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Técnicas e métodos do pacifismo de princípios

No documento Index (páginas 34-45)

A fim de prover uma exposição mais organizada e didática das técnicas e métodos empregados nas abordagens pacifistas, esta seção concentra-se na tradição baseada em princípios, embora seja importante reconhecer que o pacifismo de princípios e o pacifismo pragmático não demarcam dois polos irreconciliáveis e mutuamente excludentes. Conforme se discutiu nas seções anteriores, as abordagens pacifistas formam um espectro contínuo de posições que admite não apenas pontos de vistas absolutos, mas também posições mais nuançadas, flexíveis e mescladas. Embora esta seção seja estruturada em torno das referências centrais do pacifismo de princípios, isto não significa que os meios defendidos em cada abordagem devam ser vistos de forma isolada e independente. Existe uma porosidade entre essas abordagens, de modo que as suas técnicas e os seus métodos são muitas vezes coincidentes, parcialmente coincidentes ou complementares. Desse modo, é importante ter em mente que o que se altera fundamentalmente entre as abordagens baseadas em princípios e as abordagens pragmáticas são as razões evocadas para justificar a norma pacifista e as estratégias defendidas para a sua aplicação, e não necessariamente as suas técnicas e métodos. Mahatma Gandhi e Martin Luther King são geralmente considerados os autores mais representativos do pacifismo de princípios. Embora tanto Gandhi quanto King incorporem um viés pragmático às suas abordagens à resolução de conflitos, suas atitudes e seus escritos são fortemente influenciados por suas respetivas tradições espirituais, por suas visões e ideais sobre a vida em sociedade e pelo compromisso ético com a emergência de uma nova ordem social. Desse modo, embora devam ser reconhecidas as posições multifacetadas desses autores, esta seção segue a tendência dominante na bibliografia das abordagens pacifistas, classificando-os dentro da tradição baseada em princípios. Ao

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final desta seção, espera-se alcançar uma visão abrangente das suas abordagens à resolução de conflitos: as técnicas da satyagraha defendida por Gandhi e da “tensão criativa” proposta por King.

Antes de prosseguir, é importante esclarecer os sentidos dos termos “técnica” e “método” adotados nesta seção. Embora essas palavras sejam geralmente usadas de forma intercambiável, alguns dicionários definem a técnica como um conjunto de conhecimentos, processos ou princípios práticos para se obter um resultado, enquanto o método é definido num nível operacional mais baixo, como a maneira de fazer, como um modo de proceder. Dessa perspetiva, a técnica é vista de um ângulo mais abrangente, englobando um conjunto de métodos (ver, por exemplo, os dicionários Porto Editora ou Michaelis). Gene Sharp emprega esses dois termos num sentido que reflete essas definições. Segundo o autor, a ação não violenta é uma técnica que engloba um amplo conjunto de métodos de protesto, não-cooperação e intervenção (2005, p. 49). Outros autores definem a satyagraha de Gandhi como uma técnica social de ação não violenta que envolve diversos métodos como a não-cooperação, a desobediência civil, a greve ou o bloqueio (Bondurant 1988, pp. 3-4, 12; Jah 2003, p. 27), o que indica uma compreensão semelhante sobre a relação entre técnica e método. Esta seção segue essas indicações, empregando o termo técnica num sentido mais amplo para denominar o conjunto de conhecimentos, meios e habilidades para se atingir um fim, enquanto o termo método é compreendido num sentido operacional mais específico para designar cada tipo de procedimento particular empregado na realização de uma técnica.

Mahatma Gandhi e a Força da Verdade: a Satyagraha

O ativismo de Gandhi tem raízes profundas na desobediência civil, mas vai muito além da forma como essa noção se desenvolve dentro da tradição da não-resistência cristã e do pacifismo de consciência moral de Thoreau. Conforme discutiu-se no panorama histórico da seção anterior, a desobediência civil surge fortemente associada à ideia de que as pessoas não se obrigam a obedecer cegamente seus governos se elas acreditam, por razões religiosas ou por convicções morais, que as regras, as leis e as práticas de controlo social desses governos ofendem os princípios supremos das escrituras sagradas (como defendem Ballou e Tolstoy) ou parecem injustas (como defende Thoreau). Dentro da obra e do ativismo desses autores, a desobediência civil é geralmente tratada como uma consideração de ordem individual: a recusa ou a resistência a determinadas leis é justificável na medida em que elas ofendem a consciência pessoal ou parecem questionáveis à luz de uma “lei superior” que, aos olhos de cada indivíduo, assumem uma prioridade absoluta (como a lei de Deus ou algum princípio moral absoluto). Desse modo, a ideia da desobediência civil surge, conforme destaca Bondurant (1988, p. 3), num contexto de competição entre valores espirituais ou morais conflituantes e a solução desse dilema espiritual ou metafísico é encontrada, conforme defendem os chamados pacifistas de consciência, numa escolha íntima e individual.

O que é absolutamente marcante no ativismo de Gandhi ao longo das suas experimentações com a ação não violenta, primeiramente na África do Sul e posteriormente em diversos movimentos sociais e na luta pela independência da Índia, é que a desobediência civil deixa de ser uma questão de consciência individual para ser reelaborada dentro da consciência coletiva no contexto de grandes mobilizações populares. Dentro dessa expansão conceptual surge uma técnica muito mais complexa e

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abrangente, que Gandhi batiza de satyagraha, que vai além da resistência passiva e coloca a desobediência civil dentro de um conjunto mais amplo de métodos que inclui protestos, boicotes, greves, não-cooperação, usurpação de funções governamentais e construção de instituições paralelas. Proveniente do sânscrito – “satya” (verdade) e “agrah” (força, insistência) – a satyagraha (força da verdade) é concebida como uma técnica de resolução de conflitos através do mecanismo de conversão. Isto significa que a satyagraha não se limita à sua dimensão de resistência, mas pretende atuar na autotransformação das partes envolvidas no conflito através da conversão dos seus “corações e mentes” pela sinceridade e pela verdade. Trata-se, portanto, de uma técnica não violenta de resolução de conflitos que busca a conversão das partes através da busca da verdade (Jha 2003, p. 27), trazendo à tona o que parece “errado” ou permanece invisível na situação (injustiças, desigualdades, opressões, restrições à liberdade, etc.). Segundo Jha (2003, p. 25), o que é particularmente único na contribuição de Gandhi é que princípios tradicionalmente restritos a uma esfera íntima e individual, como a busca da verdade e a rejeição à violência, são transformados num instrumento de mobilização de massas.

Há aí uma clara dimensão pragmática, mas há também um compromisso com a verdade que, em Gandhi, tem uma forte dimensão espiritual. A satyagraha é literalmente fundada na “força da verdade” e é através de uma noção espiritual de verdade – legada pelo mosaico religioso que lhe serve de influência e percebida como um conceito absoluto e divino – que Gandhi justifica a não-violência: a “Verdade talvez seja o mais importante nome de Deus” e “onde há Verdade, há conhecimento” (Gandhi 2005, pp. 39-40); o homem, porém, é incapaz de conhecer a verdade nesse estado de pureza, de atingir a verdade em tal perfeição (Gandhi 1996, p. 37). Assim, “porque o homem não é capaz de conhecer a verdade absoluta”, ele não é “competente para punir” (Gandhi 1996, p. 51), ou seja, ele não pode justificar a violência em nome do que não consegue absolutamente conhecer. Para Gandhi, portanto, a não-violência (ahimsa) e a verdade (satya) são tão interligadas “que elas parecem ser as duas faces de uma mesma moeda”: a não-violência é o meio e a verdade é o fim (1996: 46). Segundo a interpretação de Bondurant (1988, pp. 16-17), o que Gandhi quer dizer é que, perante a incapacidade de conhecer a verdade em seu estado de perfeição, as pessoas devem manter uma abertura permanente para aqueles que pensam diferente; por esta razão, em vez de tentar resolver as diferenças usando a violência contra o oponente, os homens devem tentar livrar-se do erro através da prática da paciência e da compaixão. É através desse caminho que as pessoas se aproximam da verdade (ou seja, de Deus). Em suma, a satyagraha é uma força na direção da verdade, é um impulso para seguir a verdade como uma questão de princípio, a fim de reduzir o impacto negativo dos erros e tentar chegar o mais próximo possível da perfeição (Gandhi 1996, p. 37). Ainda que inatingível em seu sentido absoluto (ou seja, divino), a verdade funciona como um princípio operativo, como uma norma reguladora da conduta das partes envolvidas no conflito.

Se a abordagem de Gandhi se sustenta em alicerces fortemente cimentados em princípios espirituais e morais, é interessante notar que as suas experimentações com a satyagraha se desenvolvem dentro de um quadro igualmente pragmático e estratégico. A satyagraha não surge pronta na obra e no ativismo de Gandhi. Ao contrário, ela é desenvolvida ao longo de quase meio século através de progressos e retrocessos nas experiências de resistência conduzidas na África do Sul e na Índia. O nascimento da satyagraha ocorre na África do Sul, por volta de 1908, no contexto do movimento de resistência liderado

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por Gandhi contra as políticas discriminatórias dos colonizadores britânicos voltadas para a comunidade de indianos naquele país africano. Após essa experiência inicial na África do Sul, a satyagraha é implantada na Índia, não só em diversos movimentos por reformas sociais, mas principalmente na luta pela independência do país e na guerra civil entre hindus e muçulmanos no final da década de 1940. Um dos argumentos centrais do ativismo de Gandhi, conforme ele explica em toda a sua simplicidade, é o seguinte:

“Quando o meu pai impõe uma lei que parece repugnante à minha consciência, eu penso que o caminho menos drástico a adotar é respeitosamente dizer a ele: ‘pai, eu não posso obedecer isto’… Eu tenho submetido esse argumento à aceitação dos indianos e de todas as pessoas. Em vez de me sentir furioso com meu pai, eu devia respeitosamente dizer-lhe ‘eu não posso obedecer essa lei’. Não vejo nada de errado nisto. Se não é errado dizer isto ao meu pai, não me parece errado dizer isto a um amigo ou a um governo…”. (Gandhi 1996, pp. 62-63)

Portanto, o que Gandhi propõe através da satyagraha é uma técnica de resistência através da “desobediência respeitosa” aos opressores. Isto implica em ser transparente e verdadeiro (ou seja, ser sincero e honesto em seus propósitos), em nunca usar a violência física, em substituir o ódio pelo amor e pela compaixão, em não humilhar o oponente, e em assumir as eventuais punições e sofrimentos que possam resultar dessa atitude (Gandhi 1996, pp. 80-83). Para Gandhi, a satyagraha é “um teste de sinceridade” que envolve “um autossacrifício sólido e silencioso”; é na “humildade”, na “autocontenção” e na “correção de atitudes” onde reside a maior força da satyagraha, pois é através dessas atitudes que a verdade e a sinceridade de propósitos são mostradas aos oponentes (1996, pp. 48-49).

A partir dessas indicações, algumas delimitações conceptuais são importantes. Em primeiro lugar, a satyagraha não se confunde com a resistência passiva enquanto técnica de ação não violenta. Embora Gandhi adote o termo resistência passiva no início de seu ativismo na África do Sul, ele logo rejeita essa nomenclatura por duas razões principais. Primeiramente, o termo resistência passiva não traduz o poder ativo da não-violência. Em segundo lugar, a resistência passiva – que Gandhi observa no movimento sufragista das mulheres7 e no movimento não conformista8 do final do século dezanove e início do século vinte na Grã-Bretanha – instrumentaliza a não-violência como uma tática oportunista que, do seu ponto de vista, atende interesses egoístas e muda de acordo com a conveniência (Gandhi 1996, pp. 51-52). Ao comentar esses aspetos, Dalton (1996,

7 Ativismo em defesa do direito ao voto feminino na Grã-Bretanha, conduzido pelo movimento intitulado Women´s Social and Political Union, também conhecido por suffragettes, na primeira década do século XX. 8 Aqui, Gandhi refere-se à campanha de resistência passiva conduzida pelas chamadas igrejas não

conformistas da Inglaterra e de Gales, integradas por protestantes que, não sendo membros da Igreja Anglicana (como Metodistas, Batistas, Congregacionalistas, etc.), contestavam o Education Act de 1902. Essa lei, que integrava as escolas religiosas ao sistema estatal de ensino e passava a cobrar taxas para a sua manutenção e funcionamento, era percebida pelas igrejas não conformistas como uma fonte de privilégios no sistema educacional para a igreja oficial anglicana. Organizado em torno do National Passive

Resistance Committee, o movimento de resistência dos não conformistas, que se caracterizava basicamente

pela recusa de pagar essas taxas de educação, manteve-se ativo por cerca de quatro anos, produzindo reações das autoridades britânicas que levaram, dependendo do caso, a confisco de bens, leilões de propriedades e prisões das pessoas envolvidas nos atos de resistência (Hunt 2005, pp. 167-171).

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p. 10) explica que a intenção de Gandhi é mostrar que a resistência passiva é não violenta apenas na forma, mas não em substância. Os movimentos de resistência passiva criticados por Gandhi geralmente incorporam discursos de ódio e desrespeito ao oponente que não se coadunam com a sua visão de ação não violenta, daí a sua opção de desenvolver uma técnica própria compatível com a sua base espiritual e moral. Embora essa crítica pareça motivada por uma mera questão de princípios, as suas implicações estratégicas são cruciais dentro da visão de Gandhi sobre a resolução de conflitos. Considerando que a satyagraha opera através do mecanismo da conversão, as características defendidas por Gandhi – a sinceridade, a humildade, a civilidade, a disciplina, o respeito pelo oponente, o controlo pessoal e a disposição para o autossacrifício – são virtudes fundamentais para a efetividade do mecanismo de conversão. É através da manifestação dessas virtudes que os grupos de resistência conseguem “desarmar a raiva e o ódio” do oponente disposto a usar a força (Gandhi 1996, p. 47).

A segunda delimitação conceptual importante refere-se à relação entre a satyagraha, a desobediência civil e a não-cooperação. Embora Gandhi não se refira textualmente à satyagraha como “técnica” e à desobediência civil e à não-cooperação como “métodos”, é nesse sentido que ele hierarquiza esses termos. Para ele, a desobediência civil (entendida como a violação civil de decretos legais considerados amorais) e a não- cooperação (entendida como a recusa popular de cooperar com Estados considerados corruptos e opressores) são “ramos” da satyagraha que, por sua vez, engloba todo o conjunto de formas “de resistência não violenta que reivindicam a Verdade” (Gandhi 1996, p. 51). Nesse sentido, pode-se afirmar que a satyagraha é uma técnica social de ação não violenta, tendo a verdade por princípio, que pode ser colocada em prática através de um conjunto de métodos, entre os quais a não-cooperação e a desobediência civil.

Em seu abrangente estudo sobre a satyagraha, Bondurant destaca o facto de os escritos de Gandhi formarem um conjunto fragmentado de discursos, declarações, sermões e respostas aos críticos, geralmente motivados por questões imediatas relacionadas aos seus experimentos com a satyagraha, não conseguindo prover, dessa forma, uma explanação sistematizada da sua técnica, dos seus métodos e da sua estratégia de ação. Para além disto, é importante notar que o assassinato de Gandhi em 1948, enquanto ele ainda prosseguia com as suas experimentações com a satyagraha no contexto dos conflitos religiosos na Índia, impediu que ele chegasse a uma visão completa da sua técnica de ação não violenta. Por essas razões, Bondurant (1988, p. 7) considera que os textos de Gandhi não devem ser interpretados em termos de uma teoria política, mas sim como partes integrantes do seu ativismo político dentro de um longo processo de experimentações que não chegou a produzir uma explanação sistemática da sua técnica e dos seus métodos de ação não-violenta. Desse modo, recorrendo não só aos escritos de Gandhi, mas principalmente ao estudo pormenorizado das principais campanhas de satyagraha conduzidas na Índia, Bondurant tenta completar esse esforço de teorização, identificando nove passos na aplicação dessa técnica, onde diversos métodos de ação não violenta podem ser identificados (ver tabela 1).

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Tabela 1: Principais passos na estratégia de implantação da satyagraha (1) Negocie com o oponente

(2) Prepare os grupos de resistência para a ação direta

(3) Envolva-se em atos de protesto (demonstrando o nível de oposição) (4) Emita um ultimato

(5) Implemente boicotes económicos e greves (6) Implemente campanhas de não-cooperação (7) Implemente campanhas de desobediência civil (8) Usurpe as funções governamentais

(9) Construa instituições governamentais paralelas Fonte: Bondurant (1988, p. 40)

Entre esses métodos, destacam-se a negociação, o protesto, os boicotes e as greves, a não-cooperação, a desobediência civil, a usurpação de funções governamentais e a criação de instituições paralelas. Embora os passos envolvidos na satyagraha e a escolha dos métodos sejam determinados pelas circunstâncias específicas de cada situação, Bondurant considera, a partir dos casos estudados, que a técnica da satyagraha pode ser explicada através desse conjunto de nove passos, servindo não só como um parâmetro geral da técnica proposta por Gandhi, mas também como uma moldura de análise para o estudo de cada campanha de satyagraha em particular.

Ainda que se reconheçam as dificuldades apontadas por Bondurant nos escritos de Gandhi, é possível identificar em sua obra algumas indicações claras sobre dois métodos, a não-cooperação e a desobediência civil, que Gandhi considera particularmente relevantes na satyagraha e que devem ser aplicados nesta ordem sequencial em razão do maior grau de complexidade envolvido na desobediência civil, tanto em termos de organização, disciplina e treino da população, quanto em termos da disposição para o autossacrifício perante a possibilidade de reações violentas do oponente. A resolução sobre a não-cooperação emitida por Gandhi em 1920, dando origem a uma campanha sistemática de resistência da população indiana contra a dominação britânica entre 1920 e 1921, ilustra de que modo o método da não-cooperação é concebido e desdobrado em diversos outros métodos (ver tabela 2).

Tabela 2: Síntese da resolução sobre a não-cooperação com o governo colonial britânico emitida por Gandhi

(a) Entrega de títulos e cargos honoríficos e renúncia a cargos nomeados em organismos locais (b) Recusa a comparecer a reuniões governamentais e a outros eventos oficiais e não-oficiais (c) Retirada gradual das crianças das escolas e dos colégios pertencentes, apoiados ou

controlados pelo governo colonial e transferência das crianças para escolas e colégios das províncias locais

(d) Boicote gradual aos tribunais britânicos e estabelecimento de tribunais privados para a resolução de litígios

(e) Recusa da parte dos militares, clérigos e trabalhadores indianos de atender ao recrutamento britânico para servir no estrangeiro

(f) Retirada da candidatura a cargos eletivos e recusa dos eleitores de votar em candidatos que se ofereçam para a eleição

(g) Boicote às mercadorias provenientes da Grã-Bretanha Fonte: Gandhi (1996, pp. 59-60)

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Perante o sucesso dessa campanha de não-cooperação em 1921, Gandhi passa a considerar a possibilidade de escalar a ação não violenta para uma campanha de desobediência civil em massa que, do seu ponto de vista, constitui um método mais desafiador e complexo de ação não violenta. Por uma série de razões, incluindo a sua prisão entre 1921 e 1924, Gandhi é levado a postergar esse projeto e a conduzir, nos anos que se seguem à sua libertação, um programa de reformas sociais em menor escala, como a abolição da intocabilidade por exemplo,9 até que o sucesso de uma pequena campanha de resistência ao pagamento de taxas no distrito de Bardoli, em 1928, prepara o terreno para uma longa campanha de desobediência civil em escala nacional, iniciada em 1930. Essa ação histórica, que Dalton considera a maior campanha de desobediência civil jamais vista (1996, p. 72), fica conhecida como “a satyagraha do sal”, pois envolve a resistência ao pagamento dos altos impostos cobrados aos indianos sobre o sal explorado na Índia sob o monopólio britânico. Após uma longa marcha de vinte e dois dias, à qual se juntam milhares de participantes, Gandhi chega ao seu destino na costa ocidental da Índia, coleta um punhado de sal natural, o que é legalmente proibido por contrariar o monopólio britânico sobre a exploração desse recurso, e sob as lentes da imprensa americana, britânica e de outros países europeus declara: “Com isto, eu abalo as fundações do Império britânico” e “peço a simpatia do mundo nesta batalha do Direito contra o Poder” (citado por Dalton 1996, p. 72). As repercussões extraordinárias desse ato simbólico resultam numa campanha de desobediência civil em massa que leva milhões de indianos a quebrarem as leis da taxação do sal, provocando uma onda de prisões em massa que, longe de desencorajar a mobilização popular, fortalecem ainda mais a resistência através de protestos, marchas, greves gerais, boicote aos produtos britânicos, atos simbólicos de proclamação da independência, ocupação das instalações dos governos municipais e criação de instituições governamentais paralelas. Isto leva a uma paralisação completa do governo colonial britânico e abre o caminho para as negociações que culminam na independência da Índia em 1947 (Nepstad 2015, capítulo 3).

Do ponto de vista da resolução de conflitos, pode-se dizer, em síntese, que a satyagraha é experimentada por Gandhi através de uma busca incessante por uma sociedade pacífica em todos os níveis – interpessoal, intercomunitário e internacional. Para Gandhi, uma sociedade pacífica só pode ser alcançada através da resolução dos conflitos inerentes a todas essas esferas, o que exige um esforço permanente; a sua biografia é o maior testemunho dessa busca interminável. É importante ainda observar que a técnica de Gandhi e os métodos por ele mobilizados não devem ser compreendidos apenas no nível operacional e estratégico. A aplicação da satyagraha e dos seus métodos de ação requer

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