos the question of the position of Reich Minister and Chief of the Reich Chancellery: Observations from the standpoint of constitutional law (1947), em Telos, n.º 72, 1987, p. 122. Acaso os

sucessores designados pelo Führer viessem a morrer, o Reichstag deveria nomear o seu sucessor, escolhendo o mais digno e valoroso de entre os seus membros. Segundo Huber, um tal discurso constituiria uma das mais importantes leis (assim mesmo, apesar de não estar aqui em causa a forma lei) do nacional- socialismo – cfr. Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime

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«Não pode haver dúvidas de que (…) o Führer tem de ter o direito de fazer tudo o que sirva ou contribua para o alcance da vitória. Ele tem, portanto, enquanto Führer da Nação…supremo justiceiro e líder do Partido, de estar na posição de, sem ter de seguir os procedimentos previstos, poder dar o merecido castigo…a cada alemão…que não cumpra os seus deveres, independentemente dos chamados direitos adquiridos»55.

O Führer passa a legislar, com normalidade, por via de fontes normativas outras que não a lei formal. O Decreto do Führer – Führer-erlasse – , nova fonte de direito com origem na prerrogativa do Presidente do Reich, inicialmente vocacionado para questões organizativas, é utilizado na determinação e modificação da substância das leis, como instrumento de delegação de poder legislativo, por exemplo. No seu dizer o direito, o Führer manifesta-se mesmo para além de constrangimentos formais “clássicos”: não raro, em actos jurídicos que podiam (ser assinados mas) não ser publicados, sendo transmitidos às autoridades superiores do Reich por via hierárquica; em assuntos secretos de Estado, as suas ordens e instruções puderam assumir carácter oral. Desde o final de 1942, a titulatura Führer figuraria em exclusivo agora também nos actos normativos não-militares emanados por Hitler.

No ar constitucional que envolveu e acompanhou a inicial “engenharia constitucional” nacional-socialista, apresentada então como «revolução legal», pairava, como imagem de ordem interpretativa-antecipatória do sentido processo em curso, a imagem de um Ordnungsstaat. Pareceu mesmo poder estar em causa a cristalização de uma organização hierárquica do Poder que fosse uma organização hierárquica legal-racional de criação de direito. O tipo ideal de sistema jurídico hierárquico tinha, em certo sentido, recebido actualização em grau superlativo. A existência de um centro de Poder unificado por detrás da produção normativa, em particular da produção legislativa, bem como a própria entrada de tal produção em regime de normalidade, pareciam até anunciar a introdução de acréscimos de racionalização da ordem jurídica56. A ideologia jurídica rechstaatlish de certos sectores de disposição nacional-alemã ou “nacional-conservadora” do mundo da política, da alta administração, ou de uma parte da comunidade jurídica era também parte e parcela do “encontro nacional-socialista com o constitucional” naquela situação histórica57.

No contexto da actualização da constituição nacional-socialista, de uma juridicidade fundamental simbólica-material de natureza pessoal-biopolítica, emergiria mesmo um novo paradigma de Estado moderno, uma organização de poder funcionando em termos

55 Cfr. R. C. van Caenegem, Uma Introdução Histórica ao Direito Constitutional Ocidental, cit., p. 340. 56 Como observou Eric Voegelin em Hitler and The Germans, the collected works of Eric Voegelin volume 31,

University of Missouri Press, Columbia/London, 1999, pp. Cfr. também Franz Neumann, Behemoth: The

Structure and Practice of National Socialism, 1933 – 1944, Harper and Row, New York, 1966.

57 Em tema de identidade da referida “ideologia jurídica” de um certo mundo burocrático, veja-se, sobre um personagem centralíssimo da burocracia do Ministério da Justiça – o Secretário de Estado Franz Schlegelberger – (com a qual parecia estar, aliás, em sintonia a “ideologia jurídica” do primeiro Ministro da Justiça do Reich, Franz Gürtner), e documentando um modo de pensar o direito na qual o jurídico (“formalisticamente” representado) aparecia como meio indispensável e insubstituível de domínio do Estado sobre a sociedade, cfr. Eli Nathans, Legal Order as Motive and Mask: Franz Schlegelberger and the Nazi

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“neo-feudais” e em termos de uma burocracia não rígida (“líquida”), com a recriação contínua de hierarquias de pessoas, com as formas e as instituições impessoais a assumirem uma dimensão epifenomenal em tal fluxo58. Se o lugar estrutural do direito positivo formal se tornaria intrinsecamente soft, dada a relativização da sua lógica sistémica interna, relativamente autónoma e independente, nem por isso, porém, estaria em vias de desaparecer. Em resposta ao que via como utópicos desejos de ir além do Direito, ou pelo menos de uma ordem de regras e formas fixas, numa futura instanciação integral do projecto comunitário nacional-socialista (anseios expressos em sectores que se auto-interpretavam como quintessencialmente nacionais-socialistas), K Larenz assinalaria

«[A] Comunidade popular não pode existir sem o seu direito. Comunidade e direito são originários assim como conteúdo e forma. A Comunidade dá forma ao seu direito e mediante isto a si própria; essa existe somente nesta sua auto-organização. (…) A vida não é pensável sem forma e figura, e assim até a comunidade do povo desapareceria se não desse à sua existência a sua forma e figura no direito»59.

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