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A escrita da tese

Esta Tese traz uma trajetória de narrativas encarnadas - dançadas, tecidas em uma trama autoetnográfica11 cujo fio narrativo são as experiências singulares de um processo de imersão no Método BPI. Ela busca clarear aspectos diretamente associados ao campo emocional e ao movimento, apresentando constantes reflexões e elaborações de diferentes naturezas. Em consonância, apresenta uma pesquisadora atenta e disposta a vivenciar perdas, ganhos e transformações contidas nas fontes de si e nos diálogos estabelecidos durante todo o percurso da pesquisa, que tem caráter transpessoal12, embora parta da observação do processo

de um indivíduo.

É uma tese que apresenta um mapa biográfico de experiências, levando em consideração aspectos dos contextos histórico, geográfico, político, social, econômico e cultural da pesquisadora. Atenta-se enfaticamente, para o universo psíquico e simbólico, traçando pistas de uma identidade em deslocamento. Essa abordagem conduz o leitor à medida que questões oriundas do processo vão sendo desveladas, como véus retirados cuidadosamente.

11 Para Jones, Adams e Ellis (2013), a autoetnografia representa a experiência pessoal no contexto das relações,

categorias sociais e práticas culturais, de forma que o método procura revelar o conhecimento de dentro do fenômeno, demonstrando, assim, aspectos da vida cultural que não podem ser acessados na pesquisa convencional. O método da autoetnografia propõe a pesquisa social em que o pesquisador não precisa suprimir sua subjetividade, pois pode “refletir nas consequências do [seu] trabalho, não só para os outros, mas para [si] mesmo também, e onde todas as partes – emocional, espiritual, intelectual, corporal, e moral – podem ter voz e serem integradas” (JONES; ADAMS; ELLIS, 2013, p. 53).

12 Transpessoal caracteriza-se por ser uma experiência que, segundo Walsh e Vaughan (1997, p. 17), pode

definir-se como “aquela e em que o senso de identidade ou do eu ultrapassa (trans + passar = ir além) o individual e o pessoal a fim de abarcar aspectos da humanidade, da vida, da psique e do cosmo”.

A singularidade da narrativa de mediação entre o que foi vivido e a significação da ação da escrita, dá-se através das referências bibliográficas, as quais dialogam com a prática vivenciada e a imersão metodológica, culminando em um material artístico coerente, síntese de todo o processo, e uma escrita viva. É, portanto, uma tese que esmiúça o itinerário e a trajetória de um sujeito-pesquisador.

Escrever este texto foi como permitir que a memória da carne fosse atualizada e ressignificada a cada nova reflexão. Buscou-se, para tanto, abrir espaço para que aquilo que ficou mais forte no corpo pudesse ser destrinchado a partir do tema pulsante da pesquisa, que é identidade. Deu-se, assim, a investigação do Eu através da prática criativa. Para tal, demos especial atenção aos detalhes por meio de uma narrativa que apresenta o campo emocional instaurado nas várias pesquisas de campo realizadas; aos embates e euforias do processo de criação; à apresentação de Zafira, personagem incorporada, e sua extensa gama de conteúdos de ordem emocional, simbólico, mítico etc.

O resultado predominante desta pesquisa é a compreensão da personagem como um espelho do intérprete em suas delineações mais minuciosamente traçadas. No BPI, a personagem tem a capacidade de revelar aspectos pouco reconhecidos do intérprete e que, quando integrados à sua imagem corporal, permitem uma nova consciência da própria identidade, um maior sentido de totalidade e, consequentemente, um maior repertório gestual e expressivo. Vivenciar o processo todo e se aprofundar no universo da personagem por meio desse método permitiu que se trabalhasse diretamente com a dinamicidade da identidade, descobrindo-a à medida que se desvendava a própria criação.

Esta tese está, enfim, dividida em três partes complementares entre si: I. Introdução; II. Coleta de dados e relatos do processo; III. Considerações Finais. Encontramos em cada uma dessas partes:

Parte 1: Introdução

A parte introdutória abre a narrativa com revelações da autora no que concerne à sua sensação diante do desafio de escrever este texto. Também permite que ela se apresente sinteticamente ao leitor e trace, em formato de relato, os caminhos que a levaram ao método escolhido e ao tema central desta pesquisa. Em seguida, apresenta ao leitor, de maneira resumida, os eixos e suas ferramentas do BPI, bem como as estratégias metodológicas utilizadas neste processo. Por fim, apresenta de que maneira a tese foi organizada.

Somado a isso tudo, questões que ordenam o trabalho, pressupostos orientados, autores com os quais se é possível dialogar e motivações do percurso, serão introduzidos ao leitor.

Aponta-se de antemão um diferencial desse método, a partir da experiência da autora: o de sentir profundamente, por inteiro e em segurança. Assim, se propõe que as emoções sejam vivenciadas, que os campos coabitados emoldurem o processo (diferentemente de ser apenas produto de reprodução cênica) e que, por fim, a personagem seja entendida e experimentada enquanto parte de si, do próprio universo simbólico e psíquico do bailarino-pesquisador-intérprete (não sendo, portanto, concebida enquanto algo externo, alheio ou idealizado pelo intérprete ou diretor).

Parte 2: Coleta de dados e relatos do processo

A segunda parte da tese diz respeito à análise da coleta de dados e está dividida em três capítulos:

- Capítulo I: apresenta uma série de relatos sensíveis de, aproximadamente, sessenta encontros com ciganas alocadas no Estado de São Paulo. Os dados de coabitação apresentam uma série de reflexões fruto do encontro com o outro, que de certa maneira, já se apresentava como parte de si. A pesquisa de campo, valiosa ferramenta do BPI, é explorada e compartilhada com o leitor nesse capítulo. Importante citar que os nomes dos participantes desta pesquisa foram alterados. Como o foco desta pesquisa é a experiência da intérprete-pesquisadora, essa foi uma escolha que buscou preservar as pessoas dos campos coabitados bem como a própria pesquisadora que, durante todo o texto, se coloca de maneira transparente, relatando suas angústias e prazeres indiscriminadamente. A discussão e análise de dados não recai numa observação crítica das pessoas e situações dos campos, mas no que reverberou desses encontros e como isso afetou a pesquisadora, tocando pontos da própria identidade.

- Capítulo 2: descreve o processo de criação da pesquisadora e como a questão da identidade foi sendo burilada à medida que os trabalhos laboratoriais foram sendo intensificados. Foram identificados quatro momentos distintos, porém complementares, os quais são descritos em ordem de acontecimentos, dado o desenvolvimento da intérprete ao longo da experiência laboratorial. Apresenta-se uma narrativa que extravasa o aqui (interconexão de lugares) e agora

(interconexão de temporalidades), por carregar em seus relatos aspectos relacionados a um passado já vivenciado (memórias corporais), anunciado no presente ressignificado, e que carrega uma perspectiva de futuro a partir da projeção da personagem. Os Laboratórios Dirigidos serão a base desses relatos; - Capítulo 3: dedica-se à descrição das etapas do projeto O corpo como Relicário, dirigido pela professora Graziela Rodrigues, descrevendo-o à luz da experiência da autora desta tese. O capítulo apresenta como a identidade foi investigada e trabalhada ao mesmo tempo em que se desenvolvia um trabalho cênico. Esse capítulo é de suma importância para este estudo pois a Zafira, personagem incorporada e estruturada ao longo deste processo, carrega importantes substratos da identidade da autora, tendo aqui, portanto, um caráter de elaboração e síntese.

Parte 3: Considerações Finais

A terceira e última parte da Tese traz a identidade deflagrada, pormenorizada e repensada no decorrer do processo, até chegar ao amadurecimento da personagem. Esta apresentou-se, justamente, como sendo uma faceta profunda e complexa do intérprete, o conteúdo mais elaborado de si em um contexto de corpo real.

Discute-se, também, a minha formação em dança, a qual foi de uma travessia que se iniciou com alto investimento narcísico, mas que, com o tempo, passou a se preocupar com a questão da imagem corporal, mudando inúmeros paradigmas internos. Isso exigiu que a dança fosse repensada a partir desse novo enfoque: distanciando-se da exposição de si, dos modelos homogeneizadores e do enaltecimento de um corpo ideal, encontrou-se uma nova vertente de expressão corporal, uma brecha para repensar a práxis artística, confrontando valores e tradições arraigados e assumindo um corpo real e, portanto, mais consciente.

Repensar minha dança por meio dessa nova metodologia de trabalho e entender o papel do bailarino nesse processo peculiar de criação me fez entrar em contato com outros tantos temas diretamente relacionados à minha identidade, tais como: o feminino, o valor do sujeito da experiência, a empatia e a capacidade de exercitar uma apreensão cinestésia do entorno, as fronteiras que me delineiam e tantos outros temas deflagrados, abordados e trabalhados durante o processo. A dinamicidade e complexidade do conceito de identidade pôde, enfim, ser aprofundada e entendida com mais propriedade por já ter vivenciado todo o percurso proposto por esse método em meu próprio corpo.

Um convite ao leitor

Ao longo desta tese busco conduzir o leitor por uma rede de relatos - de atos de resistências e espaços de entrega - por meio de descrições de encontros e construção de caminhos, em um trabalho de escavação e restauração de saberes e fazeres em um tempo- espaço altamente emocional (deslocamento do tempo-espaço cotidiano), próprio e coerente com a proposta original desta pesquisa.

Reconheço assim, que esta tese sem você leitor, é uma junção de memórias e elaborações de processo, preciosas enquanto aprendizados pessoais, mas ainda, extremamente solitária enquanto troca humana. A partir deste nosso encontro, algo novo pode acontecer!

É possível que você ao deparar-se com esses tantos relatos de processo, acrescente à esta leitura, seu próprio universo simbólico, e isso permitirá que essa tese se torne, de fato, uma rede de conexões, o que seria maravilhoso, porque é justamente essa a natureza dessa pesquisa e do método trabalhado.

A você leitor, faço então, um convite: que essa leitura oportunize este e novos encontros e que nosso movimento de aproximação possa gerar, por fim, algo significativo e transformador.

- PARTE 2: Coleta de Dados e Relatos do Processo -

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