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2 O DIREITO E OS PRINCÍPIOS: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA

2.3 O PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER

2.3.1 Origem e Conceito

O princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano é fruto do direito internacional advindo, conseqüentemente, dos tratados internacionais de direitos humanos. Partindo da evolução do direito internacional, chegamos, até a Declaração Universal dos Direitos Humanos que documentou pela primeira vez a preocupação com o ser humano como o sujeito principal de uma relação jurídica. Foi por ela então, que surgiu a doutrina que passou a pensar na proteção ao ser humano como um princípio. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, preocupada com a dignidade da pessoa humana, após o ápice do afastamento da humanidade, em respeitá-la, insere uma série de considerações a o respeito à dignidade humana, que mais se parecem com normas princípiológicas do que com um sistema posto.

Conforme desenvolvemos acima, a Declaração não é fruto de uma invenção aleatória e sim fruto dos antecedentes históricos do processo de universalização e internacionalização dos direitos humanos146. Neste sentido Valerio de Oliveira Mazzuoli afirma que “desde a Segunda Guerra Mundial, em decorrência dos horrores cometidos durante este período, os direitos humanos constituem um dos temas principais do direito internacional contemporâneo ...”, sendo que “a normatividade internacional de proteção dos direitos humanos, conquistada através de incessantes lutas históricas, e consubstanciada em inúmeros tratados concluídos com este propósito, foi fruto de um lento e gradual processo de internacionalização e universalização desses mesmos direitos” 147.

É por essa percepção desenvolvida até então, de que a origem dos direitos humanos é indissociável da evolução histórica da humanidade, é que concluímos o quão importante nos mostra, atualmente, a aceitação da prevalência da norma mais favorável ao ser humano como pressuposto, inafastável, do atingimento da efetiva e verdadeira justiça. Quando desenvolvermos, acima, a origem do direito internacional, antes de iniciar a origem dos

146 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. obr. cit. p. 209. 147 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. obr. cit. p. 212.

direitos humanos, era para, ao chegar neste ponto, frisarmos que a preocupação com a primazia da norma mais favorável ao ser humano não é uma questão piegas ou meramente doutrinária, mas sim uma questão de se inserir o direito numa nova ótica, voltada a busca da verdadeira justiça trazida por Aristóteles 148 e tão menosprezada pelo positivismo jurídico.

Quando estudamos livros voltados aos direitos humanos, sentimos a deficiência de uma coerência histórica entre os direitos humanos e a criação do direito internacional. E esta ligação, da origem do direito internacional com a origem dos direitos humanos, é indispensável para a quebra do paradigma positivista, porque nos permite comprovar a importância deste tema, na busca de uma efetiva proteção da dignidade humana, saindo da esfera puramente formal de sua aplicação, como verificamos hoje na aplicação do direito. Ao constatarmos que os direitos internacionais humanos, em si, originaram-se dos absurdos cometidos na guerra, apesar de, desde a Antiguidade, já existirem relações internacionais entre povos independentes, só nos fortalece a crença que deveremos evoluir no direito, cindindo-se de imposições atuais do direito positivo, criando um novo paradigma na aplicação do direito: da proteção máxima do ser humano no caso concreto.

A junção entre a evolução histórica da humanidade e a preocupação de se adotar novos parâmetros de interpretação do direito a fim de se alcançar a plenitude do ser humano, a partir do afastamento do positivismo jurídico, nos permite incutir um novo pensamento jurídico, com base não só em regras jurídicas, mas também com base em princípios jurídicos. Sem a quebra da visão puramente positivista é perceptível que jamais atingiremos esta plenitude, fechando os olhos, por conseqüência, ao mundo que está ao nosso redor, com a justificativa de estarmos aplicando a lei. É neste ponto, aliás, a importância da obra de Alysson Leandro Mascaro 149 que nos explica como surgiu a legalidade, nos fazendo entender essa insatisfação de muitos doutrinadores humanistas contra a legalidade do direito.

A relação entre a origem do direito internacional e dos direitos humanos juntamente com a crítica ao legalismo e a aplicação do direito ao caso concreto a partir de princípios é que conseguiremos ao menos diminuir as desigualdades sociais, as discriminações, enfim, a igualdade de direitos e condições a todos os seres humanos.

148 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Capítulo 5. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret. 2007. 149 Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003.

Neste contexto, verificando que o princípio da primazia da norma mais favorável advém de uma construção histórica da humanidade, através do direito internacional contemporâneo, é uma norma-princípio que deve ser utilizada pelo operador do direito como fundamento básico. O combate à interpretação cega do direito, como o faz os positivistas, pode se valer de diversos instrumentos, como o que trazemos no presente trabalho, ou seja, a busca do direito a partir do caso concreto, utilizando-se dos princípios como instrumentos de interpretação para essa concretude. Justificando a existência do princípio em tela, a partir das necessidades históricas da humanidade, conseguimos, então, entender em que contexto o constituinte originário brasileiro inseriu o parágrafo 1º e 2º do artigo 5º da Constituição que discutiremos mais adiante.

Como um princípio a ser seguido, ou seja, como um parâmetro não só de interpretação, mas também de aplicação do direito, a primazia do ser humano deve ser o fundamento basilar de um novo parâmetro na aplicação do direito. Como bem disse Hannah Arendt “a própria vida é sagrada, mais sagrada que tudo mais no mundo” 150 e, portanto, é o

ser humano que deve ser o foco do direito e não a segurança de um sistema jurídico que só é aplicável a poucos.

Baseado na plenitude da dignidade humana, como um princípio, e na adoção dos princípios como instrumento hábil de aplicação a casos concretos, o princípio, conhecido pela doutrina de direito internacional, da primazia da norma mais favorável ao ser humano, acaba por ser um instrumento eficiente na busca de uma justiça mais justa e distributiva que tanto pregava Aristóteles 151 e que aos poucos muitos estudiosos vem rememorando. A visão positivista da “Velha Hermenêutica” 152 de caráter meramente programático dos princípios,

não os dotando de eficácia normativa, é uma visão arcaica do direito que não encontra mais guarida na nova concepção do direito, que vem entendendo que o direito deve ser um instrumento para a efetivação de uma justiça distributiva e equânime. Como ressalta Paulo Bonavides, “os princípios gerais de Direito cujo ingresso nas Constituições se faz com força positiva incontestável, perdendo, desde já, grande parte daquela clássica e alegada indeterminação, habitualmente invocada para retirar-lhes o sentido normativo de cláusulas

150 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva Universitária, 1972. p. 83. 151 ARISTÓTELES. obr. cit.

operacionais”153 não pode mais ser aceita, diante da necessidade de abertura do sistema

jurídico, focado no ser humano.

2.3.2. Princípio da Primazia e as Teorias do Direito Internacional

Mencionamos inicialmente as duas teorias predominantes no direito internacional a monista e a dualista que têm, como principal ponto discordante, a forma de inserção das normas de direito internacional na ordem jurídica interna de cada país signatário dos tratados internacionais. Mas autores renomados como Antônio Augusto Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Carlos Weis 154, dentre outros, afirmam que ambas as doutrinas estão superadas, porque, ao nos referirmos aos tratados de direitos humanos, suas normas devem sempre prevalecer, a fim de se dar a proteção máxima ao ser humano, adiantando, neste pondo sermos contrários a este ponto de vista, pois entendemos, neste aspecto, como veremos a seguir, que não importa se a norma provém do direito internacional ou do direito interno, mas sim qual a mais protetiva ao ser humano no caso concreto.

A respeito deste tema, enuncia Valerio de Oliveira Mazzuoli que “atualmente, não mais se cogita em monismo ou dualismo, o que está, em matéria de proteção dos direitos humanos, por demais superado”155. Neste sentido, constata o mesmo autor, que ainda é pouco

reconhecido o valor das normas de direitos humanos provenientes de tratados internacionais e que não se pode mais “admitir a igualização dos tratados internacionais protetivos dos direitos da pessoa humana com a legislação interna infraconstitucional. Ao contrário: deseja-se ver aqueles compromissos internacionais, senão acima, igualados em grau hierárquico às normas constantes da Lei Fundamental do Estado” 156.

Antônio Augusto Cançado Trindade, neste diapasão, também leciona que a distinção tradicional, ao enfatizar “as relações reguladas pelos dois ordenamentos jurídicos, dificilmente poderia fornecer uma resposta satisfatória à questão da proteção internacional dos direitos humanos”, pois, no direito internacional tradicional, as relações entre os:

153 BONAVIDES, Paulo. obr. cit. p. 258-259.

154 WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2006, apud. 155 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. obr. cit. p. 229.