• Nenhum resultado encontrado

2. TRIBUNAIS DE CONTAS BRASILEIROS

2.1 Origem e histórico constitucional

O Tribunal de Contas surgiu no Brasil após a proclamação da República. No período colonial, tem-se notícia da criação de um Erário Régio, e, durante o Império, uma tentativa fracassada de criá-lo 142 , esbarrada em uma conjuntura de

“desorganização financeira do país e dos saques da nobreza lusitana ao erário”143.

142 ALBUQUERQUE, Márcio André Santos de. Nomeação e composição das Cortes de Contas no Brasil. Revista do Tribunal de Contas do Pernambuco, Recife, v.16, n.16, 2005. Disponível em:

http://goo.gl/N3K97D. Acesso em: 02 out. 2018. p.132.

143 MILESKI, Helio Saul. Tribunal de Contas: evolução, natureza, funções e perspectivas futuras.

Interesse Público, Belo Horizonte, ano 9, n. 45, set./out. 2007.

Apenas no período republicano foi criado o Tribunal de Contas da União (TCU), com base no Decreto 966-A, de iniciativa do então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa – tido até hoje como patrono da Corte144. Datado de 07 de novembro de 1890 e assinado pelo Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, tal decreto previa a criação de

“um Tribunal de Contas para o exame, revisão e julgamento dos atos concernentes à receita e despesa da República”145.

Na exposição de motivos encontra-se o verdadeiro ideal que inspirou Rui Barbosa ao defender a criação da Corte no país. Para o jurista, a execução fiel da lei orçamentária era condição indispensável para a reconstrução da pátria naquele momento, pois a realidade era um “sistema de contabilidade defeituoso em seu mecanismo e fraco em sua execução”. Manifestou, assim, apoio à criação de um Tribunal de Contas com função de controle prévio dos atos de governo (inspirado no modelo italiano e belga). Em sua concepção, a Corte era “uma das pedras fundamentais” para consolidar a era republicana que se iniciava e para romper de vez com a máxima l’etat du roi.146

No ano seguinte, a primeira Constituição republicana alçou o TCU ao patamar constitucional em suas disposições gerais e transitórias, incumbindo-o da liquidação das contas de receitas e despesas e análise de sua legalidade antes da apresentação ao Congresso147. Não foi firmado na Constituição de 1891, portanto, o modelo de controle prévio preconizado por Rui Barbosa. Em relação aos membros, previu-se a livre nomeação dos membros pelo Presidente da República, mediante aprovação do Senado Federal, apenas podendo perder o cargo “por sentença”148.

Apesar da edição do decreto e posterior previsão constitucional, o TCU não foi implantado imediatamente devido à relutância de Floriano Peixoto, pois o governante temia a limitação dos seus poderes com a atuação do órgão

144 BRASIL. TCU. Museu do Tribunal de Contas da União: da criação à instalação. Disponível em:

https://portal.tcu.gov.br/museu-do-tribunal-de-contas-da-uniao/tcu-a-evolucao-do-controle/da-criacao-a-instalacao.htm. Acesso em: 15 out. 2018.

145 BRASIL. Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890. Crêa um Tribunal de Contas para o exame, revisão e julgamento dos actos concernentes á receita e despeza da Republica. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-966-a-7-novembro-1890-553450-publicacaooriginal-71409-pe.html. Acesso em: 15 out. 2018.

146 BARBOSA, Rui. Exposição de Motivos de Rui Barbosa sobre a criação do TCU. Revista do Tribunal de Contas da União, Ed. Instituto Serzedello Corrêa, Brasília, v. 30, n. 82, out/dez. 1999. p.

253-262.

147 Art. 89, da Constituição de 1891 (BRASIL [Constituição (1891)]. Constituição da República dos

Estados Unidos do Brasil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em: 09 jan. 2018).

148 Art. 89, da Constituição de 1891 (BRASIL [Constituição (1891)]. Constituição…).

fiscalizador149. Assim, a Corte apenas começou efetivamente a funcionar em 17 de janeiro de 1893, com os esforços do então Ministro da Fazenda, Serzedello Corrêa150. O Ministro lançara, em 1892, o Decreto nº 1.166, o qual disciplinava sobre a organização da Corte no país. Entre outras disposições, à Corte foi conferida

“jurisdição própria e privativa”, funcionamento equivalente ao de “Tribunal de Justiça”

e decisões com “força de sentença com execução aparelhada” (artigos 28 e 29), inclusive com competências para o exercício do controle prévio absoluto (art. 30)151.

Desde então, o Tribunal de Contas fez-se presente em todas as Constituições brasileiras, ora com maior visibilidade, ora com redução das atribuições conquistadas152 . Embora com a Revolução de 1930 e alguns decretos as competências da Corte tenham sido limitadas, a Constituição de 1934 disciplinou-o na parte “Dos Órgãos de Cooperação nas Entidades Governamentais”153.

Em seu art. 40, fez constar pioneiramente a competência do Poder Legislativo em “julgar as contas do Presidente da República”; nos artigos 99 e 102, assegurou a manutenção da Corte de Contas no país e a atribuição de acompanhar a execução orçamentária e julgamento das contas; e, em seu art. 101, previu o controle preventivo dos contratos administrativos, consagrando uma mescla do sistema italiano e belga com a previsão de veto relativo e absoluto. A indicação de todos os membros pelo Presidente da República com aprovação pelo Senado Federal restou

149 BRASIL. TCU. Museu do Tribunal de Contas da União: da criação...

150 BRASIL. TCU. Museu do Tribunal de Contas da União: da criação...

151 BRASIL. Decreto nº 1.666, de 17 de dezembro de 1892. Dá regulamento para execução da lei n.

23 de 30 de outubro de 1891, na parte referente ao Ministerio da Fazenda. Disponível em:

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1166-17-dezembro-1892-523025-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 15 out. 2018. Há notícias de que o Presidente Marechal Floriano Peixoto editou uma série de decretos para retirar a competência de fiscalização prévia do TCU, o que levou ao pedido de demissão de Serzedêllo Corrêa (BAHIA. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DA BAHIA. Uma breve história do controle: na visão de um Tribunal centenário. Disponível em: https://www.tce.ba.gov.br/files/flippingbook/livro_de_ouro/files/assets/basic-html/page44.html.

Acesso em: 15 out. 2018). Em 1896, o então Presidente Prudente José de Moraes Barros lançou o Decreto n. 392, dispondo novamente sobre a organização do TCU e conferindo-lhe o dever de funcionar “como fiscal da administração financeira” e “como Tribunal de Justiça com jurisdição contenciosa e graciosa”, como consta no art. 2, §1º, do Decreto 392 (BRASIL. Decreto nº 392, de 08 de outubro de 1896. Reorganisa o Tribunal de Contas. Disponível em:

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-392-8-outubro-1896-540205-publicacaooriginal-40163-pl.html. Acesso em: 15 out. 2018).

152 BRASIL. TCU. Museu do Tribunal de Contas da União: o Tribunal e as constituições. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/museu-do-tribunal-de-contas-da-uniao/tcu-a-evolucao-do-controle/tcu-e-as-constituicoes.htm. Acesso em: 15 out. 2018.

153 BRASIL [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm. Acesso em: 15 out. 2018.

mantida, também constando expressamente a equiparação das garantias dos Ministros da “Corte Suprema” (art. 100).154

A Constituição de 1937 (a “Polaca”) foi outorgada por Getúlio Vargas e marcou o início do Estado Novo no Brasil. Com viés autoritário, apenas continha uma única disposição sobre Tribunal de Contas no capítulo do Poder Judiciário, estabelecendo competência “para acompanhar, diretamente, ou por delegações organizadas de acordo com a lei, a execução orçamentária, julgar das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e da legalidade dos contratos celebrados pela União”155. Manteve-se a nomeação dos membros a cargo do Presidente da República e a concessão das mesmas garantias que aos Ministros do Supremo Tribunal Federal156. Destinou-se a regulamentação dos Tribunais de Cortas à legislação infraconstitucional, restando a Constituição omissa quanto à elaboração de parecer prévio sobre as contas do Presidente, por ela tratado como

“autoridade suprema do Estado”. Na realidade, os Tribunais de Contas foram desligados em 1938 e apenas retomaram suas atividades em 1946157, quando da redemocratização, expressando a comum hostilidade de governos autoritários com o controle exercido pela Corte158.

A Constituição de 1946, promulgada após a queda do Estado Novo no Brasil, buscou recuperar o equilíbrio entre os poderes e conferir estabilidade, autonomia e independência às instituições políticas159. Ao Poder Legislativo, foi reestabelecida a competência de julgar as contas do Presidente da República e destinada a tarefa de determinar a submissão de atos ao registro prévio ou posterior nos Tribunais de

154 BRASIL [Constituição (1934)]. Constituição…

155 Art. 114, da Constituição de 1937 (BRASIL [Constituição (1937)]. Constituição da República dos

Estados Unidos do Brasil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso em: 15 out. 2018), com redação dada pela Lei Constitucional nº 9/1945 (BRASIL. Lei Constitucional nº 9, de 28 de fevereiro de 1945. Altera a constituição federal de 1937. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCT/LCT009.htm#art1. Acesso em: 15 out. 2018).

156 Art. 114, da Constituição de 1934 (BRASIL [Constituição (1937)]. Constituição…).

157 SCLIAR, Wremyr. Controle externo brasileiro... p. 260.

158 Em 1938, foi editada a Lei Orgânica da Corte (BRASIL. Decreto nº 426, de 12 de maio de 1938.

Organiza o tribunal de contas. Disponível em:

http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/viwTodos/5056B677A9CC168B032569FA005D9 069?Opendocument Acesso em: 15 fev. 2019), o qual retomou a competência omitida na Carta Constituinte em seu art. 21, §5º (MONTEBELLO, Marianna. Os Tribunais de Contas...).

159 LAGES, Marcus Vinicius Paixão. Tribunal de Contas: Órgão Constitucional de Soberania. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 4, n. 35, jan. 2004.

Contas160. Pela primeira vez, foi firmado a nível constitucional que a fiscalização da Administração Pública pelo Congresso Nacional seria realizada “com auxílio do Tribunal de Contas”161.

De forma também inédita, os Tribunais de Contas foram dispostos dentro do capítulo do Poder Legislativo, na seção “do orçamento”. Ampliaram-se as competências da Corte, reservando-lhes a tarefa de fiscalizar não somente as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, mas também as contas dos administradores das entidades autárquicas. Constitucionalizou-se o julgamento da legalidade dos contratos e aposentadorias, reformas e pensões162, bem como foi recobrada a competência de emissão de parecer prévio sobre as contas anuais do Presidente da República163. No que toca ao preenchimento dos cargos, novamente a opção do constituinte foi a nomeação dos membros pelo Presidente da República, após ratificação do Senado, dessa vez concedendo a estes “os mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos Juízes do Tribunal Federal de Recursos”164.

Inserida no novo contexto autoritário que perpassava o país, a Carta de 1967 manteve a disciplina das Cortes de Contas no capítulo do Poder Legislativo, na seção “da fiscalização financeira e orçamentária”. Foi a primeira Constituição a utilizar a nomenclatura “controle externo” à atividade exercida pelo Congresso Nacional com auxílio dos Tribunais de Contas, bem como a disciplinar sobre

“controle interno”, ainda que apenas em relação ao Poder Executivo.

O texto constitucional preservou a atribuição de emitir parecer prévio sobre as contas anuais do Presidente da República e relatório sobre o exercício financeiro e possibilitou a realização de inspeções de forma paralela ao controle posterior. Foi também a primeira Carta a prever requisitos de nomeação aos Ministros do Tribunal de Contas nomeados pelo Presidente e aprovados pelo Senado, quais sejam:

“brasileiros, maiores de trinta e cinco anos, de idoneidade moral e notórios conhecimentos jurídicos, econômicos, financeiros ou de administração pública”,

160 Conforme consta nos artigos 66, VIII e 77, § 2°, da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, ver também Marianna Montebello (Os Tribunais de Contas...).

161 De acordo com o art. 71, da Constituição Federal de 1988.

162 Segundo Marianna Montebello, até o momento tal competência estava prevista apenas na legislação ordinária (Os Tribunais de Contas e o Controle...).

163 Art. 77, da Constituição de 1946 (BRASIL [Constituição (1946)]. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm.

Acesso em: 15 out. 2018.).

164 Art. 76, § 1º, da Constituição de 1946 (BRASIL [Constituição (1946)]. Constituição…).

dotados das “mesmas garantias, prerrogativas, vencimentos e impedimentos dos Ministros do Tribunal Federal de Recursos”165.

Na vigência da Constituição de 1967, o Decreto nº 200/1967 dispôs sobre a Administração Pública Federal e estabeleceu diretrizes para a reforma administrativa, alçando o controle ao patamar de “princípio fundamental” da Administração Pública, ao lado do planejamento, coordenação, descentralização e delegação de competência166. Segundo Marianna Montebello Willeman, contudo, a nova ordem constitucional representou um retrocesso no sistema de fiscalização das contas públicas, na medida em que acabou com o controle prévio que se fazia presente e com a possibilidade de delegações das tarefas de controle a órgãos públicos, além de limitar o exame da legalidade de aposentadorias, reformas e pensões somente às concessões iniciais167.

Apesar da manutenção das disposições sobre a Corte na Emenda Constituição nº 01/1969168, na prática o regime ditatorial ofuscou a atuação dos Tribunais de Contas no período, já que, “na verdade, a ação do Colegiado de Contas, como também das demais Cortes, sintetizava a realidade de muita intimidação velada por parte do Poder maior que era o Executivo”169. Na leitura de Rodrigo Luís Kanayama, havia apenas democracia formal, ausente o acompanhamento e controle da atuação do Estado e o controle social170.

Com a redemocratização do país, inaugurou-se uma nova ordem constitucional por meio da promulgação da “Constituição Cidadã”, em 05 de outubro de 1988. Segundo Ricardo Lobo Torres, o novo diploma pode ser considerado compromissário “por haver resultado do compromisso político entre correntes partidárias antagônicas e ideologicamente irreconciliáveis”, de onde derivam a

165 Art. 73, § 3º, da Constituição de 1967 (BRASIL [Constituição (1967)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67).

166 Art. 6º, do Decreto-Lei nº 200/1967 (BRASIL. Decreto-Lei nº 200, de 25 de dezembro de 1967.

Dispõe sôbre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/Decreto-Lei/Del0200.htm. Acesso em: 15 out. 2018).

167 MONTEBELLO, Marianna. Os Tribunais de Contas...

168 Artigos 70 a 72, da EC nº 1/1969 (BRASIL. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969.

Edita o novo texto da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm. Acesso em 15 out. 2018.).

169 MONTEBELLO, Marianna. Os Tribunais de Contas...

170 KANAYAMA, Rodrigo Luís. Orçamento público brasileiro, democracia e accountability. In: Direito constitucional brasileiro, vol. III [livro eletrônico]: Constituições econômicas e social. São Paulo, Editora dos Tribunais, 2014. E-book.

previsão de “capítulos retrógrados e outros plenamente ajustados à modernidade”171. Dentre as previsões elogiáveis, estariam as que compõem a

“Constituição financeira”, subsistema com normas sobre crédito, orçamento e fiscalização compatível com “os avanços do constitucionalismo de nações mais desenvolvidas”, onde se insere grande parte das disposições sobre controle externo172. Nos tópicos seguintes, serão esmiuçadas tais normas constitucionais, especificamente em relação ao desenho institucional dos Tribunais de Contas.