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Além, do Outro Lado da Rua

A. Studer realizou os seus estudos em França, onde obteve os diplomas de: Licence de Lettres Modernes, Maîtrise de FLE, DEA de Langues et Littératures Nationales et Comparées-Option Linguistique É professora adjunta na Escola

4 A S ORIGENS DA FELICIDADE

A desconfiança perante o outro não nasce do nada. Nunca nasce do nada. Há sempre uma história, ou vivida, ou contada, por trás. Em A Sopa de Pedra de John J. Muth, são muitas as histórias vividas, terríveis, de guerras, penúria, fome, inundações, que conduzem o povo da aldeia da montanha a fechar as portas aos três monges que se aproximam:

“O tilintar de um sino chamou-lhes a atenção para os tetos de uma aldeia situada mais abaixo.

Avistando-a lá de cima ignoravam que esta aldeia tinha sofrido muitas infelicidades.

A fome, as inundações, a guerra tinham ferido os seus habitantes, que desconfiavam agora de todos os estrangeiros, mesmo os vizinhos lhes pareciam suspeitos”12.

Após experiências traumatizantes, acontece o fechar-se em si próprio, o recuo, a defesa, e a suspeita do outro; mesmo os vizinhos parecem suspeitos. Não são histórias lidas ou contadas, são desta vez factos vividos, verdadeiros, que assombraram a aldeia. É a leitura que os aldeões fazem da sua experiência de vida que os impede de conviver com os outros, que são suspeitos (de trazer a infelicidade), sejam eles vizinhos ou estrangeiros. O outro é posto à distância, seja ele quem for, mesmo aquele que vive do outro lado da rua.

Os aldeões não falam muito, nem convivem uns com os outros, conta o conto: “Os aldeões trabalhavam muito, mas cada um para si…não comunicavam muito entre eles”13 Ninguém vem

acolher os três estrangeiros à porta da aldeia. Pelo contrário, fecham-se os aldeões atrás das portas e janelas das suas casas. “Cada um tinha voltado para casa, ninguém os foi acolher à porta da muralha da aldeia. E, quando os viram entrar, todos fecharam cuidadosamente as portadas”.14

Essa gente não sabe ser feliz! Concluem os monges.

Como na história de Vaugelade, a casa é o abrigo e o refúgio. No primeiro álbum, as cores quentes do interior da casa da galinha (fundo amarelo) contrastam com o frio da noite invernal. Nas ilustrações de Jon J. Muth, os aldeões ficam escondidos atrás dos muros e das paredes que cercam as suas casas.

Como na história de Vaugelade, a porta é a fronteira entre o interior e o exterior. Também é símbolo do fecho ou da abertura ao outro. Quando os aldeões começam a sair das suas casas para se juntarem na praça à volta dos monges, a imagem que ilustra o conto é explícita: vêem-se pessoas a espreitar atrás das janelas e portas, prontas a sair e a juntar-se.

É precisa a curiosidade e a «coragem» de uma pequena aldeã para que a curiosidade de todos, por sua vez, acorde. Apesar de não ser princesa, está vestida de amarelo, cor dos

10 Texto original: “au début, j’ai cru qu’on mangerait de la soupe à la poule, dit le cochon”.

11 Texto original: “le projet consiste à identifier dans nos relations avec les autres et notre vision du monde ce qui est du domaine

de l'expérience et du vécu et ce qui est basé sur une vision héritée du groupe d'appartenance”.

12 Texto original:

“Le tintement d'une cloche attira leur attention sur les toits d'un village situé en contrebas. L'apercevant de tout là-haut, ils ignoraient que ce village avait connu bien des malheurs. La famine, les inondations, la guerre avait frappé ses habitants, qui se méfiaient désormais de tout étranger, leurs voisins même leur paraissant suspects.”

13 Texto original:“Ces villageois travaillaient dur, mais chacun pour soi.[...] ils ne communiquaient guère entre eux. “

14 Texto original:“Chacun était rentré chez soi, personne ne vint les accueillir à la porte de l’enceinte. Et, lorsqu’on les vit entrer

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imperadores de China, e é ela que fala primeiro com os monges. Depois dela os aldeões todos, um após outro, saem à rua, curiosos de saber como é que se faz uma sopa de pedra. Como em todas as histórias de sopas de pedra, participam todos na confeção da sopa, cada um com o que tem em casa. É assim que, pouco a pouco, os aldeões, que não sabiam ser felizes, aprendem a generosidade. “Alguma coisa mágica nascia no espírito dos aldeões. Um fazia questão de dar, o outro dava mais ainda. Como os aldeões tinham ficado generosos.”15 A magia foi mesmo isso:

deixar para trás a suspeita e abrir-se ao outro.

5 A

MAGIA

A magia como motivo reencontra-se numa outra versão francesa da sopa de pedra, de Michel Hindenoch que, embora se encontre em livrarias especializadas em literatura infanto-juvenil, em França, não é para a infância, mas sim para um público adulto. Nessa versão, um soldado que regressa da guerra toca à porta de uma velha. Não é muito bem recebido, mas não desiste: “-Permiti a um pobre soldado de regresso da guerra que tenha pelo menos um tacho com um pouco de água, e um lugar no lume, para cozer a sua pedra.”16 No fim da história, com o poder mágico do

acontecimento, a velha rejuvenesce:

“A cada passo que dava, rejuvenescia: Sessenta anos! Cinquenta anos! Quarenta anos! Trinta anos! Vinte anos! Uma jovem! Tirou as tigelas, as colheres. Pôs tudo na mesa. Ele pôs no meio o tacho, tudo fumegante...e sentaram-se juntos, olhos nos olhos.”17

As próprias pedras têm no conto propriedades fora do vulgar. Pedra e água sendo a alegoria do encontro e da união de dois (sexos) opostos, há toda uma alquimia que ocorre. Primeiro a água tem que «acolher» a pedra, depois tem que a «entrar no seu interior», sendo na resolução da «diferença» entre a pedra e a água que tudo se joga:

“Dizíamos também... que o importante, afinal, era a diferença entre a pedra e a água. Isto não é fácil, será? É que não são parecidas, estas duas coisas, pois não? Nós, na nossa região, encontrámos um pequeno nada para ajudar a água! Nós, para isso, juntamos um pouco de farinha...”18

Apesar de o motivo não estar desenvolvido, percebemos que também no conto de Anaïs Vaugelade a pedra tem propriedades fora do vulgar. É para confirmar que a pedra não está ainda perfeitamente cozida que o lobo tira a faca do seu saco. Não deixa a pedra para trás, leva-a com ele. Na história de Jon J. Muth, há três pedras de três tamanhos diferentes, tal como os monges representam três idades da vida. A dada altura, as três pedras, dispostas umas em cima das outras na ilustração, têm uma forma de Buda. Não terão as pedras adquirido as propriedades das três divindades evocadas na história através dos monges? Não terá sido o alimento oferecido aos aldeões, ao mesmo tempo divino e mágico?

Objetos mágicos (pedras filosofais?) em cada um dos três contos neste excerto evocados, as pedras são o atributo valioso do estrangeiro. Nas histórias da Anaïs Vaugelade e do Jon J. Muth, o estrangeiro tem o mesmo papel. Suspeito à partida, é no entanto aquele que traz a alegria e a felicidade para a aldeia, é aquele que ensina, e com quem se aprende, não só a confeção de uma sopa de pedra, como também o valor da generosidade e da partilha. Não só enriquece o património comum, cultural e gastronómico, ensinando a confecionar a sopa de pedra, como desperta e enriquece a humanidade de cada um, tecendo ligações mais fortes entre os habitantes das aldeias. Nesse sentido, cada uma destas histórias é uma apologia do comércio com o outro. A abertura ao outro ensina alegria e felicidade e torna-nos mais ricos, conta cada uma.

As palavras dos aldeões de um lado e de outro são quase idênticas, indicam a felicidade e a nostalgia do acontecimento. Em Jon J. Muth: “Depois sentaram-se à mesa. Mesmo indo muito longe nas suas lembranças, não se lembravam de se terem juntado nunca para uma tal festa.” 19 E, mais

tarde:

“– Obrigado por nos terem convidado, disseram os monges, foram muito generosos.

– Nós é que agradecemos, responderam os aldeões, com tudo que vocês nos deram, nunca mais

15 Texto original: “quelque chose de magique naissait dans l'esprit des villageois. L'un avait coeur à donner, le suivant donnait

plus encore [...] comme les villageois étaient devenus généreux.”

16 Texto original: “permettez à un pauvre soldat qui revient de guerre d'avoir au moins une marmite avec un peu d'eau, et une

place sur le feu, pour faire cuire son caillou! “

17 Texto original: “Et à chaque pas qu'elle faisait, elle gagnait des années : soixante ans! Cinquante ans! Quarante ans! Trente ans!

Vingt ans! Une jeune fille! Elle a sorti les bols, les cuillères. Elle a tout posé sur la table. Et lui, il a posé la marmite au milieu, toute fumante... Ils se sont assis ensemble, les yeux dans les yeux. “

18 Texto original: “On disait aussi.... que l'important, finalement, c'était la différence entre la pierre et l'eau. C'est pas facile ça,

hein? C'est que ça ne se ressemble pas, ces deux choses-là, hein? Et bien chez nous, on a trouvé un tout petit rien pour aider l'eau ! Nous, pour ça, on ajoute un peu de farine...”

19 Texto original: “Puis ils se mirent à table. Même en remontant très loin dans leurs souvenirs, ils ne se rappelaient pas s'être

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vamos ter falta de nada. Mostraram-nos que a partilha nos torna mais ricos a todos. – Sim, disseram os monges, ser feliz, é tão simples como fazer uma sopa de pedra.”20

Em Anaïs Vaugelade:

“Como é agradável estarmos todos juntos! Devíamos fazer jantares mais vezes.”21

Mais tarde, a partida do lobo, afinal, é triste: “A galinha pergunta: – já se vai embora?

– Sim, responde o lobo. Mas agradeço este bom serão.

– Vai voltar em breve – disse o pato. Mas o lobo não responde.”22