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CAPÍTULO IV- Análise da Interpretação e Voz das Crianças Sobre as AEC

4. Organização do Quotidiano

A construção da noção de tempo vai-se formando conforme a organização da rotina pedagógica. Nota-se que as crianças dos 1.º, 2.º e alguns do 3.º ano ainda não têm a organização temporal interiorizada, revelando querer actividades a momentos que não são possíveis, como por exemplo “aulas” ao fim do dia (fig. 1).

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Fig. 2: Fada Azul, 2.º ano, escola Verde, HD

Quando as crianças construíram os seus HD, a hora da refeição é, com frequência, mencionada apenas no momento da noite (fig. 2), o que leva a inferir que o tempo da refeição – almoço - não é relevante como actividade, mas sim o acto de brincar.

Durante os últimos trinta anos tem-se vindo a assistir a uma institucionalização dos tempos livres das crianças, advinda das mudanças ocorridas na estrutura familiar. O tempo escolar anda a par da institucionalização do tempo livre das crianças (Pereira e Neto, 1999). Tal facto pode-se observar na escola Azul, onde há muitos meninos que

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96 estão no ATL até às 19h. Este serviço funciona após a hora das AEC e quando

preenchem o HD raramente mencionam tempo para estarem no ATL (fig. 3).

Fig. 3:Hansel,3.º ano, escola Azul, HR

As crianças da escola Azul têm muitas actividades depois das AEC, natação, catequese, patinagem, futebol, judo, outro inglês (num instituto de línguas) antes de irem para casa (fig. 4).

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Fig. 4: Mickey, 3.º ano, escola Azul, HR

Segundo Pereira e Neto (1999), nos centros urbanos, entre 30 a 50% das crianças fazem mais de três actividades artísticas ou desportivas organizadas, considerando, este autor, um “stress provocado” sem qualquer sentido, sendo que o objectivo destas práticas é o aperfeiçoamento. Os adultos assumem estas actividades como alternativas ao jogo livre e espontâneo, pelo que forçam a criança a participar num esquema no qual acreditam. Quando preenchem o HD, as crianças mantêm algumas das actividades que

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98 realizam, o que traduz não só que existe por parte das crianças uma selecção das

actividades que lhes dá mais prazer, mas também que os adultos procuram ocupar os tempos livres das crianças com “aprendizagens úteis”, ao invés de actividades meramente de ócio. O oposto se passa com as crianças da escola Verde, que têm uma rotina semanal idêntica entre si depois das AEC e em todos os dias da semana: “TPC, jogar computador ou ver televisão e comer” (fig, 5), sendo poucas as que têm natação.

Fig. 5: Robin dos Bosques, 4.º ano, escola Verde, HR

Num estudo realizado por Pinto (1995, in Pereira e Neto, 1999: 105), este refere que as crianças usam muito do seu tempo livre a ver televisão e fazem-no com prazer. O

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99 recurso à televisão é, muitas vezes, resultado da ausência de alternativas mais

gratificantes “[…] esta pode não ser a sua 1.ª opção na ocupação dos tempos livres, mas devido ao reduzido leque de opções que se lhes oferece, parece ser a mais disponível”. Esta realidade é constatada sobretudo nas crianças da escola Verde, que incluem na sua rotina diária a televisão e manifestam o desejo de manter esta rotina durante o dia no HD, assim como jogar computador, sendo que, as crianças que têm uma rotina diária de “TPC, jogar computador, comer” manifestam o desejo de realizar essa actividade durante o dia, o mesmo se passando com as crianças cuja rotina é “TPC, ver televisão, comer”. No HD manifestam desejo de ver televisão durante e ao longo do dia, ou porque têm prazer nessa actividade, ou porque reproduzem as vivências do seu quotidiano (fig. 5 e 6).

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100 Os meninos do 1.º ano da escola Azul não mencionam o brincar nos seus HR,

nem jogar computador e quando preenchem o seu HD esta actividade aparece como uma das que gostariam de fazer, assim como o “brincar”, que é mencionado bastantes vezes nos horários, sendo que as “aulas” aparecem apenas num momento do dia (fig. 7). Mantêm a catequese e em alguns casos mais do que uma vez por semana. Os meninos da escola Verde também não referem, na sua rotina diária, o “brincar”, mas sim jogar computador ou ver televisão.

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101 Jogar computador aparece como uma actividade e não como uma brincadeira, que

querem manter quando preenchem o HD (fig. 7). Algumas crianças colocam “TPC” mais do que uma vez por dia, algumas vezes até em substituição das aulas. O que leva a questionar se gostariam de realizar a aprendizagem em casa, ou, se por outro lado, valorizam de tal maneira os trabalhos de casa que consideram ser esse o momento da aprendizagem. Todas as crianças da escola Verde expressam a necessidade de brincar e algumas colocam “estar em casa” à hora de almoço, assim como “passear com os pais” durante e no fim do dia, o que revela a “saudade” do ambiente familiar manifestado na consideração de ser muito tempo de permanência na escola.

Algumas crianças do 2.º ano da escola Azul já colocam o “brincar” nos seus horários, o que leva a inferir se tal não terá a ver com a quantidade de trabalhos de casa que os professores incumbem os alunos de realizar em casa, pois estes não os realizam no Apoio ao Estudo como refere a Pucca (2.º ano, escola Azul, Entrevista 1) “não faço os TPC no Apoio ao Estudo”. Porém, o “brincar” aparece como uma necessidade manifesta por todas as crianças nos HD. Também as crianças deste ano referem, tal como as do 1.º ano, “estar em casa” e “passear com os pais” em vários momentos do dia e da semana. Este facto poderá indicar que o tempo que sentem que as actividades que os ocupam durante todo o dia, antes e depois da escola, impede o gozo do seu espaço, da sua casa, dos seus brinquedos, dos seus pais.

“É fundamental o tempo para a família, de modo que a criança possa ter tempo disponível e espaço para poder realizar as suas actividades de lazer. Muitas têm no seu dia-a-dia actividades repetitivas e de rotina sem retirarem delas qualquer prazer” (Neto, 1994 in Neto, 1999: 99).

As crianças do 3.º e 4.º ano da escola Azul, mencionam, no HD, “aulas – comer - aulas”, o que leva a questionar se estão a reproduzir o seu quotidiano pelo hábito de não lhes ser dada a possibilidade de participarem e tomarem decisões face aos assuntos que lhes dizem respeito, um direito instituído mas não praticado, ou se, por outro lado, na disposição desta rotina está subjacente uma interiorização da organização temporal e do reconhecimento da importância do conhecimento através da escola. Também se verifica que há crianças que colocam apenas a manhã com aulas curriculares e a seguir ao almoço as AEC preferidas, sendo que música aparece com alguma frequência. Muitas crianças referem que gostariam de ter “natação”, quer quem já tem esta actividade após

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102 as AEC, quer quem tem outras actividades, ou fica no ATL até às 19h. O “brincar” é

uma necessidade constante nos HD, em todas as crianças de todos os anos de escolaridade da escola Azul.

As crianças da escola Verde, tanto as do 3.º como do 4.º ano não mencionam o “brincar”, nem em horário de escola nem nos momentos de estar em casa, mas antes muitos espaços de “intervalo” durante o dia (fig. 8), o que remete para o vínculo das relações de amizade e de brincadeira na escola, sendo o brincar em casa um acto isolado e quando o tempo o permite.

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103 As crianças do 3.º ano da escola Verde têm na sua rotina diária os jogos de

computador e quando preenchem o HD referem muitas vezes esta actividade. Nesta escola existe uma sala de informática e todas as salas têm um quadro interactivo e ligação à internet. Porém, este recurso não é aproveitado para a existência de uma AEC no domínio das “actividades das tecnologias da informação e comunicação”, como prevê o Despacho n.º 14 460/2008, de 26 de Maio. Tal facto decorre das opções tomadas pela autarquia em termos de oferta de AEC, mediante um plano de comparticipação regulado pelo Despacho atrás mencionado.