• Nenhum resultado encontrado

Organização: Marcus Ianon

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 67-73)

Introdução

A atual crise brasileira tem sido um tema central de discussão na esfera pública, inclusive na academia, nesse caso, especialmente nas ciências sociais. Ela engendrou fatos e processos inéditos, começando pelas

manifestações de junho de 2013, passando pela impactante Operação Lava Jato, pela disputadíssima eleição presidencial de 2014, pela forte recessão, pelo protagonismo da grande mídia e, sobretudo, pelo segundo impedimento presidencial sob a vigência da Constituição de 1988. A onipresença da crise ocupa a atenção dos cientistas políticos e do pensamento político acadêmico em geral, desafiando-os a decifrar essa nova e complexa realidade e a se autoanalisar, avaliando o quanto seus argumentos e hipóteses de pesquisa iluminam a compreensão das mudanças e dos impasses em curso no país. Esta edição da Sinais Sociais traz três contribuições da ciência política sobre a crise nacional, tratando dos seguintes objetos: participação, democracia e coalizões. Uma pista de sua conexão cognitiva é o vínculo a abordagens alternativas ao institucionalismo predominante na disciplina no Brasil; os artigos consideram as instituições, mas de um modo distinto.

Luciana Tatagiba esclarece o ponto ao se referir à ciência política do instituinte, que não se limita ao instituído. A ênfase heterodoxa no clássico diálogo

entre instituído e instituinte pode auxiliar a pesquisa acadêmica da política, especialmente para examinar uma crise que parece explicitar os limites das teorias, argumentos e métodos que a orientam. Esse primeiro artigo analisa os protestos que eclodiram no processo da crise, visando, especialmente, compreender a participação política da direita, que a autora prefere estudar no plural e em ação, por ser um objeto de difícil definição e de manifestação

empírica variada: “direitas em movimento”. Ela questiona abordagens da ciência política que se mostram incapazes “de compreender e antecipar a mudança social”, limitação talvez decorrente da dificuldade da disciplina para “explicar processos”. A realização de protestos por uma direita mobilizada nas ruas, espaço participativo até então praticamente monopolizado pela esquerda, foi uma das principais novidades ocorridas durante o primeiro mandato da presidenta Dilma, principalmente a partir de 2013, embora os dados da autora abarquem o período 2011-2016. Tatagiba relaciona a nova direita ao contexto e estimula a avaliar seu impacto político-institucional. Enfim, a autora defende que a ciência política incorpore as perspectivas bottom-up, que observam processos instituintes importantes para a compreensão dos resultados do jogo político e que podem operar tanto para democratizar quanto para desdemocratizar. Protestos são formas de participação típicas nas democracias, para apoiar ou se opor às mudanças. Luis Felipe Miguel trata das fragilidades da construção da democracia no Brasil, desde a crise da ditadura militar, que ajudam a explicar a ocorrência de um impeachment sem claro crime de responsabilidade. Embora os desencontros entre representantes e representados não sejam exclusividade da democracia brasileira, o autor destaca que uma debilidade do regime vigente no país está nos partidos, dada sua importância no governo representativo. O sistema partidário é extremamente fragmentado e são fracas nos partidos tanto a sua conexão com o eleitorado – que os mecanismos de barganha do presidencialismo de coalizão reforçam – quanto a sua coesão interna. A separação entre a inclusão política democrática e a imensa desigualdade social é outro fator estrutural limitador da ordem democrática de 1988. A superexploração da mão de obra tem sido uma tendência funcional

para a afirmação do capitalismo no Brasil, operando como uma vantagem comparativa diante da economia internacional.

Em relação à mídia de massa, Miguel frisa o seu papel atual central de filtragem do debate público nos regimes políticos, especialmente ao cumprir funções tipicamente observáveis na relação de representação política. A concentração da propriedade nesse setor estratégico para o processo democrático implica em poderosa tendência de dominação do discurso e da agenda públicas pela “lei do mais forte”.

Além da organização deste dossiê, tenho a honra de participar como autor de um artigo sobre as coalizões. O texto propõe uma abordagem ampliada, que busca o conjunto de interseção entre as coalizões institucionais ou partidárias e as coalizões sociais, para entender a articulação, costurada na ação e no processo políticos, entre as decisões e as instituições públicas fundamentais em determinados períodos e, por outro lado, os grandes interesses.

A partir de uma revisão bibliográfica do tema das coalizões nas ciências sociais em geral e aplicadas ao Brasil, o terceiro artigo deste dossiê pergunta se o suporte dado pelas coalizões à tomada de decisões do Estado provém apenas do presidencialismo de coalizão, ou se a coalização também remete a uma estrutura mais ampla, reunindo atores político-partidários e sociais e elites da burocracia pública nos três poderes. Estes são arranjos que não costumam operar tão formalmente quanto os da coalizão vista exclusivamente como vinculação entre o chefe do Executivo e os partidos legislativos. O suporte político e o conteúdo das decisões legislativas ou administrativas começam e acabam nas preferências e nas coalizões, mediadas por partidos, entre os representantes eleitos? Ou também são explicáveis por alianças que unem e opõem, de um modo complexo e sempre contextualizado, atores

político-institucionais e sociais no processo decisório público? Tal coalizão ampliada é impossível de ser apreendida apenas pelos instrumentos teóricos e metodológicos que evidenciam o presidencialismo de coalizão, embora eles sejam valiosos para explicar o processo decisório legislativo do sistema político brasileiro.

Em relação à crise brasileira, Miguel destaca que, se a adesão das elites às regras da democracia não fosse baixa, o Legislativo, diante da robusta divergência em torno do impedimento, não teria se sobreposto à legitimidade conferida pelas urnas. Nesse contexto, meu artigo sugere conceber o

impeachment como um processo não apenas alicerçado na endogenia político- -institucional, mas também nas ações pertinentes à disputa de coalizões no sentido ampliado. Dilma foi impedida por uma decisão formal do sistema político, mas induzida, em termos sistêmicos, pela coalizão social e política neoliberal, a “ponte para o futuro” das direitas em movimento.

Os três artigos abordam a crise nacional fazendo um diálogo entre a sociedade (seus atores, processos e estruturas) e a esfera político-institucional. Diante de uma conjuntura histórica que envolve o país em um enigma esfíngico, tanto teórico quanto prático, os leitores podem encontrar nesse breve dossiê olhares alternativos para a indispensável reflexão política.

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 67-73)